Em 1997, P. Diddy, ou Puff Daddy como ainda era tratado, estava no cume da carreira como rapper. Após quase uma década a trabalhar como gestor criativo na Uptown Records, a impulsionar Jodeci e Mary J. Blige para voos mais altos, e a dirigir a por si fundada Bad Boy Records, era chegada a sua hora. A nata da Costa Este (Notorious B.I.G., Busta Rhymes, Jay-Z, Lil’Kim, Mase, Twista, Foxy Brown, Ginuwine) reuniu-se em No Way Out, álbum de estreia do rapper-magnata do qual seria extraído o clássico instantâneo I'll Be Missing You. No verão de 1997, o single disputava o lugar cimeiro da economia MTV da atenção com Bittersweet Symphony dos Verve. Por coincidência, ambos partilhavam a mesma técnica de alfaiate. Eram modelados sobre samples: Richard Ashcroft vagueava pelas ruas de Londres, indiferente à matilha, embalado pelas cordas de The Last Time, dos Rolling Stones, numa interpretação da Andrew Oldham Orchestra, enquanto Diddy contracenava com Faith Evans na apropriação de I’ll Be Missing You dos Police, renomeada I’ll Be Missing You. Em ambos os casos, a falta de autorizaçōes resultou em litígios na justiça resolvidos a favor dos autores.
Comparado com as atrocidades descritas em A Queda de P. Diddy, este episódio assemelha-se a um miúdo a roubar maçãs no caminho da escola para casa, mas dá para perceber a sensação de impunidade. Nesse mesmo período, a Vibe dedicou-lhe uma capa tão premonitória como consciente do lado negro da força. Após a entrevista e respectiva produção fotográfica, que o vestiu com asas brancas de anjo, Sean Combs exigiu ver a revista antes de ser enviada para a gráfica. Danyel Smith, ex-editora da Vibe e da Billboard, recusou. Diddy insistiu. A jornalista bateu o pé. Não era política interna mostrar as páginas aos entrevistados antes da publicação. Insatisfeito, o rapper ameaçou-a fisicamente. Se não permitisse o acesso antecipado à edição da Vibe, seria encontrada morta na bagageira de um carro. O caso seguiu para o advogado de Danyel Smith, e hora e meia depois, um pedido de desculpas era enviado via fax.
O episódio principia o documentário sobre a ascenção de Diddy, o multi-milionário mais temido de Nova Iorque, e a queda de Sean Combs nos calabouços, acusado de violar uma adolescente de 13 anos, abusos sexuais constantes, além da queixa de violação e agressão da ex-namorada Cassie Ventura - um vídeo de 2016 captado por câmaras de videovigilância de um hotel mostra-o a empurrar e agredir a cantora aos pontapés. O episódio com Danyel Smith não começara aí. Dias antes, Diddy e dois capangas tinham-se dirigido ao edifício da Vibe à procura da editora. Esta refugiou-se graças ao zelo protector da sua equipa mas a ameaça deixou-a bloqueada. No documentário, confessa não ter memória do caso. Como um disco apagado. E se não fosse a equipa a restaurar o ficheiro, o perturbador depoimento com que o império de Diddy começa a implodir aos nossos olhos seria silenciado. Só que…
…Danyel Smith continuou a manter uma relação cúmplice com o agressor e a frequentar as famosas white parties onde se promovia a devassidão, excentricidades como mulheres com comida e todo o tipo de perversōes sexuais. Filmadas, ainda para mais. A influência de Diddy era demasiado tentacular para ser contestada e, não por acaso, o anjo ou demónio da capa de 1997 voltaria à estampa da revista em 2006, quando Smith regressou à cadeira de editora. Muita gente conhecia os comportamentos reprováveis de Diddy, percebe-se através do documentário, mas a ambição descontrolada que não o travava a pôr o pé no pescoço de quem pudesse servir de trampolim - “ele não aceitava um não”, afirmou Russell Brand -, foi protegida por uma sistema conivente com os abusos permitidos pelo triângulo das Bermudas do poder, influência e dinheiro.
