MaZela: "Estas canções foram a minha maneira de integrar os opostos que me habitam"
Desgostos em Canções de Colo é o torvelinho de inquietação serena reservado por MaZela para se introduzir, após ter vencido o Festival Termómetro em Maio deste ano. Cinco cançōes de toque entre opostos como a fuga e o quarto, o amor e o ódio, a dor e a cura.
Cançōes que lhe permitiram reconhecer as “partes mais escuras e acender as velas necessárias para as navegar”. Nada existe sem o seu contrário. Nem MaZela seria guerra e paz sem a inquietação de Maria Roque a mediar o conflito em cinco acordos de cessar-fogo com a intervenção preciosa de A Garota Não na central Entre Amor e Ódio.
Após meses intensos de festivais, e concertos em sala no final do ano, a retrospectiva do primeiro ano do resto desta vida.
O projecto Mazela nasceu em 2020 mas só em 2024 se projectou a partir da vitória no Festival Termómetro. Estes quatro anos foram de gestação até chegar o momento certo?
Talvez da perspetiva de quem nos ouve possamos chamar de gestação estes primeiros quatro anos. Para mim, desde o primeiro momento em que nos apresentámos em palco, trouxemos a paixão que alimenta o projeto e a vontade de o partilhar, que nos levaram a tomar a decisão de o tornar público. Claro que consideramos que cada concerto carrega aprendizagem, desafio e crescimento e, que desde o primeiro, houve uma modelagem muito intensa. Nessa ótica, os primeiros passos são os responsáveis pela consolidação da nossa identidade. Mas aquilo que para fora pode ser lido como um “início”, para nós foi sentido como mais um passo. Um passo gigante, maravilhoso, mas mais um, numa caminhada que já tinha sido iniciada e que guardava bons palcos. Aquilo que reforço e gosto de partilhar em relação à nossa passagem pelo Termómetro é que, de facto, resultou de um passo muito importante da nossa constituição enquanto equipa. Até pouco antes da nossa participação, MaZela era um projeto vivido em casal, que passou a ser partilhado com um manager, o Rodolfo Matos, e trouxe-nos uma vontade muito grande de integrar outras valências, outros corações e trazer mais riqueza à representação da nossa mensagem. Foi muito colher esses frutos dessa forma.
O nome MaZela tem carga dramática. O heterónimo é uma forma de distinguir de Maria Roque? Há diferenças entre as duas?
Cada pessoa é composta por muitas e vejo MaZela como uma parte desse meu todo. As canções vêm de um lugar muito sincero e vulnerável, e espero que assim o continue a ser, e nesse sentido, fazem parte da Maria. Senti a necessidade de criar um heterónimo porque, profissionalmente, enquanto psicóloga, apresento-me como Maria Roque e queria definir uma fronteira clara entre esses dois papéis que desempenho. Quis assegurar a proteção e o honrar de um lugar especial para cada um deles.
Cada pessoa é composta por muitas e vejo MaZela como uma parte desse meu todo. As canções vêm de um lugar muito sincero e vulnerável, e espero que assim o continue a ser, e nesse sentido, fazem parte da Maria. Senti a necessidade de criar um heterónimo porque, profissionalmente, enquanto psicóloga, apresento-me como Maria Roque e queria definir uma fronteira clara entre esses dois papeis que desempenho
A ambiguidade entre o desgosto e o consolo do colo representa dor e cura?
Definitivamente. Não há moedas sem duas faces, assim como nada existe sem o seu contrário. Estas canções foram a minha maneira de integrar os opostos que me habitam. Permitiram-me reconhecer as minhas partes mais escuras e acender as velas necessárias para as navegar. Gosto de imaginar que crio lugares de validação e cura para quem nos escuta, mas acima de tudo, todas as canções partem desse princípio na minha vida.
O amor e o ódio. A luz e o escuro. A fuga e o quarto. Reconectar os contrários é urgente numa sociedade tão polarizada?
