Há uma metrópole privada de sono. Há uma fantasia eufórica. Há uma cultura latina inata. Uma Miami Sound Machine húmida e subtropical de cocktails a passar de mão em mão e música a reverberar debaixo dos pés. O desejo permitido e o excesso sem culpa.
É a partir destas premissas que Nick León desaprende o argumento para desfazer as cenas e contar uma outra versão. Desse fluxo incessante entre o dever de reinvenção da história e a vontade de cristalizar o provisório em permanência, ergue-se A Tropical Entropy como expresso quente de um submundo.
Natural de Miami, Nick León extrai da rua a matéria-prima de um álbum rodeado de expectativas. O primeiro império após o EP Xtasis, remisturas regulares e créditos em fichas de Rosalía, Empress Of e Oklou. O vocabulário é pop mas o verbo é sabotar. Logo nos primeiros segundos, Entropy é elucidativa sobre as intençōes. O som flutua como crepúsculo, a voz robotizada guia até à porta antes de um combate entre reggaeton e ghetto bass terminar sem vencedor. Reconhece-se a arquitectura hispano-americana mas a decoração interior diverge do afunilamento treinado no intervalo obediente entre zero e um.
Há liberdade de insubordinação às práticas comuns da cultura de dança. Quando trabalha sobre formas pré-existentes, não cede. O reggaeton é metalizado e danoso. Traz ruído e sujidade. As cascatas atmosféricas traduzem um ambiente solitário desprendido do êxtase colectivo e das pressōes grupais. A entropia é essa. León trabalha de dentro para fora sobre uma mecânica total em que corpo e cérebro são uma só peça encadeada numa terceira dimensão: a digital. E não é por acaso que as cançōes de ver estrelas sonham para dentro como Metromover, Product of Attraction e a soberba Bikini com Erika De Casier.
Em pouco mais de meia-hora de vinhetas, A Tropical Entropy derrota o preconceito de uma cultura historicamente transformadora, que encontrou os seus modelos de conforto house e techno e se defende atrás dessas barricadas para escalonar níveis de permissão. León não se esquiva de activar a memória - Millenium Freak descende da cultura bass enquanto Ocean Apart deriva da hiperpop - mas conspira a partir de novas passagens subterrâneas. Se há álbuns transmissores de mudança consistente e não apenas escape, A Tropical Entropy é uma dessas excepçōes em que o isolamento redunda em metamorfose cultural.
Bruce Springsteen - The Lost Albums
Sete álbuns guardados na gaveta, 80 cançōes e quase seis horas de música inédita, sem nunca nos sentirmos ludibriados ou maçados. Os vínculos emocionais podem oscilar nas zonas de interesse mas este material não traz selo de rejeição. Cada volume tem autonomia própria, do pós-Nebraska, à fase Philadelfia das caixas de ritmos, ao Springsteen rocker de jukebox, o baladeiro de classe Burt Bacharach ou o homem batido pela vida, como no clássico instantâneo Sunday Love. Os Bruceologistas podem dormir bem. Este apanhado de vida merece existir. E Springsteen não dá sinais de querer ficar em casa a gozar a reforma. Até quando irá correr?
Lorde - Virgin
Declaraçōes de rejeição do passado soam suspeitas e costumam ser determinadas por estratégias de marketing. Se Lorde não foi sincera em Solar Power, problema dela. Ícaro pode ter perdido as asas por voar demasiado perto do sol mas pelo menos viu uma luz inigualável. Crónica da terra prometida, detinha a potência transformadora do recomeço e da reordenação do pensamento crítico no centro do problema - a catástrofe climática -, embora talvez embrulhada numa fricção científica demasiado avançada para o processo de regressão em curso e para a incapacidade generalizada em lidar com a pop para além da espuma. Virgin é outra fase da lua, de antenas sintonizadas em frequências familiares, mas nem a Lorde adulta trava a Lorde impetuosa. Esquizofrénica no jeito e extravagante no detalhe, rejeita o absolutismo e desaprende - estamos todos a tentar perceber se isto tudo faz sentido, certo? - sem se deitar fora. Paradoxalmente em terreno pop de curto prazo, o bloco torna-o mais coeso e extravasa cançōes como What Was That (sexy sem ser vulgar), uma Shapeshifter de balanço Y2K e Favourite Daughter. A paridade entre impulso e consciência é a nota do crescimento de um álbum muitíssimo acima da plasticidade disfarçada de alimentação sem glúten de Addison Rae, Chapell Roan e Lola Young, e da sobrevalorização de Billie Eilish, por quem se tem gerado uma atracção desmedida por uma ideia duvidosa de autenticidade e mudança. Não se deixem enganar pelo algoritmo. É possível ser pop e rebelar-se. Está aqui.
