Um álbum de verão não tem de obedecer a uma hierarquia cronológica de informação nem sequer a uma ordem racional. California Sigh não entra nos critérios de música nova, nem sequer era moderno no seu tempo, mas é uma novidade absoluta e até pela desvinculação de quaisquer padrōes de actualidade tem outro valor na sua apreciação emocional. Do nada, irrompeu como um raio de luz por sugestão da newsletter da Flur e tão cedo não se vai pôr.
Como é possível ter mantido esta história em segredo durante mais de 30 anos? É a pergunta que fica em suspenso. Lee Underwood foi guitarrista de Tim Buckley até este partir em 1975. Depois, foi editor da revista de jazz downbeat e assinou artigos para a Rolling Stone e para o Los Angeles Times.
Debaixo de um sol, gravou California Sigh em 1988 mas a distribuição privada em cassete foi incompatível com a entrada no circuito comercial. Mais de trinta anos depois, a Drag City resgata esta autêntica relíquia. Um achado de serenidade e placidez, caçador de fantasmas e eficaz como um tranquilizante. Desacelerar é o verbo, como um rio a escorrer lento sobre as rochas, da obscuridade para a surpresa até chegar à foz. Música psico-espiritual devolucionária do tempo e da beleza com a paciência necessária para ser bebida em goles lentos.
Imagine-se Underwood a observar desde o selim da bicicleta de óculos escuros em Santa Mónica. Esta música, que podia ter nascido no grande desfiladeiro folk americano dos anos 60, é feita à medida para diminuir o stress. Provavelmente, nem partiu de nenhuma intenção mas nas cordas de nylon da guitarra há tranquilidade e suspensão do tempo. California Sigh está no limiar de algum new age barato, confundível com a dialéctica actual da auto-ajuda, mas essa proximidade nunca chega a ser um precipício em boa parte devido à simplicidade. A recolha de sons da natureza transmite autenticidade e emerge-o na paisagem. Não se ouve o som da água mas ela está por toda a parte.
Inteiramente instrumental, foi produzido com subtileza pelo mago dos sintetizadores Steve Roach. Além do fio condutor da guitarra de Underwood, as camadas são ligeiras e contribuem para o suavidade do disco. A costura de Midnight Blue evoca o primitivismo de John Fahey mas é sol de pouca dura. O espírito da paz influencia o clima emocional de California Sigh. Um resistente à passagem do tempo sem sinais de sofrimento em cofre. Medicamento eficaz para a era da ansiedade, sem contra-indicaçōes.
Original de 1988, California Sigh foi reeditado pela Drag City e está disponível na loja da Flur
Recomendaçōes não-algorítmicas
Childish Gambino - Bando Stone & The New World
O álbum em que Childish Gambino se desvincula do heterónimo não é série de um episódio só. Como uma despedida, a multitude de geografias de Bando Stone & The New World devolve-o a lugares onde foi feliz, das superfícies metalizadas à Kanye West de Yeezus, à pop radiofónica, a planícies acústicas e exercícios de auto-citação. Quando o sample de Breathe dos Prodigy explode com Got To Be, sente-se um salto sem corda, ausente no resto do álbum, mas as peças estão bem encaixadas nos diferentes papéis e cenografias.
Mourning [A] BLKstar - Ancient//Future
O afrocentrismo tem queda para o free jazz, como pode testemunhar Moor Mother, mas o Ancient/Future dos Mourning [A] BLKstar tem alma soul, quente e orgânica. Embora não se definam por regiões musicais, a linguagem híbrida reenvia-nos para os War de World Is a Ghetto, Sly Stone, Parliament ou Canned Heat. Metais, profecias e caos próprios da turbulência dos tempos. Pode parecer que muito mudou quando ficou tudo na mesma. Hora de acordar do sonho e lutar.
Luke Temple and The Cascading Moms - Certain Limitations
O título engana porque mais do que aceitar as limitaçōes, Luke Temple testa os limites. Vence-os ao desvincular-se do livro de estilo dos Here We Go Magic e de Art Feynman para se entregar a cançōes de desenho acústico com a moleza de Mac DeMarco, o recorte dos Dire Straits (sem medos) e a relação espaço-tempo dos discos da ECM. "Um produto da serendipidade", apresenta. Até a desaceleração precisa de chama viva para aceitar a mudança.
NegoO - Ta Brinca
NegoO não é Fox mas o sangue que lhe corre é da Príncipe e famílias próximas como a da Tia Maria Produçōes. Criado em Queluz, embora a residir em Paris, a batida de Lisboa atravessa Ta Brinca, sobretudo quando se atravessam no caminho actores conhecidos como DJ Danifox e DJ Adamm em Vou se Banzelar, e Lycox e Vanyfox em Botão Vermelho. Ainda é um EP formativo mas já tem tudo o que precisa para desarrumar o quarto: o recreio, a frescura e o batuque.
Spring Heel Jack - Masses (reedição)
Há vinte anos, os Spring Heel Jack eram o Santo Graal do novo jazz ao abrir canais entre o livre arbítrio free e o progresso digital, mas Masses (2000) deixava para trás o drum'n'bass para se enredar numa teia textural e explorar sinergias com a electroacústica. Tudo tocado em tempo real em nome da liberdade e do dever de arriscar. Continua a ser um corpo estranho, talvez hoje mais difícil de assimilar. Só lhe fica bem.