Diria que a reconexão e a empatia são uma prioridade nos tempos que correm. A segregação de opostos tem a sua utilidade, mas realmente, compreender que a realidade comporta todos eles e que tudo tem a sua história e missão é essencial para trabalhar na sua harmonização, se pensarmos na vida como uma orquestra. A música vive da criação de tensão para a resolver, a natureza vive disso também, o ser humano. Enquanto não conseguirmos aceitar a amplitude das coisas, vamos continuar a censurar e suprimir partes de um todo que só resulta e existe em pleno dessa forma.
O convite a Garota Não é também uma vénia? O 2 de Abril abriu uma porta?
Não vou dizer que foi um acaso o convite que fiz à Cátia para colaborar. Mas o motivo não se prende apenas com a nossa colaboração no 2 de Abril. É de facto uma vénia e uma vontade muito grande de integrar a Cátia neste projeto. A Garota Não é um projeto muito forte, politicamente, e para mim, a Entre Amor e Ódio é, sem o ser, a minha música mais política. Na medida em que é dedicada ao conflito, à discórdia e à incompreensão que nos reina enquanto sociedade. É uma canção sobre os perigos de colocarmos as nossas lutas à frente da empatia. E A Garota Não, sendo muito daquilo que me representa enquanto agente política, tinha de estar presente numa canção que dedico a todos aqueles de quem discordo, com muita curiosidade e compaixão.
É justo dizer que Desgostos em Cançōes de Colo tem uma atitude política embora não partidarizada?
Talvez possa chamar de atitude política a de abordar temas tabu. Ainda hoje é necessário criar espaços para discutir a nossa natureza. Estamos tão desconectados, que rejeitamos as nossas nuances. Privilegiamos as nossas partes que geram lucro e evitam conflitos, as que conservam energia, e não entendemos, enquanto coletivo, que enquanto as restantes não forem reconhecidas e abraçadas, não vão cessar as nossas guerras (interiores).
Nota-se uma preocupação com a imagem, por exemplo através dos vídeos. Estas canções só ficam completas depois de serem vistas?
Eu diria que cada canção vale por si. A experiência de escutar, retirando do cenário a visão, abre outros caminhos interessantes para a criação de paisagens mentais. No entanto, servindo a necessidade da representação visual das coisas e da forma como funciona a divulgação e a competição por atenção dos meios de comunicação, diria que conseguimos encontrar pessoas que nos representam com sentido, o Henrique Lourenço, a Ema Oliveira, o Tiago Cardoso e o Luís Gardner.
Há poucas semanas, entrevistei Bia Maria e conversávamos sobre a relação entre distância, tempo e espaço. No caso dela, como o estar em Ourém e não em Lisboa desacelerava a pressa e aclarava as palavras. Em Desgostos em Canções de Colo, a serenidade embala o desassossego. Terá algo a ver com a influência territorial de Castelo Branco?
Confesso que as minhas inseguranças fazem o trabalho de me pressionar sozinhas, independentemente do ritmo das vivências que me rodeiam. Comecei a compor depois de sair de Castelo Branco, no meu percurso de florescimento. Embora consiga identificar-me com essa comparação, acredito que no caso de MaZela, se tratam de espaços mentais. Gosto de perder tempo a contruir os cenários e as histórias que vão guardando as minhas experiências. Nesse sentido, penso que os desgostos que o tempo, inevitavelmente, me trouxe, foram sendo acolhidos em cenários e narrativas mentais apaziguadoras que lhes trouxeram uma roupagem diferente, mais aconchegante.
Atrás dos tempos vêm tempos. E depois destas, outras se seguirão?
Certamente. Enquanto a criação nos servir, iremos servir-nos dela. Vejo a criação como um fim em si, independentemente do seu resultado e, em última instância, da receção do público. Até agora, tenho-me servido de fases mais cinzentas para escrever e compor e, embora não as anseie, sei que inevitavelmente farão parte do meu caminho e tenciono usá-las como catalisador para criar.