Longa se tornou a espera pelo álbum de estreia dos Mazarin, colectivo há muito a sondar os novos ventos do jazz, indicados por bandas como Badbadnotgood, ou pelo fervilhante movimento londrino, com longos interregnos pelo meio.
Enquanto a ilusão aquecia em lume brando e a formação sofria uma metamorfose com a entrada de Léo Vrillaud e Francisco Bettencourt para a equipa de Vicente Booth, João Spencer e João Romão, Pendular ganhava forma e substância com a pequena ajuda de alguns amigos. O corpo instrumental recebeu reforços vocais como Soluna, Gil Dionísio, Sara Badalo e Rodrigo Brandão, assim como o acordeão de João Frade.
Miles Davis defendia que first you imitate, then you innovate. Este é o álbum em que os Mazarin começam a sair de casa dos pais e marca também a estreia da Now Jazz Agora, selo criado por Rui Miguel Abreu para guarnecer em disco os rumos do moderno jazz português. Boas notícias para um meio em que a matriz libertária nem sempre tem sido a cargilha, mas o futuro começa todas as manhãs e Pendular até desce o pano com uma Meia Cura. O baixista João Spencer conta como foi o processo e imagina como vai ser daqui em diante.
A matriz do jazz é a liberdade. Por outro lado, o jazz está muito dependente do ensino e as escolas, pelo menos em Portugal, priorizam a aprendizagem técnica. O que é o jazz para os Mazarin?
João Spencer - É uma pergunta particularmente interessante considerando que sou a única pessoa que nunca estudou jazz, apesar de estar rodeado de pessoas com formação, quer na banda, quer no meio. Todos nós temos background musical. Eu e o Vicente até estudámos no Conservatório na mesma altura. Quando começámos os Mazarin, estávamos interessados neste novo jazz que começou a surgir com bandas como os Badbadnotgood e a outras que iam beber do hip hop como Hiatus Kayote, e em cidades como Londres. O que me parece é que em Portugal o academismo forma intérpretes, quer no jazz, quer na clássica. Os músicos estão mais habituados a percepcionarem-se como intérpretes do que como criadores. Então produtores nem se fala, e o que é que acontece nos casos citados, é que com o contacto com a música urbana ganham outras noçōes estéticas. Não é apenas a performance. No passado, penso que não era tanto assim. Já existia o jazz de fusão mas não havia este olhar de produtor, de experimentar sons e efeitos. Quando começámos, o jazz mais aventureiro em Portugal era o free jazz, mas dentro do jazz mais convencional parecia não existir muito isto. Agora, com este termo do JazzNãoJazzPT, criado pelo Rui Miguel Abreu, [este jazz] acaba por englobar outros nomes como Ocenpsiea, Yakuza, a malta de Jazzego e os Cíntia.
O Pendular representa uma pesquisa por um som próprio?
JS - O Pendular é o nosso primeiro longa-duração e por norma os álbuns de estreia tentam simbolizar uma certa identidade mas, neste caso, o disco representa a banda no momento em que o começámos a fazer. Apesar de não sermos só um cruzamento entre jazz e hip-hop, e de haver ligaçōes a outros estilos, este é um álbum em que nos começámos a desprender das referências elementares. Na altura em que começámos a fazê-lo, em 2020, o jazz londrino já tinha uma grande preponderância. Tínhamos essas referências, como Ezra Collective e Joe Armon-Jones, mas o que era interessante era ir buscar as referências das referências, como o dubstep original - pessoalmente, adoro Kode 9 e Aphex Twin -, house dos anos 90, e influências africanas como o afro beat, que até já tínhamos experimentado com o ritmo da Lavender Town, e o jazz etíope. E também termos música africana que reflectisse a lusofonia, como o funaná na Caçadores. Isso já reflecte o que somos agora e se calhar dentro de meses já estaremos a explorar novos caminhos. É um novo capítulo para nós, não só porque temos uma formação nova com o Léo nas teclas e o Francisco no saxofone e flauta, mas também porque queremos manter essas referências em repertório a trabalhar para o futuro. Continuar de ouvidos abertos.
