Sempre que alguém fala na morte do hip-hop, um coala cai de uma árvore na Austrália. O hip-hop, como o rock ou outro género socialmente maturado, nunca morreu e está muito longe de receber a declaração de óbito. O que há é uma desvirtuação da primazia contra-cultural de combate e experimentação, em favor do esclavagismo do algoritmo, e por outro, uma reacção natural de regresso às bases, palpável em movimentos como o da Griselda, que traz o hip-hop para uma concepção de música devolucionária mais do que para qualquer ideal de revolução. Há vinte anos, era esta a fotografia do rock quando bandas como Strokes ou Franz Ferdinand revisitavam o punk arty nova-iorquino e a new wave inglesa.
Nos últimos, álbuns de grande porte como Mr. Morale & the Big Steppers, de Kendrick Lamar, Call Me If You Get Lost, de Tyler The Creator ou, no limite, The Forever Story, de J.I.D. e It’s Almost Dry, de Pusha T arriscam-se a ser criaturas estranhas para o meio. Espelham a diferença e não uma norma nivelada por cima. É nos arredores que subimos em queda livre como em Maps de Billy Woods, The Price of Tea In China de Boldy James, o muito politizado RTJ4 dos Run The Jewels, Room 25 e Sundial de Noname ou em arquipélagos mais afastados como Sometimes I Might Be Introvert e No Thank You, a dupla avançada de Little Simz - álbuns venerados pela massa crítica mas serão assim tão centrais se comparados com os 128 milhōes de streams só no primeiro dia de Utopia nas plataformas digitais. O sismógrafo responde que não.
Zonas cinzentas. Onde o risco é dever e o impacto é o saldo do processo. Não há ninguém como Jpegmafia. Incendiário, excêntrico e desafiador. Depois de ter trocado fluídos líricos com Danny Brown em Scaring the Hoes do ano passado, I Lay Down My Life For You destaca-se pela produção ousada e aventureira, como deixou de se congeminar nos laboratórios rítmicos. Jpegmafia não abdica de ser ele mesmo, contra os padrōes assinalados, e traz-nos um álbum pungente com samples clássicos, riffs de heavy metal e instrumentais de house aeróbico. Caos ordenado pela turbulência convicta de um discurso que nem nos temas cede ao facilitismo.
Drake é visado na virulenta It’s dark and hell is hot e na sinergética New Black History, com Vince Staples, uma das cabeças mais lúcidas na feira de vaidades do rap americano, mas a acção é definida pela autenticidade viril de Jpegmafia, salgada por episódios de surrealismo. É um disco feito como lhe apetece, sem concessōes nem jaulas criativas. Em vulgar display of power, a referência nada inocente aos Pantera, é representativa da transcendência dos limites do rap. No princípio está o verso rispído, contundente e sem cerimónias, mas Jpegmafia não se deixa aprisionar pela hipernormalização e segue o instinto torpedeante. A reminiscência dos Public Enemy é natural e saudável. I Lay Down My Life For You não é disco de rap-rock mas é um disco de hip-hop em que as guitarras contrapōe às máquinas para criar efeitos de impulsividade e contracção das normas. Se é para formar mosh-pits, um minuto de Jpegmafia vale mais que todos os reacendimentos gratuitos de Fe!n.
Enquanto Jpegmafia se nutre do profano, Killer Mike reencontra-se com o sagrado em Songs For Sinners and Saints, segunda parte do autobiográfico Michael com sete inéditos e três reformulaçōes espirituais a partir do álbum do ano passado. O vencedor do Grammy de Melhor Álbum de Rap do ano passado valeu a Michael Render o justo reconhecimento em nome próprio que só conhecera com os Run The Jewels. Para os mais novos, quem era aquele quasi-cinquentenário que bateu…Travis Scott?
Michael partia de sólidas fundaçōes no rap militante e resistente, assistido pelo bairro e pelos seus pares de Atlanta, como André 3000, já na pele de flautista, e Future. Se há rappers que não trocam a verdade por barras de 24 quilates, Mike é um deles e um álbum com o seu nome só poderia ser desconfortável e doloroso.
Escriturado como Michael & The Mighty Midnight Revival, fala pela emancipação dos seus, a classe operária de negros afro-americanos, invisível e silenciada, com ou sem Donald Trump e o Partido Republicano. Em Songs For Sinners and Saints, nada muda a não ser a roupagem das cançōes, uma babilónia das culturas musicais do sul. O gospel é uma representação estética do reencontro com a fé. Sentimo-nos como numa igreja, a seguir os passos do piano e as profecias religiosas enquanto Mike recita convicçōes, ideais e angústias pessoais de observação colectiva, com o dramatismo dos pastores. Este segundo assalto deve tanto ao liricismo como à Bíblia. Em nome do rap e do Espírito Santo.
