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Quem viu os LCD Soundsystem há pouco menos de vinte anos a desafiar o sistema de som do Lux na apresentação do álbum da bola de espelhos, nem nos sonhos mais eléctricos poderia imaginar que duas décadas depois a plateia de entusiastas que sondou o plano futurista com memória de James Murphy, em duas noites suadas de junho de 2005, se multiplicaria como as estrelas em noite de Alentejo. Where are your friends tonight? Ali, no Parque da Bela Vista, na última madrugada de agosto.
O louvor à amizade, simbolicamente escolhido para um inevitável abraço final, diz quase tudo sobre os LCD Soundsystem e sobre o vínculo emocional erguido desde que o minimalismo dos primeiros singles Losing My Edge (2002) e Yeah (2004) catapultou um grupo de anónimos de Nova Iorque para o estatuto presciente de autoria de alguma da música mais excitante do planeta. Música fundada no funk dos Chic, no rigor metronómico dos Kraftwerk, na pulsão punk funk (Gang of Four, A Certain Ration, Liquid Liquid) e na ilógica dos Bush Tetras.
Nos anos de estágio, quando os Rapture eram a mina da DFA, e os LCD se moviam como uma linha metropolitana entre as lojas de vinil, os laboratórios de estúdio e as pistas de dança, comunicavam a partir do nicho da electrónica mas desde cedo se suspeitou que pudessem desmarginar. All My Friends é isso. Os LCD Soundsystem em todo o seu universalismo ministrado por Bowie em Heroes, da amizade ancorada no amor melómano, das paixōes (e perdas) espoletadas pela música - o que fica do que passa.
A canção fala sobre o encher da maré (You spent the first five years trying to get with the plan) e a necessidade de secagem na toalha (And the next five years trying to be with your friends again) ou de como a reflexão sobre grandes conquistas traz o reencontro com a simplicidade da vida; de acidez punk (You drop the first ten years just as fast as you can) e adocicar institucional (And the next ten people who are trying to be polite). Murphy adivinhou a sua história antes de a viver, e documentou-a em tempo real como uma crónica pressentida nas liçōes ensinadas pelos manuais de código da cultura popular.
Crescemos a ver os LCD Soundsystem como uma utopia tangível. Vimo-los ficar em terra quando a rotina corroeu o entusiasmo, o cansaço minou a amizade e as dívidas da DFA restringiram a respiração criativa da DFA. Num sopro de vida, uma amizade cosida por discos e ideais era agora uma máquina alimentada por desconhecidos e suspeitos. Por isso, suspenderam a sigla. E quando voltaram, sem Bowie nem Prince no mundo, o desatino de quem toma o pequeno-almoço enquanto as famílias jantam dera lugar a um lote de cançōes sobre a passagem do tempo, os amigos que se perderam para a vida ou para os escritórios. Já não eram os LCD a olhar para as árvores a crescer, era um regresso ao tronco da música que os educara e felicitara.
Nos anos 90, Murphy sentia-se o rapaz do canto no bar, deslocado e incompreendido. Depois, as culturas punk e pós-punk ressuscitaram como estética do milénio, reactiva a vírus como o nu-metal e a uma certa estupidificação das pistas (Aqua, Vengaboys) e tudo fez sentido. Os LCD Soundsystem não foram só parte do pelotão, estiveram na cabeça, mas no regresso em American Dream compreenderam que a sua relação com o tempo já era outra, de retrospectiva e revisão.
All My Friends também é isso, sem lamúrias nem saudosismos. O concerto no Kalorama foi isso. Um emocionante reencontro com os LCD Soundsystem com inesperada intensidade sismíca. Crescemos a olhar para eles como novidade. Ainda somos os mesmos mas mudámos. A perspectiva é de longevidade. Um futuro que resistiu ao tempo e continua a soar irresistível, na hipnose suspensiva de Someone’s Great, na urgência de Us vs. Them e na frescura de Tribulations - fruta de época que nunca perdeu o sabor Na deliciosa Losing My Edge - sarcástica e premonitória advertência da ultrapassagem por pernas mais rápidas, escrita com humor de clube novaiorquino de comédia, sem saudosismo nem paternalismo - os discos na mala de James Murphy invadem o concerto dos LCD. Ouvem-se intromissōes de Ghost Rider dos Suicide, o teclado oleoso de Robot Rock dos Daft Punk e o clássico synth pop Don’t Go dos Yazoo - boa candidata a ressuscitar no TikTok já que Bulletproof de La Roux também renasceu. A citação do FM robótico de Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter terá sido uma justificação da falta de Daft Punk is My Playing House? Talvez, mas éramos tantos e tão extasiados que não houve lenços brancos.
