Como reagir quando o inimigo nos aponta uma arma à cabeça? Dar-lhe um beijo e restaurar, através do afecto, o que o ódio quer destruir. O amor, a liberdade e a coexistência com a diferença.
Do outro lado da videochamada transatlântica, Leo Middea só tem sorrisos e gratidão. No Rio de Janeiro onde se apresta para gravar um novo álbum, confessa ter abandonado Portugal, e em particular as ruelas estreitas de Arroios, para se fixar em Barcelona, mais perto da Europa central.
A decisão nada tem a ver com a torrente xenófoba de há pouco menos de um ano, quando chegou legitimamente à final do Festival da Canção. Contestado por ser menino do Rio, e logo ele que escreveu repetidamente com gratidão sobre Lisboa, já não estava em Portugal quando, a algumas centenas de metros a sul da antiga morada, a polícia encostou emigrantes à parede.
A estigmatização do outro passou das caixas de comentários à prática, e Middea viveu o preconceito na pele, mas quem o ouça não reconhece nem um pingo de rancor ou revolta.
O álbum ao vivo Solo Nights começa com a Hello Goodbye em que cantas “tudo é lindo na Europa/mas eu quero é ir ao Japão”. Pareces ter muita facilidade fazer as malas e integrar-te. És um cidadão do mundo que faz casa de qualquer lugar?
Sentes isso? Que bom. Sempre foi meio um objectivo essa coisa de trabalhar pelo mundo. A minha ida para Portugal é por conta de uma viagem que fiz à Índia após a morte do meu pai. Nesse retiro de silêncio, comecei a reflectir sobre o querer que a minha música pudesse vingar pelo mundo, e não apenas no Brasil. Na altura, tinha 21 anos e já fazia digressōes pelo Brasil. Percebi que me queria integrar na cultura do mundo e achei que Portugal podia ser uma boa porta de entrada, por estar perto de outros países europeus. Quando cheguei, dei logo de caras com o frio. No Rio de Janeiro, nunca está frio. Foi a primeira sensação mas estava tudo certo. Quero ir até onde puder. Uso o Japão de modo figurativo para demonstrar essa ideia de querer o mundo.
Além do Rio de Janeiro e de Lisboa, viveste em mais alguma cidade?
Um curto período em Praga, vivi uns meses em Buenos Aires e agora vivo em Barcelona. Mudei-me em maio/junho. Ainda quase não estive em casa porque não parei de viajar.
Porque deixaste Lisboa?
Lisboa é uma cidade que amo muito, mas houve vários factores. Tenho muitos amigos em Lisboa, tal como em Barcelona, mas sete anos depois de ter chegado, reflecti sobre muitas questōes. Principalmente, uma relação que mudou a minha vida na forma de compor e olhar para a vida. Acordava e tudo me fazia pensar nessa pessoa. Não conseguia compor sem pensar no vazio dessa relação ter acabado. Era doloroso e as cançōes reflectiam-no. Precisava de abrir horizontes, conhecer outras pessoas, ver outros ares, compor sobre outros temas…Era uma necessidade. Ainda pensei em mudar-me de cidade em Portugal, mas como tenho muitos amigos em Barcelona, aproveitei para conhecer. Quando cheguei, identifiquei-me logo com a cidade. Também é quente. E os caminhos da Espanha também se abriram muito depressa. Num ano, passei de 50 para 300 pessoas a comprar bilhete para me ver. Também contribuiu. Em 2024, viajei por 15 países e ter estado em Barcelona foi menos cansativo porque geograficamente, os voos são mais curtos e, ainda mais em Espanha, em que viajo de comboio. Estou a gostar muito da experiência.
Em Portugal, o teu público também estava a crescer.
Sim, foram sete anos maravilhosos. Quem sabe se não volto? Vejo Barcelona como uma passagem necessária mas Portugal está sempre presente. A cada ano, os concertos aí estão cada vez melhores. Mais cheios, mais convites para festivais super-legais e então é uma relação cada vez melhor. As portas têm-se escancarado. É a minha segunda casa.
Tens várias cançōes que falam de Lisboa. A Lisbon Lisbon e a Freguesia de Arroios. Era o teu bairro?
Sim, vivi um período bastante vasto naquela zona. Só ali, compus três cançōes: a Bairro da Graça, a Rua de Angola 7, que foi a primeira casa onde vivi em Portugal e me traz imensas lembranças, e a Freguesia de Arroios, que foi a última dedicada ao bairro e foi uma grande sucesso. A galera gostou. Fiz inúmeras cançōes sobre Portugal. A Lisbon Lisbon, sobre o céu de Lisboa, a Banho de Mar, do disco Beleza Isolar, sobre as praias, de Carcavelos, Caparica, e Ericeira. Foram sete anos muito inspiradores para compor.
Vivemos um tempo muito conturbado na relação com os imigrantes. Como é que foste recebido em Lisboa e como observaste estas tensōes a crescer?
