JP Simōes: "Nas cançōes do José Mário Branco, permanece o combate que será eterno por uma vida melhor e mais justa"
Mudam-se os tempos, mantêm-se as vontades. A ordeira sabotagem do manifesto é seguida à risca por JP Simōes no tratamento personalizado ao cancioneiro inestimável de José Mário Branco. Afinidades políticas e heranças estéticas atravessam primaveras enquanto andam para aqui chegar. Já a manutenção das vontades pode ser sondada na propriedade ética e na fidelidade aos arranjos originais.
No princípio de JP Simões Canta José Mário Branco estava uma leitura de Inquietação, depois vieram os concertos de Abril e agora um álbum integral de versōes - por coincidência mas que melhor momento para nos salvar da loucura? Na poética em carne viva, na teatralidade Brechtiana e na fortuna musical, JP Simōes desata o nó na garganta através do olhar justo de José Mário Branco, como se sempre tivesse habitado dentro delas.
Esta quarta-feira, dia 24, JP Simōes transporta a coragem de José Mário Branco como um verbo transitivo para o palco do Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, a partir das 21h00. No dia 25, Gisela João canta abril e a 26, B Fachada é “Zeca, Zeca e Mais Zeca!”
O namoro com as cançōes do José Mário Branco não é novo. No 1970, de 2007, já havia uma versão do Inquietação. Porquê um álbum integral de versōes?
A história é longa. Já ouço o Zé Mário desde pequenino. Entretanto, fiz uma versão do Inquietação, creio que para uma iniciativa do Henrique Amaro (a colectânea da FNAC Uma Outra História). Ele pediu-me para escolher um tema e eu tinha esse no coração. Acabou por ser incluído no meu primeiro álbum a solo. Fiquei muito feliz até porque algum tempo mais tarde, o JMB veio ter comigo e disse-me que gostou muito da versão. Deixou-me ainda mais feliz. Nos últimos anos, recebi algumas solicitaçōes para dar concertos em Abril com as cançōes da nossa música de intervenção histórica, como o Zeca e o JMB. Dei alguns concertos à volta desse acervo mas às duas por três, o repertório do JMB tomou conta do alinhamento. Portanto, já há alguns anos que tenho vindo a trabalhar as cançōes dele. Entretanto, o meu editor Hugo Ferreira, da Omnichord, quando foi presidente da RUC (Rádio Universitária de Coimbra) convidou-o para o concerto de aniversário da rádio. Ele respondeu que não estava com tempo para preparar uma banda mas ia com a guitarra. E foi. O Hugo gravou o concerto e durante anos ficou com aquela gravação amadora, com pena de não estar em condiçōes de ser editada. E desafiou-me a fazer este concerto. Eu já tinha as cançōes do Zé Mário e preparei uma coisa de raiz.
Daí a opção de não mexer nos arranjos?
Absolutamente. Imagino sempre que somos uma banda de pub, e que traduz as coisas que toca. Os arranjos do Zé Mário já são tão ricos. O que é que nós íamos fazer? A ideia não era inventar, era interpretar o mais fielmente possível os temas dele. Claro que nunca seriam iguais, pelos motivos óbvios. O processo foi de adaptação dos arranjos. O trabalho foi muito bem feito pelo [guitarrista] Nuno Ferreira. Foi isso que trouxemos para o disco. Alguns dos temas já eram tocados, outros resultaram da pesquisa. A excepção é o Perfilados do Medo, que tem ignição minha. Queria que fosse o mais psicadélico possível. A canção assim o sugeria. De resto, é tudo bastante fiel ao original.
O Perfilados de Medo original já é bastante psicadélico. É a mais aventureira por isso ou é também pela resistência ao medo de que fala a letra?
Ao vivo, acabo sempre por cantá-la com uma estranha raiva. Aos poucos, os instrumentos também responderam. Foram-se tornando mais ousados e caóticos. Quase John Zorn. Neste tema, houve uma metamorfosezinha por causa da interpretação em palco. Entretanto, foi montar a peça com um crescendo de tensão. O poema é fortíssimo e como a base do original é muito repetitiva, a ideia era criar uma progressão nova.
Além do convite do Hugo Ferreira, estas versōes partem de uma posição política?
Creio que sim. No que toca à música de protesto, há uma pulsão estética e uma escolha por afinidade. No caso da coincidência com os 50 anos do 25 de abril, foi mesmo uma coincidência porque isto já vem acontecendo há alguns anos e o disco saiu agora. Ainda bem que foi nesta efeméride. A força destas cançōes ultrapassa as circunstâncias. Tem posiçōes fortes sobre coisas muito importantes para a nossa vida como paixão, respeito mútuo, paz, pão e habitação. É sempre uma fiel balança das variaçōes políticas, opressōes e injustiças. Por isso, é sempre bem-vinda. Nós estamos sempre em mutação enquanto seres humanos e sociedade. Há passos que se dão atrás, como agora se tem visto, pelo menos na ideia que eu tenho de progresso saudável para as nossas vidas. As cançōes do José Mário Branco caem aqui muito bem. Nelas, permanece o combate que será eterno por uma vida melhor e mais justa.
Partilhas da ideia de que, independentemente da carga ideológica e da importância histórica, estas cançōes, assim como as do José Afonso, não são devidamente apreciadas pelo seu valor artístico quando são riquíssimas?
Partilho! Estas cançōes estão numa espécie de conservação criogénica e em abril florescem por causa das circunstâncias - a memória da Revolução e o utilitarismo político para determinadas forças ao serem apresentadas como hinos - quando ultrapassam a colagem a qualquer ideologia. Concordo plenamente. São cançōes sobre a condição humana e exemplos de liberdade e beleza. Valem muito mais do que as circunstâncias.
Ao repescares este cancioneiro, encontraste novos sentidos?
Acima de tudo, descobri o quanto elas me fazem sentido. Tornaram-se mais próximas. O que mais me tocou foi a palavra justa. Há muito pouco artifício. É uma conversa séria, com clareza, sobre as coisas. No início, estas cançōes faziam-me vergar um pouco com muitas posiçōes éticas. Perguntava-me: “estou à altura de cantar isto?” Será que o meu comportamento se adequa à moral sugeridas pelas cançōes? Aos poucos, fui-me deixando de pôr em causa e encontrando a minha posição de intérprete encantado.
A teatralidade impressionou-te?
Há sempre alguma teatralidade nas cançōes. Criam o seu universo e encenam a acção. As cançōes do JMB vêm de uma longa tradição que mistura música portuguesa com o teatro de Bertold Brecht. Têm sempre um tom teatral e eu sinto-me bastante em casa.