Sem surpresa, o concerto dos LCD Soundsystem também é pista de dança mas no piso da inferior da bola de espelhos que ilumina o palco há uma parafernália de instrumentos e maquinaria que tanto se assemelha a uma nave como a um armazém ocupado ou a garagem de banda punk. Eles são isso tudo: hedonismo disco, fúria punk temperada, balanço kraut e experiência sónica. Ao centro, James Murphy, impassível anfitrião e general sensível, obrigado pelas circunstâncias a transmitir a sua privacidade a milhares de pessoas. Fá-lo como sempre: despenteado, resguardado e despretensioso. Terno, sem muitas palavras porque a economia dos LCD sempre esteve em usar a palavra como parte do ritmo, e deixar as interpretaçōes à disposição da liberdade de cada um. Excepto New York, I Love You But You're Bringing Me Down, um manifesto pré-gentrificação sobre a captura da identidade das cidades que podia ser endereçado ao mayor Carlos Moedas. De um aguardado reencontro, o concerto dos LCD Soundsystem engrandeceu-se para uma noite histórica que, como poucas em festivais, guardamos nas memórias emocionais que não se podem armazenar no telemóvel.
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Inesquecível, mas longe de ser acto único. Antes dos LCD Soundsystem, a dupla Death Cab For Cutie e Postal Service revisitou, respectivamente, os já clássicos Transatlanticism e Give Up. Se um aborígene aterrasse em Chelas às 22h00 de 30 de agosto, não diria que aquelas cançōes tinham vinte anos de cédula fonográfica. O concerto duplo é uma boa ideia concretizada sem mácula, como se de duas bandas gémeas, com a pica dos vinte anos, se tratassem. As peças estão oleadas, o motor está calibrado, a tinta não apresenta sinais de desgaste. Para alguns, trata-se de ser feliz ao som da intemporal This Is The New of Year, a primeira a chegar ao palco, The Sound of Setting e Such Great Heights, mas para muitos tudo aquilo é novo, mágico e refrescante. Se no caso dos LCD, não se vislumbram na actualidade diária projectos de futuro com uma fracção desse estímulo, tomara fazerem-se álbuns imediatos e brilhante como os de Death Cab For Cutie e Postal Service.
Incrível como passaram dez anos desde os vídeos de Time, The Heat e Busy Earnin. A iconografia dos Jungle sempre foi tão visual e garrida como quente no funk não-ortodoxo trespassado a Bee-Gees, Jamiroquai e à translucidez dos Happy Mondays. A transmissão de singles mais recentes como I’ve Been In Love - muito Bill Withers, muito boa onda, óptima para a legendagem das redes sociais - e Back In 74 reapresentou-os depois de uma hesitação natural após esse retumbante álbum de estreia. O concerto é quente, físico e vibrante, dominado por cançōes orelhudas que não precisaram de adulterar a identidade nem mudar de fatos de treino para ser pop da era social. A crítica abandonou-os sem motivo, mas o corpo não mente sobre a emulsão de soul californiana, falsetos e vozes femininas - um bom vício ganho após às reacçōes ao viciante Casio que abriu uma nova velha era na vida de Josh Lloyd-Watson e Tom McFarland.
Evoluiu muito o Kalorama após os erros de organização e cartaz da primeira edição (a única onde tinha estado). Os palcos estão mais arrumados, há preocupaçōes e práticas sustentáveis, atençōes fundadas a pessoas e públicos quase sempre esquecidos (os intérpretes de linguagem gestual do concerto dos LCD tiveram o melhor trabalho do mundo durante uma hora), incluindo os moradores de Chelas, como o Rock In Rio também fazia, e sobretudo um cartaz acima da média - o melhor das três ediçōes, mais actual e plural, ultrapassado o anacronismo de se achar que a música morreu quando o rock foi deposto do trono, e, a par de Paredes de Coura, o mais apelativo dos grandes festivais de verão. E houve azares também como os cancelamentos de The Smile, Fever Ray, Soulwax, e problemas como as filas e alguns horários sobrepostos. O problema transversal dos preços exorbitantes de tudo já se percebeu que não vai mudar. O que não há é uma identidade clara, porque o Kalorama nasceu como um festival de indústria destituído de propósitos artísticos. É um supermercado de marcas como o Rock In Rio, tem a arte urbana do Iminente, e um cartaz com a frieza do Alive, a pós-pop do Primavera Sound e os blocos esquerdistas de Coura. Num quadro de sobrelotação do panorama e desgaste internacional do circuito, ser o “último grande festival de verão” não soma e torna-o dependente dos nomes. O Kalorama só poderá ser uma comunidade quando houver uma filosofia a preceder as restantes opçōes, manifestaçōes e inclusōes.
Vão ter uma residência de 7 noites, creio, em LA, onde vivo, no inicio de Novembro. Mal posso esperar!