Começou por ser um reencontro a quatro. Cláudia Efe, Flak, Carlos Morgado e o reforço definitivo Francisco Rebelo reactivaram os circuitos dos Micro Audio Waves. Esculpiram um novo corpo sonoro mas a volta ainda não estava completa.
Glimmer, o álbum, só estaria completo com a visão artística de Rui Horta, com quem já tinham trabalhado no multidisciplinar Zoetrope de 2009. Faltava a bailarina Gaya de Medeiros, sugerida pelo coreógrafo, para completar a equipa. E assim, camada sobre camada, Glimmer transcendia os limites musicais e envolvia-se com as artes performativas e visuais.
Ao contrário do seu distante predecessor, fascinado pela infinitude das possibilidades tecnológicas, Glimmer reconecta-se com a primordialidade das relaçōes humanas. Cláudia Efe e Flak explicam como e porquê.
São dois reencontros num só. O vosso e com o Rui Horta. Qual a ordem temporal e porquê?
Flak - A ideia de convidar o Rui Horta, que toda a gente apoiou, foi da Cláudia.
Cláudia Efe - Nós já nos tínhamos juntado antes. As músicas já estavam preparadas embora nem todas tenham entrado no álbum. O espectáculo também tem músicas novas e outras repescadas. A parte musical já existia mas ficou meio entalada no COVID, pós-COVID, em que estávamos um bocadinho mais livres e decidimos ter tempo para voltar a remexer em coisas que já tínhamos, fazer coisas novas e dar uma nova cara a algum material nunca editado. Quando chegou a altura de fechar a coisa, pensámos como é que podíamos mostrar o que tínhamos feito. Achei que o nosso trabalho merecia o olhar de outras pessoas. Seria mais enriquecedor para a forma como nos queríamos apresentar. O Rui Horta foi a primeira pessoa em que pensámos. Também tinha sido a última (sorri) e acabou por ser um quinto elemento da banda.
A música já existia. Depois de trabalharem com o Rui Horta houve transformaçōes?
F - Não muitas. Fizemos uma selecção e depois criámos um guião a partir das músicas e das letras. As próprias cançōes já tinham uma certa unidade de temas. No fundo, foi organizá-las de forma a criar um guião sobre o qual pudessemos trabalhar.
C- Foram criados novos momentos e houve cançōes alteradas para o espectáculo.
F - Como o espectáculo é um contínuo, tivemos que fazer várias ligaçōes. Isso já foi trabalhado posteriormente com o Rui Horta.
C - A estrutura base já existia.
F - Ao contrário do Zoetrope que foi trabalhado quase em simultâneo com a encenação. Desta vez, a base da música já existia. Depois foi trabalhada de forma a ligar os vários elementos e criar uma narrativa.
Duas formas de trabalhar diferentes resultam em espectáculos muito distintos?
C - Tudo se mistura. No fundo, criámos uma imagética e uma narrativa, apesar de não ser percepcionada, mas precisávamos de a ter. As cançōes escolhidas já encaixaram nessa narrativa onde fazem sentido. Foi um processo muito orgânico. Quando estamos a criar um conceito e um objecto, é como se se tornasse uma entidade. Começamos a perceber as necessidades e construímos à medida da dinâmica.
As cançōes foram pensadas para poderem ter autonomia do espectáculo?
F - Era essa a ideia.
C - Elas foram criadas assim! Só que quando fazemos um álbum, as coisas falam-se. Não é uma balbúrdia. Há ali uma história. Tínhamos muito mais cançōes mas estas foram as escolhidas para o espectáculo e o álbum. Outras não faziam tanto sentido no conceito desejado.
A tecnologia é maternal aos Micro Audio Waves. Até ao Zoetrope (2010), a relação com ela ainda era um misto de espanto e estigmatização. Hoje, ela está completamente normalizada e temos receio que nos domine. A vossa ligação com a tecnologia alterou-se?
F - Acho que sim. No Zoetrope era tudo novidade. Puxávamos pela tecnologia até ao máximo. Chegámos a ter de produzir software próprio. No Glimmer há muito menos fascínio pela tecnologia no sentido em que certas novidades de 2008 ou 2009, quando fizemos o Zoetrope, agora já não o são. É muito mais difícil inventar. Este espectáculo ainda tem tecnologia, mas vive muito mais do movimento, da encenação e das luzes. O vídeo já não é tão importante como no Zoetrope. É um espectáculo mais orgânico. O outro era mais estático e baseado em efeitos. Alguns até foram criados na altura. A Gaya [bailarina] traz um novo movimento. As peças interligam-se.
No Zoetrope era tudo novidade. Puxávamos pela tecnologia até ao máximo. Chegámos a ter de produzir software próprio. No Glimmer há muito menos fascínio pela tecnologia no sentido em que certas novidades de 2008 ou 2009, quando fizemos o Zoetrope, agora já não o são. É muito mais difícil inventar. Este espectáculo ainda tem tecnologia, mas vive muito mais do movimento, da encenação e das luzes
C - A tecnologia é mais invisível. Está ao serviço. Já não tem o papel principal. É mais o que queremos fazer com ela.
No Glimmer, o papel principal é humano?
C - Ssssssssim, é mais humano porque fala das relaçōes humanas e de emoçōes, que não são propriamente as características da máquina e da tecnologia. Acho que sim.
