Se há mortes atenuadas pela glorificação da memória, a de Mac Miller é uma delas. É doloroso aceitar que alguém de 26 anos desejasse chegar à última página como um romancista sem fita na máquina de escrever, mas a entropia era o traje de gala preferido dos dias de tempestade. Como poderemos compreendê-lo quando era inquilino da sua própria trincheira? O maior peso era o de uma consciência esvaziada de utopia.
O arame da ausência corta. Balloonerism é dilacerante porque tudo o que foi está sempre aquém da projecção que podia ter sido - um futuro pleno e confiante. Teria coragem para expulsar o monstro da caverna? Precisávamos dele paciente e terapeuta no consultório do fim do mundo, mas a ambiguidade entre o abraço colectivo e a desconfiança dos motivos por que era amado empurravam-no para longe da paz. Os fantasmas da auto-censura assombravam-no mas Mac Miller adorava tê-los por perto como saco de boxe para, serão após serão, poder amassá-los. Não se esforçou por enterrar a semente do medo - menires com o peso de toneladas que arrastam o alento pela lama -, mas curiosamente nunca perdeu o sorriso no treino. Frustrante saber que tirava prazer da comiseração. Quereria reescrever a folha? Talvez tivesse picado um bilhete só de ida.
Embora já circulasse clandestinamente, só uma década depois de ter sido gravado é que Balloonerism sai do cofre. Mais do que o modesto Circles, é o segundo álbum póstumo de Mac Miller que lhe faz jus à obscuridade. Não surpreende já que estas cançōes nasceram no mesmo período de fertilidade e ensaio da mixtape Faces (2014), do regenerador GO:OD AM (2015) e do incandescente The Divine Feminine (2016), o Santo Graal harmonioso de pecado, redenção, beleza física e magnitude. Podia estar escondido mas não havia forma de fugir. Velho amigo de fóruns de fãs e foragido dos circuitos oficiais, Balloonerism ajuda a traçar um mapa de abismo sem abrir a caixa negra com ciências exactas.
O segredo da vida para além da morte em 2018 não está no excesso que o derrotou mas no vazio de não compreender o porquê de se ter auto-sentenciado. É recomendável aceitar a morte e a perda como factos irreparáveis. E Balloonerism como previsão de queda e prelúdio de superação. Eis Mac Miller amparado nos ombros de SZA em DJ's Chord Organ, a descer pelo próprio precipício em 5 Dollar Pony Rides (Let Me Give You What You Want/And Maybe Later What You Need) e a profetizar o futuro (If I Die Young, promise to smile at my funeral). O tanque enche-se de pistas em Stoned (I swear to god/heaven feels just like home) mas ficam por responder os motivos do afogamento em águas tão claustrofóbicas. Quem se diz Slave to the bassline, seguro pelas cordas de Thundercat em Friendly To The Bassline, devia estar proibido pela medicina de se vampirizar assim. Com amigos como Rick Rubin, ajudante de luxo na reabilitação (o Rik’s Piano é do produtor), desperdiçar a saúde é sacrilégio.
Deixemos as certezas de divã para o reiki social. Na bruma, há uma cadeira de sonho para segredar a Deus. E quando se confessa em Manakins ('Cause I see the light at the end of the tunnel/It feels like I'm dyin', dyin', dyin'), a porta abre-se com o vento e traz uma resposta. “We are what we believe in/There is no such thing as dreamin'“. Malcolm James McCormick conhecia bem demais Mac Miller e talvez por isso o tenha demitido das suas funçōes. Resta a indemnização chorosa.
Ela Minus - Dia
Os primeiros instantes de Dia prometem uma tensão desencarcedora que não se despega de Dia ao longo de pouco mais de trinta minutos. Em 2020, Acts of Rebellion devolvia uma consciência política diluída no funcionalismo da cultura electrónica de dança. Quatro anos e alguns meses depois, a colombiana não rompe com os princípios confrontacionais herdados dos The Knife. É difícil ouvir Dia sem pensar na incandescência de Fever Ray. O défice de marca pessoal é resolvido pelo posicionamento político intransigente. Dia é um apelo irrepremível a sairmos da jaula, só não lhe peçam o novo mundo.