Também se percebe porquê. Diddy era aspiracional. O símbolo do novo dinheiro negro. Do anónimo que parte do fim da fila e se chega à frente do pelotão. Como? Não era importante. Multiplicador de lucros e gerador de rendimentos, ficou milionário antes dos 25 anos. Projectava uma nova cultura afro-americana que suplantara a luta pela sobrevivência e a partir dos anos 90 aspirava a grandes fortunas e cadeiras de poder, alimentadas por jogos de influência. À medida que aceitou participar neste teatro, Diddy tornou-se um mafioso, concordam figuras próximas desde a adolescência no Harlem. Para se afirmar invencível, disse muitas vezes o que do outro lado se esperava ouvir. E atirou a doçura para cima da violência como no vídeo de Juicy, que apesar de ser sobre uma detenção por tráfico de drogas, projecta a dicotomia entre transgressão da lei e glorificação da vida proporcionada pelo delito através de uma festa na piscina plena de corpos esbeltos e mulheres atraentes. O single era de Notorious B.I.G. mas Puff Daddy estava sempre lá. Na retaguarda com brilho de protagonista.
Como muitas sinas, a de Diddy começou com um tetris familiar duro. Um pai que mal conheceu e uma mãe dura que teve de desempenhar duplo papel com rédea curta. Não teve hipótese de escolher o papel, restou-lhe apenas ser o lobo, do qual não mais despiu a pele. Convencido de que o pai havia morrido num acidente de carro, descobriu mais tarde que a perda do progenitor se devera a ligaçōes a um grupo traficante de droga. Apesar do vazio, o ADN do progenitor ficou guardado no organismo, admite no documentário. E talvez isso ajude a explicar a ausência de limites para a determinação. Tinha a obsessão de moldar o mundo à sua vontade para dele fazer a sua mansão.
Diddy nunca foi um MVP como Biggie, Tupac, Jay-Z ou Kendrick Lamar. Nem um visionário como Pharrell ou Kanye. A marca da sua fortuna foram os perfumes Unforgivable, durante anos a fragrância mais vendida nos EUA. Manipulador nato, construiu o seu império nos bastidores usando a sua influência para municiar um poder camuflado por um sistema que até a justiça é capaz de persuadir, como fica demonstrado na absolvição do caso no Club New York, em 1999, que feriu uma mulher no rosto, e condenou o promissor rapper Shyne, com quem Diddy estava, a dez anos de cadeia. A Queda de P. Diddy não desmascara apenas o monstro. Expōe uma elite protectora e cúmplice, a que muitos querem pertencer para retirar dividendos.
Só que até os poderes mais inabaláveis, tal como as ditaduras, se corroem por dentro. Diddy foi traído pelo Big Brother do qual sempre se serviu para se servir dos outros. E assim que a tampa do esgoto se abriu, todos os silêncios cúmplices, manipulados e calcados se transformaram numa denúncia colectiva formada a partir de comportamentos padronizados desde o princípio da carreira, transversais à vida pessoal e em particular aos abusos sobre mulheres. Se for condenado como é crível, será o Harvey Weinstein da indústria musical (e não apenas do hip-hop), mas cortar a cabeça a Diddy só terá efeitos coercivos se o corpo for enterrado. Quantos como ele estão por desmascarar?
A minissérie documental A Queda de P. Diddy pode ser vista na Max. Uma versão da história contada por 50 Cent está a ser produzida para exibição na Netflix
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A indústria está cheia de estórias destas… ditas em voz pouco sussurrada pelos bastidores, segredos públicos mas não mediáticos… são muitos. Soubessem-se fora dos corredores do negócio e desmoronava-se a pirâmide. Ainda assim, que sirvam os “exemplos” como o de Sean Combs ou Harvey Weinstein para mudar o paradigma do sistema. Oxalá!