O ar irrespirável dos Mão Morta
Política e revolta nunca estiveram tão entrelaçadas como em Viva La Muerte!
Em Viva La Muerte!, há um líder invisível a trespassar a narrativa. Será o avô cavernoso? O almirante vacinado? O sonho português do americano alaranjado? Só nomeando as causas podemos encontrar respostas para a disfuncionalidade do sistema e a cura para o adormecimento colectivo. O esquecimento da memória e o risco acelerado de um amanhã silenciado estão entrelaçados. A raiva e a política sempre correram nas veias dos Mão Morta mas nunca as duas se fundiram numa só como no álbum dos números redondos: 50 anos do 25 de abril e 40 de banda. Provavelmente, o mais político de toda a sua obra.
Celebra-se a liberdade sem motivos para festejar. Viva La Muerte! é alerta, grito de revolta e sintoma de perplexidade. Como pudemos chegar aqui? Que seja a instituição bracarense a desassossegar-se e recusar o conforto de um estatuto incontestável e de um percurso sem deslizes é talvez a expressão mais extraordinária, embora sem surpresa. Bastaria escutar os anteriores No Fim Era o Frio (2019), profundamente apreensivo com a catástrofe climática, e o arbitrío jazzístico de Tricot (2023), com o saxofonista Pedro Sousa, para sentir o bafo a podre dos destroços do capitalismo.
Viva La Muerte! respira o ar asfixiante dos tempos. Pesadíssimo, brutalista e incompatível com a ligeireza do poptivismo - o sistema encontra sempre formas de se infiltrar na multidão, mesmo que implique fingir-se inimigo de si mesmo. Impiedoso, sem moderação e despreocupado de requintes estéticos como os de opus magníficas como Primavera de Destroços (2001), Nus (2004) ou Pesadelo em Peluche (2010).
Se virmos bem, o lume dos Mão Morta nunca foi brando e embora nem sempre acompanhado de choques eléctricos, porque as mutaçōes se impuseram sobre a repetição, a contestação sempre se manifestou de forma mais ou menos politizada. Pelas horas de Viva La Muerte!, o relógio é de despertar. Ainda vamos a tempo de salvar a democracia e preservar a liberdade como bem de primeira necessidade?
O tom é amargurado mas não resignado. A sementeira planta-se logo em Deus Pátria Autoridade, invocação do célebre discurso de Salazar, quando em 1936 afirmou os dogmas do fascismo. "Não discutimos Deus e a Virtude. Não discutimos a Pátria e a Nação. Não discutimos a Autoridade e o seu prestígio". Uma introdução coral abre o caminho para a entrada de Adolfo Luxúria Canibal, narrador desta decadência. “Toda a gente sabe que o trabalho liberta e forma as pessoas de bem”, recupera ao cânone nazi para reavivar os fantasmas do passado feitos mitos do presente.
O coro permanece em cena na excruciante Corre Corre Corre. A predominância liturgica atribui a esta cançōes um sentido de sabotagem espiritual que se saúda. “Uma verve de ódio nojenta/que não deixa ninguém respirar/porque és negro, cigano, judeu”. Encostados à parede pela cultura do ódio e da intolerância, podemos sentir-nos em paz quando o preconceito é projectado com tanta mesquinhez e baixeza sobre os mais frágeis? Viva La Muerte! não traz paz nem sossego. Nem este é o tempo da positividade, apesar de ter sido a crença moderada que anestesiou a normalização da bárbaros.
Escuta-se o fabuloso destino de José Mário Branco na magnífica A Liberdade. Adufes, cordas, o coro operático e uma secção jazzística livre como um mandarim. Que outra âncora poderia ser tão funda e sólida quanto a liberdade para reconhecer em JMB um herói nacional? Em 1998, o maestro das vontades esteve para produzir o situacionista Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina O Ar Se Tornou Irrespirável. Não aconteceu mas a vontade de congregar esforços era sinal de vénia que Viva La Muerte corporiza. Podemos estar a perder este jogo mas resistir é a via sacra necessária para vencer.
A reverberação de Pensamento Único é grotesca. Na pele de Trump (?), Adolfo adultera os factos em consciência para se fazer passar pelo filme surrealismo neo-realista dos telejornais. Já só existem verdades convenientes, maleáveis aos interesses e necessidades do momento. A dissimulação é tão perversa quanto bem encenada. Quando Guy Debord projectou a A Sociedade do Espectáculo em 1967, teria imaginado que nos viéssemos a tornar espectadores privilegiados da nossa auto-destruição?
