No encargo de recuperar o tempo perdido a discriminar a comunidade negra do hip hop e a alimentar a desigualdade de género, enquanto River: The Joni Letters de Herbie Hancock, Raising Sand de Robert Plant e Alison Krauss (bom, mas não merecia) e Babel dos Mumford & Sons roubavam o palanque a álbuns transformadores do Séc. XXI como Graduation de Kanye West e Good Kid, M.A.A.D. City de Kendrick Lamar, a rejuvenescida academia dos Grammy procura estar a par das tendências e fazer dos prémios um ajuste de contas com questōes históricas que não começaram nos prémios nem tampouco têm origem na indústria musical. Têm raízes profundas no capitalismo e é a partir da desumanização que o tronco apodrece.
Este ano, Taylor Swift veio a sorrir da gala realizada na arena Crypto.com, em Los Angeles. Nunca ninguém tinha conquistado o quarto prémio de Álbum do Ano. Nem Frank Sinatra, nem Paul Simon, nem Stevie Wonder, todos eles autores de hat-tricks na categoria mais importante. Entre as nomeadas, estavam ainda as Boygenius, Miley Cyrus, Lana Del Rey e Olivia Rodrigo. Midnights valeu ainda o prémio de Melhor Álbum Pop Vocal a Taylor Swift, enquanto Miley Cyrus levou para casa os Grammy de Gravação do Ano e Melhor Performance Pop a Solo com Flowers.
Billie Eilish conquistou o importante prémio de Canção do Ano com What Was I Made For?, da banda sonora de Barbie, um belo filme para discutir feminismo depois de pedir um McPlant no McDrive. O tema também recebeu o Grammy de Melhor Canção para Meio Audiovisual. Victoria Monét recebeu o prémio de Melhor Nova Artista enquanto a nova diva do r&b SZA recebeu três prémios, incluindo o de melhor canção de R&B com Snooze. Os rescaldos apressaram-se a celebrar “a vitória das mulheres” e o “empoderamento feminino”. Excepto Jay Z que na qualidade de advogado de acusação de Beyoncé contestou o facto de a mulher ter “mais Grammys que toda a gente” nas paredes da mansão de Bel-Air excepto o de Álbum de Ano.
A discriminação racial da cerimónia foi indisfarçável. Contemplado com um Prémio de Impacto Global, destinado a artistas negros, Jay Z deixou duras críticas por a entrega dos prémios nas categorias de hip-hop não ter recebido honras de transmissão televisiva. “Passou muito tempo desde que o Will Smith e o Jazzy Jeff ganharam o seu primeiro Grammy, em 1989, e boicotaram a cerimónia porque essa entrega não iria ser transmitida pela televisão”, lembrou. “Adoramos-vos. Mas, pelo menos esforcem-se”, foi a punchline. Nos 50 anos do hip hop, foi a cereja no topo de um bolo azedo. Uma ofensa apesar de os números estarem em quebra. Um arquitecto como Killer Mike nunca teria hipóteses de vencer na categoria específica de Melhor Álbum de Hip Hop perante os empreiteiros das grandes construtoras civis.
O rapper sabe o que a casa gasta e como se justificam as despesas. A discussão de Beyoncé está para além da subjectividade. “Mesmo pelas vossas métricas, não faz sentido”, contestou. Eis Jay Z a acariciar a ferida que nenhum vídeo do TikTok ou do Instagram vai expor. Porque observar os factores socioeconómicos é analisar a procedência e o grande problema do wokismo é vestir bem e ser bem falante mas não passar para o corpo, onde as feridas sangram e as dores magoam.
Para além de todas as “vencedoras” dos Grammys serem brancas - podia ser um acaso, mas não é -, moram em palácios pop com segurança à porta e viajam em primeira classe, quando não andam de jacto privado. Phoebe Bridgers pode vestir-se de embaixadora indie de todas as causas mas já percebemos que é alguém resignada à engrenagem da máquina e, se não fosse por ela, as Boygenius estariam confinadas à categoria Alternativa. O problema não está em gostar-se mais da era romancista Lana Del Rey, dos floreados de Miley Cyrus ou da reactividade Primark de Olivia Rodrigo. Nenhuma delas é desconfortável, todas são altamente rentáveis e aceitam ser usadas em troca de poder.
Quanto mais combativa é a postura, mais incoerente é a conivência com os esfoliantes de representatividade. Talvez tenha sido por isso que Billie Eilish se apresentou de óculos escuros, para disfarçar a encenação. Em todo o caso, um deslumbramento, autêntico ou teatralizado, patético. Porque esta forma de capitalismo pop, que inflacciona o preço dos bilhetes até à penthouse de um arranha-céus na Quinta Avenida, e involuntariamente mata pessoas em concertos, quando estas são impedidos de entrar com garrafas de água em estádios, apesar da sensação térmica ser de 60º, como sucedeu no Rio de Janeiro, não tem género.
Pior: os Grammy aprenderam a capitalizar sobre a contra-cultura automatizada e a manipulá-la para branquear viciaçōes. Sim, trata-se da celebração de uma indústria multimilionária, mas se é para haver equidade, então que tenha alguma justeza. Até entre as mulheres. E entre as classes historicamente subrepresentadas. De outra forma, é apenas um paliativo para alimentar ilusōes de mudança enquanto o social-liberalismo continua a varrer as ruas à velocidade de um tornado 5G com resolução 4K.
Como também já se percebeu, os Grammy, e os prémios em geral, há muito perderam o respeito. Na sua ignorância e mau fígado de quem não aceita ter ficado para trás na F1, Drake acusou-os de não se basearem “em factos” e de serem apenas “a opinião de um grupo de pessoas cujos nomes são um mistério". O problema é precisamente o oposto. É a canibalização das métricas, e os interesses associados, sobre toda e qualquer leitura subjectiva - razão porque as grandes lotarias estão vedadas ao circuito independente. E porque os únicos prémios credíveis, pela subjectividade assumida, são o Mercury e o Polaris. Empoderamento e representatividade mas para quem anda de Tesla e acredita que as baterias de lítio salvam do degelo da Antártida.
Além da conquista de Killer Mike, o único pingo de verdade da noite chamou-se Joni Mitchell. Os Grammys não só lhe reconheceram a importância histórica, como escritora de cançōes e artista solo num mundo machista, como deram palco a uma figura sem artifícios nem falsos discursos, que abdicou de estar no Spotify em solidariedade para com o amigo Neil Young. Isto sim é fazer justiça com equidade.