Maravilhada, Kelela não contém o deslumbramento ao pisar as tábuas do clube de jazz Blue Note, em Nova Iorque. “Vim aqui pela primeira vez aos nove anos. É como um círculo que se fecha”. O brilho nos olhos é fogo a arder em luz baixa. In The Blue Light rediz a ideia enquanto vinca a comoção. “Há muita gente que tem o objectivo de actuar para públicos maiores. Eu sempre tive o sonho de estar aqui”, comenta para gáudio de uma plateia quente que é, também ela, parte da vibração de um álbum ao vivo em fuga dos padrōes.
In The Blue Light fecha as fronteiras da reinvenção digital e, desse modo, fantasia a imortalidade. Não faz repetir, nem quer crescer. Como explica sem demasiadas palavras, segue o mapa do coração enquanto se acalora em leito jazzístico. Se a voz atraente e calorosa, educada pelo feitiço do r&b, sempre amanteigou a arquitectura vanguardista desde a primeira mixtape Cut 4 Me (2013), neste retrato intimista e a sépia, abdica do futurismo e reveste-o com formas clássicas. Os arranjos magistrais para piano, teclados, contrabaixo e bateria ocupam o espaço primordial da electrónica sem lhe queimar a terra.
O corpo deslumbrante de cançōes como Bankhead e Blue Light é reconhecível mas a agilidade e leveza de Kelela dispensam a necessidade de adaptação a um novo papel. Apesar de In The Blue Light contrastar da experiência laboratorial de estúdio, para se entregar a uma humanidade apenas passível de ser contemplada em palco, toda ela é naturalidade e despojo. Privada de camadas, a interpretação para voz e piano de Bankhead tira-a do pedestal de deusa. Em Waitin, ouvimo-la a deitar-se na cama de rosas de Sade. Angelical e carnal, In The Blue Light vive bem nesse ciclo inseparável entre controlo emocional e espasmo. Ouve-se proximidade, respiração e as cordas vocais a confessar-se.
Quando se entrega a Furry Sings the Blues, de Joni Mitchell, In The Blue Light define o propósito de homenagear os clássicos. Kelela passa a fazer parte deles enquanto declara uma identidade própria, filha de diversas ancestralidades - tudo faz sentido na versão estelar para harpa de Furry, assombrada pela espiritualidade de Alice Coltrane. Apesar de se ter despreocupado com a inovação, Kelela regenera-se. Voltar ao princípio embrionário também pode ser uma forma de metamorfose.
Kelela - In The Blue Light (Warp)
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John Glacier - Like A Ribbon
Ela não rappa, ela conta histórias sussurradas desveladas num manto de dióxido de carbono. Como o Tricky dos anos 90, John Glacier pratica habilidades na arte de caçar fantasmas e exprimir camadas subterrâneas, mas enquanto, nos anos 90, o trip-hop tingia de óleo a beleza, Like a Ribbon desarruma-a. Em meia-hora, a espiral de drill, rock neurótico, drum'n'bass e soul desencantada serve a catarse poética da londrina. Um daqueles álbuns que fala por uma comunidade, de Tirzah a Coby Sey, movida por principios adversativos que já dispensam géneros para se posicionar. Porém, Glacier transmite uma auto-confianca incomum para quem se move na marginalidade. Like a Ribbon é prato forte mas vamos ouvir falar mais dela.
Marshall Allen - New Dawn
Espantosa vitalidade de Marshall Allen. O saxofonista da Sun Ra Arkestra celebra a entrada no restrito clube dos centenários com um álbum-banquete servido por metais resplandescentes e um pulsar que de término ou despedida nada tem. Allen sumariza a prática de uma vida para se lançar a uma nova madrugada. E dançar uma pequena valsa com Neneh Cherry. Largos dias têm cem anos.
Fernando Triste - Coisa Nenhuma
Imagina-se Fernando Triste escrever e produzir para escapar ao vício do scroll. Cançōes que vêem o sol a chover da janela e repercutem solidão e neura. Coisa Nenhuma é a resposta ao desalento, consumada na retropop romântica veículada pelos OMD ou Human League, e na sua versão mais recente, pelos Nation of Language. Sentado no lugar do morto, não esconde uma inocência formativa que faz as cançōes mais sinceras. Evitam-se as segundas intençōes e os lugares comuns. Em Corpo Oco e Escorpião, o espírito de Ana Lua Caiano faz uma visita sem o adufe, mas Coisa Nenhuma está muito mais próximo de ser um contemporâneo da Fundação Atlântica e de sonhos pop como Em Campo Aberto, de Carlos Maria Trindade, do que da nova música popular portuguesa. Um objecto curioso.
Black Milk e Fat Ray - Food From The Gods
Alimento para a alma sem restos nem desperdício. Food From The Gods é rap franco-atirador com aliados de sangue como Danny Brown, Guilty Simpson e Bruiser Wolf, sobre peças instrumentais de cristal.
Trent Reznor e Atticus Ross - The Gorge
As tensōes, os crescendos e o melodismo pertencem à mesma genealogia dos Nine Inch Nails, é bom recordar inúmeras bandas sonoras depois, desde que Trent Reznor e Atticus Ross se dedicaram a musicar os fantasmas na ficção. O único risco da música de O Desfiladeiro é o risco do virtuosismo da dupla se repetir. Depois de no ano passado se terem dedicado a Challengers e Queer de Luca Guadagnino, e a The Bear, não abrandam em 2025. Na forja, estão ainda Tron: Ares, para a Disney, e Afther The Hunt, de novo para Luca Guadagnino. Faz parece a digressão dos Nine Inch Nails, com escala no NOS Alive, um facto menor.
Civilistjävel! - Följd
Tomas Bodén e o seu arsenal silencioso de máquinas fazem muito com pouco. Pequenos sons moleculares crepitam como pistas e indícios de um nevoeiro sem fim, insinuado por um exercício notável de sonoplastia. De ser solitário a ser solidário.
Ultramarine - A User's Guide (reedição)
O elo perdido entre Detroit, Berlim e a Blue Note. Pela primeira vez disponível em vinil, o álbum de 1998 dos Ultramarine tanto se relaciona com a densidade dos Autechre, como com o balanço de Carl Craig, mas os acordes no topo das camadas são notoriamente jazzísticos. Exercício de época livre de espírito e intrigante na sensação de espaço criado pelos silêncios e vazios.