“Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábadooooo, domingo! Vai a malta passear.
Sete dias na semana, e um só p'ra descansar”. Em 2013, Sérgio Godinho repescou a canção de trabalho do popular Conjunto António Mafra para as Caríssimas Cançōes dos outros de que fez suas, e voltou a dar-lhe ouvidos na digressão Liberdade 25, deste ano, por motivos nada fúteis. Ora Vejam Lá é a tradução para português de uma música inglesa de protesto e reivindicação pelos dois dias de descanso semanal dos trabalhadores do comércio. Quando se discute uma evolução civilizacional para a regulamentação de quatro dias semanais de trabalho, o sentido de oportunidade de Sérgio Godinho é de mestre. E não é pelos motivos sindicalistas que a canção perde a fé na festa. Ora Vejam Lá é ligeira, folclórica e intencional.
Nas semanas dos Santos Populares, dois novos singles pop trouxeram a música popular à baila. Cláudia Pascoal convidou o ex-trapper e actual renovador da música de baile Mike El Nite, filho de Joaquim Caixeiro, fundador da Brigada Victor Jara, popularizado como Quinzinho Portugal, e a cantora “pimba” Rebeca, para a auto-explicativa Três É Demais. A estreia em televisão aconteceu no programa Feriadão, por onde passam semanalmente passam as vozes da música popular portuguesa, desde os Diapasão a Micaela. “A composição desta canção começou num lugar, no qual, onde só conversas importantes nascem: numa tasca. Eu pedi rissóis de camarão. E o Miguel pediu bifinhos. A partir daí foi magia. A Rebeca foi a colaboradora que ambos desejávamos há muito e finalmente o mundo colaborou para isso acontecer”, conta Cláudia Pascoal, criada entre bailaricos em Barcelos, no comunicado de apresentação.
O picante, explica, está na “hipotética relação com uma vontade de ser estendida para um terceiro elemento. Um é pouco, dois é bom, mas três já é demais!”. A fartura com óleo é coerente com as raízes minhotas de Pascoal, que nunca negou a veia popular e já tinha protagonizado um dueto pouco improvável com Marante em Onde Vais Amanhã. Três já é demais insere-se num movimento de dessacralização e humanização da cultura pimba, assumido pela primeira vez sem sofismas na dignificante série Deixem o Pimba em Paz, de Bruno Nogueira, posteriormente transposta em espectáculo com a banda dos Humanos (Nuno Rafael, Manuela Azevedo, Hélder Gonçalves) e a direcção musical de Filipe Melo. Tal como Marina Mota, que passou anos a fazer comédia duvidosa, é uma respeitável dona do Motel Valkiria, o cancioneiro de Quim Barreiros, Ágata, Marante e Marco Paulo ganha o direito a uma segunda oportunidade e tornar-se inconfundível do original vestido de ganga, T-shirt e Adidas Superstar.
A pimenta perde o palato a refresco quando chega à nada inocente Deixou-me a Mala no Comboio (ler em voz alta se o trocadilho não for entendido à primeira) de Bárbara Tinoco e da popular Rosinha, estreada entre o Santo António e o São João. As intençōes podem coincidir com as de Cláudia Pascoal: absorver a cultura de coreto, projectá-la noutra direcção em época alta e, quem sabe, desabrochar novas alíneas para desmistificar a imagem de baladeira derrotista (Chamada Não Atendida, Não És Tu Sou Eu) de Tinoco. Só que enquanto o threesome de Cláudia Pascoal pára no amarelo, Deixou-me a Mala no Comboio transpōe a perigosa linha vermelha da misoginia. Como mulher e voz feminina portuguesa mais ouvida no Spotify em 2023, Tinoco tem uma visibilidade e conotação incompatível com a representação da mulher subjugada e subserviente do homem em Deixou-me a Mala no Comboio.