Luedji Luna - Antes que a terra acabe
Podem parecer primos afastados mas são filhos da mesma mãe. Os fins de Antes que a terra acabe usam os mesmos meios de Um Mar Pra Cada Um. Reconcilar-se com o amor enquanto nada no atlanticismo do jazz. O baptismo de mergulho é feito com músicos do quilate de Arthur Verocai e Robert Glasper que a ajudam a respirar debaixo de água. Pode parecer um pedido de ajuda antes que o casco rache e o navio afunde, mas a fatalidade do fim da história reserva outro desfecho. Voltar aos alicerces mais fundos para recomeçar a auto-revelação do zero.
Don L - CARO Vapor II - qual a forma de pagamento?
O nível é mundial no diálogo entre texto e bases sonoras, só que a matéria-prima se exima das bibliotecas americanas, por oposição política à normalização, e se deita sobre o património infinito da música afro-brasileira. É um futuro antigo este em que Don L se pergunta de que maneira os grandes do samba, do baião, da bossa nova e da MPB soariam hoje. A prática responde com excelência. A ressignificação da história é inata à cultura do rap, mas tal como Marcelo D2 trouxe o samba para o hip-hop, CARO Vapor II - qual a forma de pagamento reflecte sobre a identidade de brasileira a partir de um infinito temporal entre memória e futuro. Enquanto incentiva uma pequena revolução retalhada por ritmos de bairro como o funk, o afrobeat e o kuduro, o desconsolo do retrocesso civilizacional e da destituição de ideais colectivos inclina o céu para o inferno. Sem abdicar das utopias, nem perder o chão. Há uma consciência avançada sobre a desistência mas também sobre a incerteza como terreno fértil de reinvenção. Podemos chamar-lhe neo-futurismo?
Brandee Younger - Gadabout Season
Temos sempre o poder de apagar a televisão, emudecer as redes sociais e ainda assim manter as janelas abertas para nos podermos ouvir e dedicar. Gadabout Season dá-se ao silêncio, como as cerejas ao calor, mas reduzi-lo a uma funcionalidade medicinal seria destituir as suas propriedades artísticas de pesquisa da riqueza sonora da harpa, e de transcrição de uma biografia mutante, entre o saber do jazz, o academismo clássico e a rua. Vem em paz o novo disco de Brandee Younger, porque nas trincheiras não há razão nem ideologia. Apenas sangue - não é no conflito que este afro-futurismo ensinado por Alice Coltrane se imagina.
Public Enemy - Black Sky Over The Projects: Apartment 2025
Ultrapassadas as tensōes entre Chuck D e Flavor Flav, os Public Enemy ainda têm uma palavra a dizer em 2025. Ou muitas. March Madness foi o primeiro sinal de protesto de Black Sky Over The Projects: Apartment 2025, a forma completa e não-anunciada de os patriarcas do rap militante se manifestarem. Embora esta dialéctica não domine nem o discurso de rap nem a onda crescente de música de protesto, não só resistiram a tiroteios e balas perdidas como conservam uma voz de comando combativa, pujante e responsável. Ímpares, sim, mas também actuais e lúcidos. Veteranos de guerra inconformados com a repetição de ciclos de corrupção governamental, posse de armas, racismo e violência. Se os Public Enemy não mudaram, a América ainda está mais parecida com um filme sangrento.