Recomendaçōes não-algorítmicas das últimas semanas
Jack White - No Name
Jack White percebeu que as cançōes são insuficientes para falar pela música e provocou um momento de comunicação ao distribuir secretamente o novo álbum através da loja da Third Man, incentivando à partilha. No Name é o sucessor natural de Blunderbluss e Lazaretto, os actos contínuos pós-White Stripes, por isso os seus mais consequentes. Sujo, potente e libertador como um disco de rock ainda pode ser, com riffs possuídos pelo demónio de Robert Johnson, um Hammond celestial e uma secção rítmica à Led Zeppelin - blues até ao nervo hipoglosso. Ainda por cima, soa a cassete gravada na garagem com as pistas a sair directamente dos amplificadores. Depois dos despistes de Boarding House Reach e principalmente do medíocre Fear Of The Dawn -Entering Heaven Alive atenuava mas não salvava, Jack White descomplica para voltar a ser apenas o que é. No Nome tem rock'n'roll de karaoke em How I'm Feeling, o rebuçado Tonight Was a Long Time Ago para enfiar nos concertos entre Steady As She Goes e I'm Shakin e um Hate To Say I Told You So pessoal em Missionary.
Moses Sumney - Sophcore EP
Não é um Moses Sumney de talha dourada, confiante na sua fragilidade como nos soberbos mas é uma voz luminosa e enlevada, a aceitar as regras da maré, como quem vai na onda de verão, sem perder a identidade sedutora, intuitiva e astral.
julia-sophie - Forgive Too Slow
O nome de julia-sophie não constava das actas mas Forgive Too Slow diz que merece. Pop digital pós-Bristol, com arquitectura industrial fria e rigorosa, devota dos Depeche Mode, a contrapesar uma voz doce, projectada a partir da intimidade. Esta retrospectiva de vanguardismo já não gera nenhum tipo de surpresa mas o que podia ser um objecto perdido de final de milénio é um confortável reencontro em 2024.
Action Bronson - Johann Sebastian Bachlava The Doctor
No consultório do Johann Sebastian Bachlava, o colestrol é medido em versos e a pressão arterial em beats. Jocoso e ridículo, Action Bronson não confunde graça com palhaçada. O princípio do humor é a inteligência e a voz rouca de narrador é o GPS de uma história em que real e ficção se intersectam.
Bill Callahan - Resuscitate!
Os melhores álbuns ao vivo não varrem a poeira. Preservam a sujidade e expōe o erro - de outra forma, seriam apenas gravaçōes ao vivo limpas pelo estúdio. Em Resuscitate!, Bill Callahan reformula as cançōes familiares do seu repertório com uma banda fabulosa (Jim White, Matt Kinsey e convidados de luxo como Joshua Abrams e Lisa Alvarado dos Natural Information Society), versōes extensas como a de Coyotes e a consciência humana de que os concertos não se vêem apenas, sentem-se.
Dave Harrington - Skull Dream
Dave Harrington encontrou o seu círculo e não se quer separar dele, nem quando está no centro. Conhecemo-lo com Nicolas Jaar nos Darkside, e a improvisar com Alex Bleeker (Real Estate) e Chris Thompson (Vampire Weekend). Em Skull Dream, persiste no associativismo a cúmplices como Spencer Zhan e Steven Bernstein, e no interesse pela subconsciência. A música pode ser viajante, suspensiva, sombria e solar, como uma retrospectiva de episódios anteriores recriados numa nova odisseia.
Meshell Ndegeocello - No More Water: The Gospel of James Baldwin
Titânica a celebração do centenário de James Baldwin pela baixista e poetisa intervencionista Meshell Ndegeocello, como se deixasse o corpo do escritor possuir-lhe a alma. Do racismo à religião, amor, sexo e ética, Baldwin adivinhou o futuro . Meshell extrai-lhe a raiva e a angústia com a mesma intenção. Tão sincero que se torna perturbador.
De Schuurman - Bubbling Forever
O sangue do Suriname do neerlandês Guillermo Schuurman ajuda a compreender Bubbling Forever.A rota tem o UK Funk como o capital e afluentes como dancehall, electro, EDM e o R&B a alimentar a alta voltagem de um álbum nascido e criado em ambiente de clube, representativo da cultura electrónica holandesa e da diáspora. De Schuurman tem tanto de funk de 2011, como da efervescência dos anos 90, como das transformaçōes etnográficas actuais.
Samara Lubelski & Bill Nace - 43/80
O consórcio anti-pop da violinista Samara Lubelski e do improvisador Bill Nace volta a entrar em acção, depois de uma primeira conjunção. Duas longas peças agem como tempestade hipnótica (Gravity Drains) e bonança de paz (Polarity). Música de quem vive à escuta do desconhecido imaterial.
Adorável Clichê - sonhos que nunca morrem
Por sugestão da newsletter do Miguel Rocha, shoegaze catarinense quente, vivido e escrito com inteligência. Como o nome sugere, não há qualquer preocupação em dar voltas ao sol. A virtude do Adorável Clichê está na autenticidade que os Cigarettes After Sky nunca tiveram.
M-Pex - Livre
Na sombra, Rui Dinis encontrou o resguardo para ser livre. E daí não se demove. Ao contrário de experiências híbridas anteriores, Livre devolve-o à prática clássica da guitarra portuguesa com pequenos frisos digitais e conversas com o contrabaixo. Belo.
Veelain - After a Butteflly Dies
Da natureza para a ciência e do laboratório para a gravidade espiritual. O produtor portuense pega na passagem de uma das cartas do poeta John Keats para conciliar natureza e humanidade através da tecnologia. Beats, glitch e música ambiental para perder os pesos e voar.