Não é preciso explicar porquê, o título fala por si mas até as sardinhas estão caras e o menosprezo das palavras tem uma factura. Deixou-me a Mala no Comboio só ajuda a disseminar e banalizar um mal já por si exposto em maillot aos fins de semana à tarde em canal aberto nas televisōes portuguesas. As cançōes pimba estão cheias de conteúdo misógino e até as cantoras aceitam alinhar e contribuir na infantilização e objectificação. Se da Rosinha de Eu Chupo e Eu Levo no Pacote não se deve esperar mais do que nada, porque esse é o seu ganha-pobre, de Bárbara Tinoco pedia-se outro tino além de uma operação de marketing em que a aparente autenticidade e a assumida frivolidade não se podem confundir com irresponsabilidade.
Aquando da estreia, justificou o dueto nas redes sociais com um verão azul. “Quando tinha 18 anos estagiei numa agência de música que agenciava artistas de música popular! Passei aquele verão todo a ouvir Rosinha. A ir beber deste género musical. A chorar de tanto rir com as letras, com os trocadilhos. Ficou óbvio para mim, que tinha de escrever uma canção assim antes de morrer. É difícil pra caraças mas é muito divertido tentar. Disse a mim mesma que ou gravava com a Rosinha ou não gravava”. Na publicação seguinte, voltou ao porquê: “É a música das sardinhas, das grinaldas, do manjerico, das marés de gente, das noites quentes, da alegria contagiante, do pezinho de dança e do fogo de artificio (…) A música popular é livre, divertida e despreocupada. Não se leva demasiado a sério. É cá da terra e tem muito encanto”. Mas a Maria Albertina de Variaçōes tinha outra classe.
À parte as lembranças pessoais, as justificaçōes de Tinoco não colhem. Vamos falar da desresponsabilização da linguagem? É ver os efeitos da banalização da dialética xenófoba em grupos migrantes atacados por fascistas. Deixou-me a Mala no Comboio é uma oportunidade perdida, pela sua visibilidade (primeiro lugar nas tendências do YouTube nos dias a seguir à estreia, 370 mil visualizaçōes em duas semanas) de redefinir o discurso e, no mínimo, reflectir sobre o lugar da mulher nesta cultura. Não deixa de ser irónico ver alguém como Carolina Deslandes a pedir nos comentários um álbum da colaboração entre Tinoco e Rosinha. Diz muito sobre as reais intençōes da defesa de causas como o feminismo pelas madrinhas do algoritmo e também da diluição do efeito das palavras, excepto, claro, quando a agenda traz atenção e seguidores para fazer subir o cachet.
Tinoco, Rosinha e o jogo da mala são parte de um problema maior, pago com os nossos impostos. Se a opção programática das privadas SIC e TVI é discutível pela desproporcionalidade desta cultura, em relação a outras, e pouco ética nos modos - as câmaras pagam milhares de euros para receber programas como Domingão e Somos Portugal, quantas vezes com praças vazias. Com que interesse? -, no caso da RTP a mímica de um formato tão duvidoso, pouco expressivo nas audiências e ainda menos nos hábitos de consumo é um insulto aos portugueses. Tantas vezes se questiona o machismo em culturas tradicionalmente masculinizadas como o rap e a música electrónica de dança, e quando o som e a imagem entra pela garagem da vizinha não há quem mude de canal.
O mediatismo da música ligeira na televisão está desfasado da sua real importância e retira espaço de atenção a outras formas de expressão mais relevantes e ouvidas. Veremos até onde nos leva a mobilidade social do pimba, defendida por Cláudia Pascoal, Mike El Nite, João Não ou Chico da Tina. Se Pedro Mafama estivesse entre os nomeados da categoria de Música Ligeira e Popular, não chocaria ninguém e ter-se-ia emitido um sinal de mudança, mas tão importante como a compreensão desta cultura para a sua recontextualização, é a resignificação de símbolos e tradiçōes culturais tão actuais e respeitáveis como a tauromaquia. Touradas só na cama.