Como surge a Gaya de Medeiros?
F - Foi sugestão do Rui Horta para criar dinâmica e movimento.
C - Quando o Rui nos colocou a hipótese, foi numa de nos desafiar e retirar o contexto de banda e vocalista. Talvez esperasse alguma resistência da nossa parte mas ninguém criou resistência (ri-se). Todos achámos uma óptima ideia! E ele ficou “e agora o que é que vou fazer com uma bailarina e uma banda?!”. Acho que se resolveu muito bem porque a Gaya é muito cúmplice, sensível e positiva. Acabou por ser um complemento no espectáculo e no novo significado dele.
F - E ajudou muito a Cláudia enquanto cantora da banda. Assim, o papel dividiu-se.
C - Sim, sim, sim. Confesso que ter ali uma pessoa a dar o corpo às balas é incrível. Não sou fã de estar em palco e com ela tenho tido esse prazer rodeada de amigos, amor e boas ideias.
Tanta informação em palco (dança, vídeo, artes digitais, iluminação) dilui a vossa pressão enquanto banda?
C - Totalmente!
F - A todos. Eu gosto imenso de trabalhar em conjunto com outras pessoas porque estamos sempre a incluir ideias que nunca teríamos nem conseguiríamos pôr em prática. A sinergia é muito mais interessante. Sentimo-nos um elemento de tudo o que está a acontecer e não os protagonistas. Somos parte de uma equipa, em que imensa gente colaborou, e isso é óptimo. É o resultado de todos esses esforços que se vê. No fundo, só temos que subir ao palco e…
C - (interrompendo) não estragar o trabalho a ninguém!
É verdade que o espectáculo demora dois dias a ser montado?
C - Começa a ser montado no dia anterior porque o material é muito, mas depende dos teatros. Na Casa da Música, por exemplo, tiveram que tapar aquele vidro enorme da Sala Suggia porque estamos numa caixa negra. Normalmente, é de um dia para o outro.
As necessidades técnicas condicionam as salas onde podem apresentar o Glimmer?
F - Condicionam. Quer dizer, temos muitos teatros e auditórios com condiçōes, por isso felizmente podemos tocar em várias salas, mas como a Cláudia estava a dizer, a montagem na Casa da Música foi muito complicada porque não é um teatro. Tivemos que criar uma caixa negra dentro da sala. Não é um espectáculo que se possa levar a um festival. Tem de ser apresentado em salas específicas.
Depois do S. Luiz, vai ser possível ver-vos noutros contextos? Sem a parafernália?
F - Acho que sim (ri-se). Ainda não falámos muito nisso.
C - Somos muito…deixamos fluir. Já sofremos algumas alterações, o Francisco Rebelo entrou de forma definitiva, os nossos discos são muito diferentes, a colaboração com o Rui Horta já vai no segundo acto…Não sei, vivemos um intervalo de imensos anos. Acho que ainda não é tema sobre o qual tenhamos reflectido.
F - Há um lado muito interessante nos Micro Audio Waves que é a improvisação, e que no Glimmer não pôde ser explorado. Enquanto banda, fartamo-nos de improvisar. Temos uma backing tracks, por causa das bases electrónicas, e quando acabam ficamos a tocar durante mais meia-hora. Gosto muito disso mas aqui não podemos fazer porque as marcações são muito rigídas.
C - No espectáculo, há uma ou outra canção que nasceu assim. Aliás, várias nasceram dessas “desbundas”. É muito fácil para nós fazermos isso. Quando estamos a ensaiar só como banda, temos sempre vinte minutos só a curtir no início ou no fim.
Um espectáculo como este, com outras pessoas e linguagens, além da experiência que vos soma, faz-vos repensar enquanto colectivo e individualmente? Sentem-se a partir de novo do zero?
F - Claro que sim. Estamos sempre a aprender. Sinto-me muitas vezes a partir do zero. Ainda agora, na Casa da Música, apareceu um fã coleccionador com 26 discos em que participei. Nem me lembrava da maior parte deles. Para mim, o passado dilui-se. Esqueço-me, só me lembro quando sou confrontado. E o trabalhar com outras pessoas é óptimo para isso. Trabalhar com o Rui Horta obrigou-nos a uma disciplina que nunca tínhamos tido. Ou pelo menos a mim. Nos Rádio Macau, houve períodos em que ensaiávamos diariamente mas não com o mesmo método de trabalhar com um coreógrafo, que é diferente.
C - Lembro-me do Flak, músico incrível, a aprender e decorar as malhinhas todas. A treinar, a treinar…Nós fazemos a música mas depois não estamos à espera de a tocar da mesma maneira. Mas aqui não (gargalhada)! É nota por nota. É desafiante. Este espectáculo foi incrível para mim. Acho que o Rui teve a ideia de me libertar do microfone. Tenho a companhia da Gaya a ocupar metade do palco e desta vez fui desafiada a participar mais com o corpo. A dançar, a interagir com a Gaya e a Gaya comigo…Ando mal de uma perna (ri-se). Não sou bailarina, não tenho o treino, nem a preparação. Não tenho nada mas alinhei nesta aventura.
Glimmer é apresentado em Lisboa no Teatro S. Luiz de 21 a 23 de novembro às 20h00