Foi um processo longo. Porquê?
JS - Pois, desde o processo de composição até à edição passaram cerca de quatro anos. Foi muito moroso porque o disco foi gravado em diversos sítios com pessoas diferentes. Isto inclui a equipa técnica formada pelo Pedro Ferreira, que já trabalha connosco desde o primeiro EP, até ao nosso amigo de longa data Rafael, e que dividiu a produção connosco e com o Diogo Lima. Ele está no Algarve e o Pedro em Lisboa. Na banda, somos três em Lisboa, uma em Beja e outra no Algarve. A disparidade geográfica complica. Ainda me recordo quando eu, o Vicente e os outros dois membros originais, que já não estão connosco (o Afonso e o Humberto), estávamos todos a viver em Lisboa. Agora não estamos mas apesar de todas as adversidades, conseguimos chegar ao álbum e ensaiamos regularmente. A determinação faz-nos levar isto para a frente.
Como surgiram os convidados?
JS - Não é uma novidade porque já tínhamos feito o espectáculo de 25 de abril de 2019, no Musicbox, em que contámos com o Edgar Valente (Bandua, Criatura), a Sara Mercier, o Coro dos Anjos e a Bárbara Maximino. Já tínhamos trabalho com voz no passado, e entretanto já surgiram outras colaboraçōes como os concertos com a Amaura. Não é nada de novo, mas sempre pensámos de forma maioritariamente instrumental. Isto surgiu por acaso e quase todos os nomes foram sugeridos pelo Leo - isto porque ele é algarvio, tal como o João Frade, o Gil Dionísio, a Sara Badalo e a Soluna, que também viveu lá. O único convidado que não tem ligaçōes ao Algarve é o Rodrigo Brandão. A primeira música que começámos a trabalhar com voz foi a Deuses e Tolos. Como era mais contemplativa, de formato canção, sentimos essa necessidade. Convidámos a Soluna a fazer um take e percebemos que fazia sentido ter um refrão e spoken word - gostamos muito do trabalho do Gil Dionísio nos Pás de Problème e nos Criatura. A Colours também foi uma das primeiras feitas para o disco. Estávamos a fazer uma malha muito house e a nossa ideia era fazer uma homenagem que fosse também paródia dos clichés do house, como aquelas vozes muito sensuais de flirt. O Vicente dizia uma frase e a nossa amiga Joana Ferra dizia outra. A certa altura, sentimos falta de uma terceira e convidámos a Sara. Só que deixaram de ser apenas pequenas frases, como é hábito na electrónica, e saiu daquele contexto para passar a um formato canção. No caso do Rodrigo Brandão, na altura da pré-produção o Vicente e o Francisco começaram a brincar com o Oberheim, que é o sintetizador ouvido ao longo de toda a música, e como estiveram a improvisar o Vicente sugeriu o Rodrigo Brandão por ser mais improvisada e fluída. Nem lhe dissemos nada, enviámos-lhe e ele encaixou o poema de homenagem à Jaimie Branch.
Trazer convidados, sobretudo vocais, faz parte desse processo de construção de uma identidade própria?
JS - Não necessariamente. Gostamos da liberdade de ser uma banda instrumental e de ter estes momentos pontuais. Quando acontecem, é porque fazem sentido. Gosto imenso do formato pop por isso, para mim, é muito satisfatório. Talvez nos ajude no formato canção, não é? Mas também estamos muito contentes com o formato instrumental.
Sentes uma transformação no meio em Portugal?
JS -É interessante. O jazz livre, experimental e ligado ao improviso, tem muita presença em Lisboa. Agora, o novo jazz, comparável aos EUA, à Austrália e a Londres, sinto que está a mudar a pouco e pouco, a uma escala menor como é em Portugal, mas continuo a achar que ainda é uma forma de importação. Penso que há público, e nota-se em festivais através de nomes que têm vindo, mas a nível nacional ainda não há uma mudança efectiva. No entanto, lentamente vai-se notando.
Pendular é apresentado dia 9 na Sala Lisa em Lisboa