A tríade Líder Povo Nação merece um refrão solar mas a luz apaga-se depressa. Os blues de Ratoeira Bélica não são animadores. Já derreados, mas ainda com um resto de energia no carregador, somos relembrados do essencial. A liberdade é poder dizer NÃO. “Ninguém nasceu para ser servil e morrer”, ouve-se como um brado. José Mário Branco não se sentia nada confortável nestes tempos mas haveria de se rever nesta catarse.
Viva La Muerte! é editado esta sexta-feira, dia 17, e apresentado na noite seguinte no Theatro Circo em Braga
Primeiros achados do ano
Iúri Oliveira - Manifesto
"Tudo o que toco são cores. Toco o que sinto e o que sinto é diferente todos os dias", jura Iúri Oliveira na sexta parte do seu Manifesto. Habituámo-nos a ver a força domada dos seus braços em concertos e cançōes de Branko, Sara Tavares, Lura, Helder Moutinho e Eduardo Cardinho. Nas percussōes, a extensão de um corpo refém do ritmo mas não da força. Manifesto é afirmação de personalidade própria num acto contínuo de diálogo entre fisicalidade e espiritualidade, ruído e silêncio, texturas e imaterialidade. Como se os instrumentos fizessem parte da família do percussionista e esta fosse uma conversa particular com todos eles.
Boldy James & RichGains - Murder During Drug Traffic
Encoberto por uma nuvem de fumo, Boldy James exercita o neo-realismo em lentos contos sobre o crime e castigo do tráfico nas ruas enquanto RichGains monta um puzzle de rock psicadélico, funk lisérgico e sintetizadores dormentes. Três álbuns em 2024, com Nicholas Craven, Conductor Williams e Harry Fraud, não o desgastaram. O rapper mais virtuoso da Griselda, a par de Benny The Butcher, entra em 2025 como terminou o ano transacto. Neste caso, com um grandessíssimo álbum de rap não-recomendável em aulas de reiki.
Matthew Tavares - i once prayed for this life
Matthew Tavares saiu a mal dos BadBadNotGood, banda que ajudou a fundar e que abandonou ao fim de nove anos por divergências. Desse jazz pós-académico, pouco resta. i once prayed for this life segue uma partitura clássica, transmissora de paz e harmonia. Se o título do mini-álbum só para piano do primeiro dia de 2025 parece ser auto-referencial, nas mãos de Tavares há profundo respeito por um silêncio amortecedor de atrocidades e pela escuta como lugar sagrado de interioridade e conhecimento.
Tom Rowlands - M - Son of The Century
Será esta a fórmula química mais perfeita desde Born In Echoes? Embora a banda sonora da série sobre o ditador Mussolini tenha apenas o dedo de Tom Rowlands, são os Chemical Brothers quem está aqui com tudo por que são aclamados. Tensão, êxtase, controlo emocional, inteligência, sirenes, rasgos de electro, perseguiçōes e fintas às câmaras. Música capaz de projectar um enredo imagético e contar a sua própria história.
PMDS - Live
Do miradouro açoriano de Filipe Caetano e Pedro Sousa, vê-se o infinito da relação entre tempo e espaço. Música para Miradouros, o álbum onde esta reprodução do exercício sensorial do duo se vem servir, só podia ter raízes insulares no esplendor da natureza. As atmosferas respiram como o pulmão das árvores e suspendem o tempo como o gelo. Ao longo do último ano, os dois transportaram o isolamento de ilhéus para algumas apresentaçōes. Live é justamente culminado com as Sete Cidades.
Loraine James - New Year's Substitution 3
De cinco em cinco anos desde 2015, Loraine James pōe o pé no novo ano com um EP. Neste terceiro volume, cada uma das quatro peças tem vida própria em comunhão de bens com Coby Sey, Kavari, KMRU e ML Buch. E é quando o som cristalino das seis cordas da dinamarquesa cai do céu que todos os elementos entram em absoluta harmonia.
Paa Jude - Seaman Jolly (reedição)
Na capa, Paa Jude insinua-se um Michael Jackson da sua pátria. O Gana, nação materna do highlife, fusão de afrobeat com motivos rítmicos afro-americanos, que, redescoberta após redescoberta, não desgasta os poderes curativos. Sem pudor de ser pop, Seaman Jolly é música quente, viva e luminosa para festejar, dançar e rir. As quatro peças são longas mas nunca lhes falta o lubrificante de uma diáspora em trânsito dos confins da memória para uma actualidade pertencente.