A história podia ser retirada de um romance. Drew Daniel, um dos cérebros dos Matmos, divertia-se num clube quando uma rapariga o abordou. Falou-lhe de um novo género musical, o Hit’em, feito de sons “triturados” a 212 BPM. Nessa mesma noite, deu por si coberto de lodo e a olhar para a própria sepultura. Quando acordou da fantasia às 6 da manhã, nas montanhas da Califórnia, tudo não tinha passado de um sonho bizarro. Nunca tinha publicado uma visão semelhante mas desta vez decidiu fazê-lo. Contou a história da rapariga e do subgénero no x. Voltou-se para a almofada e quando acordou, não queria acreditar. A reacção fora imediata e a ficção desencadeara um desejo, concretizado em pouco tempo, de criar a partir dos padrōes sugeridos.
Em poucos dias, Daniel tinha o correio a transbordar. A história fora multiplicada pelo artigo do Guardian e gerara entusiasmo global pela autenticidade e improbabilidade. Para quem não sabe, os Matmos são uma dupla referencial de música exploratória, associada a subgéneros como o IDM e o glitch, ou seja música electrónica “mental”, conhecida pela colagem de samples improváveis em ritmos fractais e sons inclassificáveis. No início do século, ganharam alguma visibilidade fora do seu quadrado quando foram convidados por Björk, sempre atenta às extremidades, a produzir nos álbuns Vespertine e Medúlla, depois de em 1998 terem começado por remisturar o single Alarm Call.
Carente de gestos autênticos e verdades blindadas, a humanidade adora banhar-se nestas pequenas praias fluvais de água transparente. As proporçōes tornam-se ainda mais improváveis quando o mensageiro está na Oceânia dos influenciadores digitais e, quando muito, é alguém com o poder de gerar reacçōes numa rede de proximidade ou em nichos de electrónica conceptual. Logo a seguir, o cúmplice Machinedrum abriu um “programa de candidaturas” à participação numa colectânea. Um showcase espontâneo do “novo género” imaginado pela rapariga do sonho, mas foi Adrien Capozzi da Suitably Bizarre a adiantar-se em Disposable Heroes of Hit Em, a primeira colecção do subgénero.
Na seca de soluçōes, líderes e ideias, precisamos de acreditar em utopias mas até por isso é importante não confundir a côdea com o miolo. Como já se suspeitava, de novo não há nada. São apenas fotocópias do livro de estilo da Warp (Plaid, Boards of Canada), mímicas da desordem ordenada de Aphex Twin e duplicaçōes da fragmentação de Burial com a sinistralidade do IDM e aceleraçōes do juke. Formalmente competentes mas reverentes. Não-transformadoras e, portanto, o inverso da ilusão de Drew Daniel. O argumento do tempo é aliás, falacioso porque os 212 BPM são um 106x2. Entendedores entenderão.
A causa, pode ser importante que o efeito. A curadoria de Machinedrum pode gerar outros escapes criativos, além da recriação do passado do futuro, mas há outras ilaçōes menos românticas na utopia de Daniel. Historicamente, um campo de fuga ao convencional, experimentação, descoberta e risco, a electrónica, como um bloco de micro e sub-géneros, tem vindo a perder a capacidade de propor novas rotas. Quando isso acontece fora dos eixos ocidentais - como em subgéneros como o amapiano, a cumbia ou funk dilacerado de DJ Anderson do Paraíso -, os cérebros ignoram ou desvalidam para não se confrontarem com o desconhecido. Contradição absoluta. No fundo, a electrónica, como todos os géneros associados à contracção de tendências dominantes, foi capturada e quando ainda tem a potência de ser uma força contra-cultural, esse efeito é negado justamente por contrariar a inércia. Até na subjugação da música ambiental à cultura das playlists, essa apropriação é drástica - um assunto para mais tarde.
Esta quinta-feira, 22 de agosto, celebraram-se trinta anos sobre a chegada de Dummy, o primeiro de três capítulos dos Portishead, se excluído o orquestral Roseland NYC Live. Recordar é bonito se não nos agarramos ao passado como uma desistência do futuro. Não há como controlar as emoçōes colectivas e o esvaziar do pensamento resulta em saudosismos perigosos, perfumados pela inércia e pelo fatalismo. O Dummy é um bom álbum. Belo e doloroso como uma tragédia de final sereno. Clássico nas melodias mas dado às aventuras de um tempo em que Bristol era uma das capitais da mudança graças às experiências laboratoriais entre a matéria-prima social de uma cidade onde muitos jamaicanos atracavam no porto, e à influência da música de rua, manifestada na contrafacção da cultura reggae/dub e no relevo do hip-hop, enquanto ritmo, dialéctica e vénia à memória.
Dummy não inovou, arredondou preservando alguma sujidade na orgânica instrumental, vinda quer de Geoff Barrow, quer do guitarrista Adrian Utley, que em outros colectivos como os Massive Attack não era palpável. A perfeição formal e a beleza catalputaram-no para um estatuto de representação de um movimento, o trip-hop, comprimido em poucos nomes (Massive Attack, Portishead, Tricky, Smith & Mighty), antecedentes (o colectivo Wild Bunch e os Soul II Soul), e prossecutores (Unkle, DJ Shadow, Smoke City) mas não é, nem por sombras, fundador ou pioneiro. O melhor álbum dos Portishead é aquele que só os críticos quiseram ouvir. Demasiado difícil, áspero e antagonista da graciosidade triste dos anos 80, Third, de 2008, está confinado a artigos, alguns livros e fundos de catálogo. Dummy cristaliza uma época, sim, mas o tempo nunca parou. Para escapar à esparrela do saudosismo, o sarcasmo de Geoff Barrow é oxidante. “Se quiserem ouvir o Dummy amanhã, sintam-se à vontade. Fico sempre contente quando recebo os meus 0,003 cêntimos do Spotify”.