Isiah Hull - Pocomania
Contradição? Comédia e resistência são o par perfeito de Isaiah Hull. Uma forma primordial de humor borrifada pelo afunilamento da literalidade e pelo gosto médio medíocre das redes sociais. Natural de Old Trafford, usa um triângulo geográfico e temporal entre a Jamaica, o Gana, e o colonialismo inglês para falar da Black Briton, com uma dialéctica de rua próxima de algum rap mais evoluído. O tom é teatral e sarcástico. Hull mune-se das armas conhecidas dos humoristas - a objectividade, o surrealismo e a auto-descrição - mas o vocabulário é próprio e adensado pelo fumo denso encenado por Kwes Darko - o texto cénico necessário para chamar a Pocomania uma criação e não apenas um registo áudio performativo. Brilhante.
Lagoss & Abagwagwa - Island Slang
De Tenerife, onde o fundador da Discrepant, Gonçalo F. Cardoso, reside, um choque frontal entre o laboratorialismo vulcânico das Canárias e a cultura polirritmíca de Abagwagwa (Nihiloxica). Os ismos - tribalismo, tropicalismo e psicadelismo, são prescritos numa onda magnética de proposiçōs rítmicas, paisagens de observação e campos abertos de exploração. Um caldo fumegante de dub e jazz ao qual falta um nome. Música rara que nos devia pôr a pensar sobre liberdade ou falta dela.
Edna Martinez Presents Picó: Sound System Culture From The Colombian Caribbean
Do samba ao funk e kuduro, a história da música dançável é indissociável do diálogo entre resistência e festa. A curadoria da DJ berlinense Edna Martinez centra-se na música da classe operária nas ruas de Cartagena e Barranquilla, na Colômbia. Festas de bairro encharcadas por ritmos mais ou menos familiares como o highlife, o soukous, o zouk, a soca e a cumbia. A troca entre o suor das Caraíbas e a transpiração de Angola e Cabo Verde é consistente, e explica-se através das viagens entre costas. Cançōes como Puxa Odette e Philomene podiam ter sido extraídas de colecçōes da Soundway ou da Analog Africa.
Biosphere - The Way of Time
A literalidade e o massacre do momento não deixam ver para além da impulsividade. The Way Of Time é, por isso, um objecto estranho aos padrōes actuais que tem na transfiguração de um trecho de voz de Joan Lorring, de uma gravação de 1951 do romance The Time Of Man, o feixe de luz propagado por um arsenal de sintetizadores de Geir Aule Jenssen. O ensaio é gélido e desolado aplicado a uma matemática repetitiva e insistente no treino da repetição perfeita.
Maria - O que Quardas na Algibeira
Ciclo incessante de reencontro com uma memória flutuante nutrida por teclados jazzy e beats suaves, o produtor Maria serve-se de precariedade de recursos para extrair O que Quardas na Algibeira do disco pessoal de memórias. Parece uma ideia antagónica - desperdiçar o infinito tecnológico e tirar partido da limitação - mas não. É a forma do produtor se reconciliar com um tempo particular e consolado através da exploração de um novo-velho recurso: o sampler Roland SP-404MKII.
Adrian Sherwood - The Grand Designer
A assinatura de Adrian Sherwood está no princípio, no meio e no fim. Dub elaborado e expansivo, desafiante dos padrōes de eco e gravidade, com um balanço muito próprio e incomparável de outros mágicos. Em The Grand Designer e Let's Come Together, as guitarras transformadas e o piano servem de pontuação a uma gramática conhecida, mas Russian Oscillator salta o muro e passa-se para a cultura bass electrónica - os graves são maternais a ambas. Em Cold War Skank, a América árida de Morricone invade os bunkers jamaicanos com frases acústicas de blues. O filme já existe, falta o realizador.
Félicia Atkinson - Promenades
Tudo começou em estúdio com um processo sinestésico de coloração do som, enquanto exercitava o teclado Nord. A cada peça foi atribuída uma cor, e à medida que o som se desloca, os tons transformam-se como tela em câmara lenta em estados sensoriais de paz interior, agitação e dramatismo.