Foram sete anos bem difíceis. No princípio também não entendia mas depois foi compreendendo melhor que as salas ou os festivais apostem em portugueses. É natural, no Brasil também há mais oportunidades para brasileiros. Em Espanha, também acontece. Para um estrangeiro, é sempre mais difícil. Senti muito isso na pele. Dava concertos, fazia discos, mas não conseguia sair do mesmo sítio. Tive sempre uma crença de que poderia dar certo, se crescesse nas redes e a música se começasse a espalhar, os espaços podiam abrir-se. Isso comprovou-se ao longo do tempo porque nunca desisti. Financeiramente, passei por um período complicado, quando gravei o terceiro disco Vicentina. Isso está no documentário Divina Certeza em que vou pedir dinheiro para as ruas. Peço um euro a cada pessoa para gravar o disco e consigo. Foi muito difícil para mim porque nenhuma editora me abriu as portas e porque as pessoas me julgavam por ser um estrangeiro a pedir dinheiro na rua. O olhar era de julgamento e deixava-me cansado. Consegui gravar, publiquei na Internet e em cinco meses chegou ao milhão de plays. Foi um salto muito grande em pouco tempo. Provou que a música ia chegar a algum lado, embora naquele momento fosse pouco apoiado. Aos poucos, comecei a ter portugueses a ver-me. Isso era muito importante para mim, ter público local. É legal viajar, e ter brasileiros a celebrar-me, mas também é interessante relacionar-me com as comunidades locais. Quando comecei a ter muitos portugueses a ouvir-me em streaming e nos concertos, senti que o meu trabalhou começou a aumentar, a evoluir e a abrir portas, que hoje estão abertas. Em Espanha, vou a Madrid, tenho 300 pessoas e 70% são espanholas, apesar de cantar em português. Foram sete anos de altos e baixos pessoais, de terapia para entender tudo o que se estava a passar e hoje sou muito tranquila em relação a essas questōes. Tenho muita esperança.
Foi a música a quebrar as barreiras?
Acredito que sim porque é uma linguagem universal. No momento em que a música toca no coração da pessoa, quebra todas as barreiras de preconceito. Quando o coração está aberto, já era. E depois há um trabalho de falarmos sobre isso e lutarmos.
Em 2024, Desde 165 concertos por 15 países no ano passado. A maioria das pessoas conheceu-te depois do Festival da Canção, e talvez não tenha consciência do teu alcance. Vives desprendido da indústria?
Acho que sim. Tive sempre muitas portas fechadas, no Brasil e na Europa, e cheguei a um ponto em que pensei: se quero fazer, vou fazer. Quando precisava de dinheiro para gravar um disco, fui pedir para a rua. Na pandemia, gravei em casa. Fiz questão de tentar abrir portas. Em Portugal, o meu cachet é maior do que na Turquia porque fiz o Festival da Canção, mas não me importo de ir à Turquia tocar para 30 ou 40 pessoas e receber menos porque quero mostrar a minha música. Alguns artistas talvez não aceitem. Tenho esse desprendimento, de abrir caminhos. Nunca fui pessoa de esperar pela indústria. Isso fortaleceu-me individualmente para lutar pelo que quero. E não ter medo de arriscar. Quando quero, vou para cima.
Chegaste a tocar na rua.
Sim, mas por um período muito curto porque sempre toquei música autoral. Não funcionava, porque as pessoas só queriam ouvir músicas conhecidas. Quando percebi que a rua não era propícia, comecei a procurar outros lugares. Foram só alguns meses.
A Borboleta-Efeito, que fala sobre pedir grana na rua, foi escolhida para fechar o álbum ao vivo. Foi gravada em Coimbra e é a única de um concerto em Portugal. Porquê?
Foi muito difícil escolher o alinhamento porque gravei muitos concertos, entre várias cidades com muitas energias de diferentes plateias. Acabei por escolher a melhor canção de cada cidade. Também gostei de outras cidades como Évora e Porto mas gostei muito da vibe de Coimbra. Achei que terminar em Portugal seria muito legal. Esse concerto foi sensacional e a vibe nessa música foi muito bonita. Foi especial acabar em Portugal.
És próximo do Jhon Douglas, que também está radicado em Portugal. Há um Brasil em metamorfose que nos está a chegar?
Sim, sem dúvida. O Jhon Douglas é um amigo. O trabalho dele é muito forte. Ele vem de Vilhena, na Rondônia, que é um lugar completamente diferente de São Paulo e do Rio de Janeiro. É muito importante que artistas de regiōes como a Amazónia também cheguem a Portugal. Ele capta muito bem a geografia cultural. Além de ser amigo dele, sou um grande fã. É um artista fenomenal.
O álbum ao vivo passa uma mensagem de esperança. Voltando um pouco atrás, há um ano, quando sofreste os ataques xenófobos a seguir ao Festival da Canção, a tua reacção não foi de revolta.
Não sou pessoa de me revoltar. Sou muito tranquila. Entendo que há processos difíceis que têm de ser debatidos mas tento levar os problemas de forma pacífica. Não senti raiva, só incompreensão porque lia muitos comentários sobre cantar em português do Brasil. Achei engraçado porque adoro a língua portuguesa, e eram portugueses a queixar-se de cantar em português quando havia uma artista portuguesa a cantar em inglês e não se queixavam - a canção dela era bem linda. Qual é a lógica? Achei engraçado por esse motivo. Decidi publicar nas stories e depois no feed o que estava a acontecer, e gerou-se um debate maravilhoso. Foi muito importante ter acontecido essa discussão.
Serviu de aprendizagem?
Concerteza! Também foi a primeira vez que senti isso na pele, sabes? Nunca tinha passado por isto.
E sobre o álbum novo, já tens uma ideia do que pretendes?
Sim, estou muito animado para começar a trabalhar na produção. Depois vamos para Paris, e em Barcelona também vamos gravar. Todas as cançōes nasceram na estrada. No backstage, em viagens de comboio, no hotel, ou seja em vários lugares que não são csasa. Vai ser um disco de muitos lugares. Fala de saudade, de conhecer alguém que nunca mais vou ver. Pode ser um dos discos mais importantes da minha carreira. Tem um potencial muito grande. Espero conseguir editá-lo até outubro, mas antes ainda vão sair alguns singles.
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Que leitura deliciosa, o tom que passa é exactamente o mesmo da música!