A única fruta que compro em supermercado é a banana da madeira. O passeio atlântico não lhe amarga o doce nem tinge o amarelo do sol - às vezes, ainda vem verde da árvore. Agora imaginemos que, num sábado de relaxe, o despertador está de folga e o pequeno-almoço tem a pressa de um caracol. Desloco-me à média superfície a cinco minutos de casa depois das 11 e o quilo da banana, geralmente fixado à volta dos 3 euros, parece um Airbus a descolar na vertical em direcção ao Funchal. De repente, o preço disparou para os 5 euros porque nessa manhã, toda a gente decidiu preparar filetes de peixe-espada com banana para o almoço. Justo? Claro que não, mas é o que está a acontecer com o sistema de “preços dinâmicos” dos concertos.
Por onde começar? Era uma questão de tempo a reunião dos Oasis. Com o mercado da saudade ao rubro, e o TikTok a questionar a memória - o que conta é o que novo na nossa vida e não as marcas temporais -, o Live Forever dos irmãos Gallagher gerou uma corrida aos bilhetes em ritmo Swiftiano. Após horas na “fila” para garantir o seu ingresso, milhares de fãs e curiosos bateram com a cabeça na parede. O bilhete seleccionado tinha um preço muito superior ao tabelado porque a procura sem precedentes tinha impulsionado uma inflacção de 135 libras (160 euros) para 350 libras (415 euros), legitimada pelo referido método de “preços dinâmicos”. Quanto maior a procura, mais alto o preço. Traduzido de "economês, quanto maior a escala do sismo, mais inacessível senti-lo. Concertos para abastados, adeus cultura popular, acessível e democrática.
Perguntas óbvias: os Gallagher não estavam a par da prática da Ticketmaster? “É preciso deixar claro que os Oasis deixam as decisões sobre venda de bilhetes e preços inteiramente a cargo dos seus promotores e managers", responderam em comunicado. É estranho ver uma irmandade tão controladora do seu terreno comportar-se com autismo quando o assunto é tão importante quanto o acesso, ainda para mais quando se trata de uma banda criada na classe operária de Manchester e aclamada pelo povo. Esqueceram-se de onde vieram? A festa acabou demasiado tarde? Definitivamente, talvez tenham sido ingénuos. Ou talvez não, porque os Oasis também são beneficiários embora não os únicos.
O dilema entre o amor à camisola e o preço da camisola transcende os Oasis e os artistas. No olho do falcão está a Ticketmaster. A plataforma de venda de bilhetes defende que o que faz é em tudo semelhante a práticas de companhias aéreas e hotéis, que aumentam preços com base na procura, defendendo-se com o facto de os preços-base serem definidos pelos artistas e seus representantes. O passa-culpas tem outra justificação: a “incerteza” na procura. Ou seja, a Ticketmaster e os representantes dos Oasis querem convencer-nos que duvidavam do estouro da reunião. Slide away, sim? O ajustamento automático de preços é óptimo porque pōe o risco todo do lado dos artistas. Se correr bem, ganham todos. Se correr mal, estes ficam numa situação de maior fragilidade porque a dependência da bilheteira é quase total. E promove um sistema de segurança e risco desenhado para nomes seguros e cimeiros como os Oasis, cavando um fosso cada vez maior entre tubarōes e pequenos cardumes.
A Ticketmaster foi absorvida pela Live Nation em 2010 e é um dos braços musculados da oligarquia concentrada pela promotora, sem grande resistência do sector. A Live Nation está em tudo em que envolva música ao vivo: salas, concertos, digressōes e festivais. A anunciada compra da MEO Arena (e da promotora Ritmos & Blues) pela Live Nation já foi autorizada pela Autoridade da Concorrência, ano e meio depois da notificação da operação. De acordo com as notícias, o gigante foi obrigado a apresentar um segundo pacote de compromissos para compensar as consequências desta aquisição. Desconhecem-se as contrapartidas mas em causa está o cumprimento das regras de concorrência.