BaianaSystem - Mundo Dá Voltas
A cultura brasileira é tão vasta que tratá-la pelos limites espaciais é pecar por gigante defeito. Ainda assim, não é acaso a escolha da palavra "mundo" para representar a festa desacelerada de batuques electrónicos no quintal do BaianaSystem. A diáspora do colectivo abre os braços a Dino D'Santiago em Batukerê, e junta-lhe Kalaf em Porta-Retrato da Família Brasileira, em que é citada a Améfrica Ladina (compilação de textos da antropóloga e activista mineira Lélia Gonzalez sobre as feridas em carne viva do racismo), da interculturalidade e também da luta pela sobrevivência num período crítico de regressão cultural. De Seu Jorge e Emicida à cantora chilena Claudia Manzo, a escala é constante. Bebe-se muito cachaça em Mundo Dá Voltas, como sinal de comunhão alegre e do corpo como movimento de aproximação, mas se o prazer é cada vez mais um gesto de confrontação do ódio, na roda da BaianaSystem há um inimigo chamado preconceito no centro.
Blacksea Não Maya - Despertar
O batuque instintivo da Príncipe não se dissipa mas, como em episódios anteriores de Nigga Fox ou Nídia, há uma vontade consciente de expandir a dialéctica familiar para uma experiência sensorial além do irresistível primado rítmico. Em Despertar, coexiste o baile e a experiência sensorial alimentada por quebras, instrumentais herdados do boom-bap e uma balada a picar cebola no final. Crescer sem perder a brincadeira de rua.
Voice Actor & Squu - Lust (1)
Mesmo que o elo seja apenas temporal, o surrealismo Lynchiano é evidente em Lust (1). Tudo remete para a paranormalidade e para a fronteira entre o sonho e a alucinação. Noa Kurzweil (Voice Actor) e o desconhecido produtor escocês Squu alojam-se na psique como interrupção do real, e contam uma versão invisível da história. Sem limites estéticos ou barreiras emocionais a castrar-lhes a liberdade. Lust (1) é um objecto tão indescritível na sua paleta infinita de música ambiental não-terapêutica, trip-hop sem chip e jungle descomprometido, a servir uma misteriosa voz portadora de encanto metafísico. Planos para dezembro já em janeiro.
Jordsvingninger começa onde o expressionismo de Edvard Much acaba. O símbolo maior da pintura norueguesa inspirou os compatriotistas da Smalltown Supersound a conjecturar uma colecção de paisagens escapistas, dominadas por uma noção plural de música ambiental inconfundível dos medicamentos genéricos das playlists. A selecção está à altura da mestria de Munch. De Actress a Perilla, Kara-Lis Coverdale e Lindstrom, as telas sonoras reflectem um sincronismo natural com o aventureirismo da obra estudada.
Blue Lake - Weft
A América celeste vista de Copenhaga. Inspirado pela luz da mulher e artista visual Maria Zahle, Jason Dungan tece uma peça intrincada e meticulosa de guitarras acústicas, piano, flautas e clarinetes que exprime uma soma de camadas maior do que as partes sensíveis.
U.E. - Hometown Girl
Enquanto escrevo, o mundo queda-se perante David Lynch. Só pode ser coincidência a perda do mestre do sonho acordado e a colecção de micro-sons de Ulla Straus, compositor californiano migrado para a Alemanha. Parece que nada acontece em Hometown Girl mas o vazio está cheio de pequenos nada preciosos como texturas, salpicos e lamúrias que tanto podiam pertencer ao surrealismo cinematográfico como ao vapor húmido de William Basinski.