A Comissão Europeia já está a investigar a prática da Ticketmaster, banalizada nos EUA mas ainda menos comum na Europa e, para se entender a dimensão do caso, até o Primeiro-Ministro Keir Starmer interviu. No limite, o sistema pode ser proibido. Embora a prática tenha enquadramento legal, poderá estar a ser conduzida de forma irregular quando, por exemplo, o preço sobe já depois de o consumidor ter feito a seleção de bilhete para compra, exemplificou fonte de Bruxelas ao Guardian. A intervenção dos governos no sector tem sido lenta, quer pelo habitual olhar sobranceiro sobre estes assuntos, quer porque alguns dos métodos usados se enquadram em zonas cinzentas da regulação, mas quer pela expressão mediática destes casos, quer porque alguns magnatas se aperceberam do peso económico de festivais, grandes concertos e digressōes mundiais, é inevitável que a percepção se altere. Resta saber se a tempo.
Não se trata apenas de dominar o mercado. Os efeitos estão para além das quotas e flutuaçōes. Como na habitação, o preço é uma forma de discriminação. Sistemas como o dos preços dinâmicos agravam a privação de prazer das classes médias e contribuem não só para tratar o fenómeno da música popular como um negócio de petróleo, como para a aburguesar como um Roland Garros ou um PGA, divorciando-a das suas origens plebeias e proletárias - ironicamente, de onde provêm os Oasis. Provavelmente, estamos a assistir a essa mudança de paradigma. Será o início ou um estado avançado? Só a regulação pode travar o poder absoluto destes conglomerados mas os artistas podem usar o poder de comunicação para alertar. Isto se tiverem interesse, o que não é liquido.
Em 2022, o método foi usado para a digressão de Bruce Springsteen. Os preços atingiram cinco mil euros. As reacçōes foram imediatas. A Ticketmaster defendeu-se com a justificação de que apenas 11,2% dos bilhetes vendidos eram de "platina", e que apenas 1,3% custavam perto de 1000 euros ou mais. De acordo com a plataforma, o preço médio de um bilhete para ver Bruce Springsteen é de 258 euros. O manager Jon Landau justificou-se com o preço médio de mercado de 200 dólares (197 euros), afirmando tratar-se de “um preço justo a pagar para ver alguém que é universalmente considerado como um dos maiores artistas da sua geração”. Springsteen subscreveu a lógica de mercado mas foi mais transparente. “A maior parte dos nossos bilhetes estão a ser vendidos a preços acessíveis. E esses bilhetes acabarão por ser revendidos a preços mais altos. Porque é que esse dinheiro não pode ir para os tipos que estão três horas a suar em cima do palco?”, comentou à Rolling Stone.
Que um working class hero multimilionário como Springsteen acredite nesta teoria já não espanta, tal a crise existencial em que está mergulhada a cultura popular. Nos anos 90, os Pearl Jam quiseram controlar o seu impacto e impuseram uma política de preços baixos para os concertos. Até descobrirem que a Ticketmaster cobrava uma comissão adicional que, basicamente, repunha o ingresso ao preço normal de mercado - uma margem generosa. A banda empenhou-se numa batalha desgastante e inglória, em que se descobriram factos como contratos ilegais de exclusividade entre a plataforma e diversas salas. Em protesto, cancelou a digressão de verão de 1994 e continuou a boicotar a Ticketmaster no ano seguinte. Sozinha na contestação.
Não tenhamos dúvidas de que as dinâmicas de bilheteira já é e vai ser ainda mais uma das questōes centrais dos próximos anos. Em causa, não está apenas a Ticketmaster mas uma prática tão questionável como lucrativa. Sabendo-se que a esmagadora maioria dos promotores trata a música como um produto e que Portugal deixou de ser o país dos festivais low-cost, a não ser que a Comissão Europeia tome medidas drásticas a fricção entre querer e poder tem tudo para se agravar. Don’t look back in anger, I head you say.
Como dizes isto está banalizado há já anos nos EUA. Ainda há dias encontrei um bilhete meu, para o Hollywood Bowl, há coisa de 10 anos, por uns módicos $50. No pit, mesmo em frente ao palco. Hoje em dia nenhum bilhete para a mesma sala custa menos $100 e $300 nao chegam para o pit de qualquer espectáculo mediano. Trabalho na industria e deixei de ir a concertos.