Tiago Sousa - Organic Music Tables Vol. 4
Novo ano, novo álbum. O quarto volume de Organic Music Tables encerra o ciclo de música minimalista, suscitado por mestres como Terry Riley e Steve Reich, que reinventou a música de Tiago Sousa em camadas nebulosas de piano, orgão e loops. O derradeiro episódio refina a linguagem sem se conformar. O piano passa a ser o instrumental central, nutrido com a mesma paciência da repetição, precisão técnica e atenção ao detalhe dos antecessores.
Joanna Jago - Engage Beyond Orbit
Os princípios de electrosucção do techno não divergem do cânone clássico de Juan Atkins ou de contemporâneos como James Stinson (Drexcya). Está lá a hipnose, a dilatação cerebral e a paranóia industrial. Onde a mente de Joanna Jago viaja pela cosmos é no transe mental das camadas ambientais à superfície de Engage Beyond Orbit. E aí sim, esquecemo-nos do corpo e flutuamos.
Jan Jelinek - Kosmischer Pitch (reedição)
Além de técnicas e métodos, objectos como Kosmischer Pitch transparecem uma longa solidão a que idiossincratas como Jan Jelinek se entregam como monges a uma cláusura. A permeabilidade vem do silêncio. Kosmischer Pitch nasceu muito antes de 2005, quando foi originalmente editado exclusivamente em suporte digital. Se os mecanismos de repetição invocam a produção kraut, o controlo do tempo e da emoção, manifestado em múltiplas camadas sonoras, desaguam num transe mental de engenhos não-explosivos e ruídos granulados. Minimalismo abundante em micro-sons.
Yo La Tengo - Genius of Love (reedição)
Embora tenham rompido nos anos 90, a história dos Yo La Tengo já vinha desde 1985 cheia de micro-contos. Singles de estrada entre álbuns, presença regular em compilações do circuito independente e versões, muitas versões. Em Genius of Love, levam Blietzkrieg Bop à praia para um passeio instrumental, entram em chamada com Daniel Johnston em Speeding Motorcycle, apropriam-se de Hanky Pank Nowhow, de John Cale, I'm Set Free, dos Velvet Underground, Cast a Shadow dos Beat Happening, e Too Late dos Wire. O catálogo de heróis é luxuoso e os Yo La Tengo faziam questão de contar quem eram. Apanhado de material esparso no tempo, proveniente de diversas fontes, esta arrumação da casa mostra os Yo La Tengo em toda a sua latência. Ruídosa (Artificial Heart), caótica (Too Late), melódica (From A Motel 6 # 1), floral (Cast a Shadow) e contemplativa (Nutricia). E a seguir chegaria I Can Hear the Heart Beating as One.
X-Cetra - Summer 2000 (reedição)
A história de Jessica Hall, Ayden Mayeri, e das irmãs Janet Washburn e Mary Washburn, de 9 anos, não difere de tantas pré-adolescentes actuais. Só não havia TikTok há vinte e cinco anos para se exibirem. Embaladas pelas Spice Girls, Destiny's Child e, mais estranho, Fiona Apple, cantavam, dançavam e faziam vídeos. Robin O’Brien, a mãe de Janet e Mary, decidiu gravar o grupo de amigas no estúdio pessoal. As canções virgens de segundas intenções acabaram por resultar no CDr Stardust, de 2000. Difícil não simpatizar com a inocência e candura, sem paternalismos, mas o maior espanto vem da atracção pop pelo risco que as introduz como ensaio Y2k de vaporwave. Se as All Saints se tivessem fechado em estúdio com os Sneaker Pimps, talvez as sessōes tivessem resultado em algo semelhante, mas neste caso, há um alheamento das consequências. As sequelas só podem ser boas. Se aliarmos o jeito pop, a inocência da idade e a presciência de quem está a ver o futuro sem maniqueísmos, ou imposição da indústria, percebe-se porque uma brincadeira doméstica sem ponta aparente de cinismo, se transformou num objecto de culto caçado como tesouro pelo Numero Group.