Jonas: "Sinto que estou a trazer uma interpretação nova para coisas silenciadas"
Vai para a tua terra. E Jonas foi de modas e levou mesmo o fado às maternidades menos conhecidas da história recente. Maçã D’Adão, o notável sucessor de São Jorge reconstrói e reinterpreta ligações com origens mouriscas, afro-brasileiras e gitanas. Uma operação de resgate do bate-fado que o arranca da mesa para dar o corpo ao manifesto e suar.
Esta outra história do fado, menos conhecida, partiu de uma visão para se reconhecer na história. “O fado de 1800 era muito mais aguerrido. Tinha muito mais perigo. Era um ambiente talvez mais decadente, com prostituição e provavelmente drogas. As pessoas dançavam”, conta Jonas, fadista, bailarino, coreógrafo e estudioso da matéria.
O álbum vem carregado de ligações ao misticismo, à ficção, ao surrealismo, à cerâmica, ao bairro, ao sagrado e ao profano. Viagens na terra de um fadista divergente para quem é tudo uma questão de naturalidade.
No texto de apresentação do Maçã D’Adão, defende-se que "é do desconhecimento quase generalizado o facto de que o Fado foi dançado durante quase metade da sua existência". Apesar de muito difundido, o fado continua a ser um território de desconhecimento e, por essa razão, de preconceito?
O fado a que temos acesso hoje em dia é o fado da ditadura. Há um fado instrumentalizado em que a coisa do preto tem a ver com poder ouvir-se fado em segurança. As letras muito eclécticas de poetas muito fortes tem a ver com a instrumentalização do fado enquanto símbolo nacional. Perceberam que não ia ser possível acabar com o fado e então o fado, o folclore e outras formas de expressão popular foram instrumentalizadas numa certa direcção. Quando tive este visão - e pode ser petulante mas foi mesmo uma visão -, estava às quatro da manhã a ouvir uma fadista à porta fechada numa casa de fados, vi um homem a sapatear o fado. Já tinha um espectáculo agendado para o Rivoli com o Lander [Jonas e Lander], apresentei-lhe esta proposta e mudámos tudo. Quando comecei a ter acesso a esse fado de 1800, apercebi-me de quão diferente ele era e de como tudo mudou. Sempre andei no meio do fado, a cantar nas casas de fado, e é engraçado como quando começas a ler a história, ao chegar às casas de fado de Alfama, Mouraria ou Bairro Alto, a visão altera-se. O fado de 1800 era muito mais aguerrido. Tinha muito mais perigo. Era um ambiente talvez mais decadente, com prostituição e provavelmente drogas. As pessoas dançavam. Logo isto, criou uma enorme diferença em tudo. É muito diferente estar numa casa de fado e as pessoas estarem curvadas a tocar naquele registo melancólico ou as pessoas suarem porque estão a dançar ou porque houve uma briga no exterior. Tenho que fazer um esforço enorme para imaginar como era o fado nessa altura, quando Lisboa era um dos principais portos do mundo e recebia gente de todo o mundo. Não havia comunicação e era assim que se transmitia a cultura. Chegava gente de todo o mundo, de outras etnias, de África, indígenas do Brasil…também havia uma dança chamada fado. A história do fado é universal. Tem muito mais do que esta bandeira.
É essa outra história que expōes no vídeo do Mouraria Moirama?
É uma partezinha…Eu não tenho que expor nada mas entendo o choque. Fui só gravar um vídeo numa rua que se tornou muito mais moura do que qualquer outra parte da cidade. A minha mãe é da Mouraria e já não ia lá há muitos anos. Ela foi lá para participar no vídeo e no fim disse-me que parecia que lhe tinham apagado as memórias com uma borracha. Entendo isso. Há que perceber porque é que os portugueses não vão lá. Aquele pequeno restaurante do Bangladesh transformou-se num filme de Bollywood. Eles estavam felicíssimos por participar no vídeo e estavam mesmo felizes por os portugueses entrarem no espaço deles. Com alguma tensão no ar mas a tentar comunicar. Passava-se ali alguma coisa. É importante ouvir os dois lados da história. Esta é uma das culturas que está no nosso sangue, na nossa arquitectura…a cultura mourisca e árabe é um pilar forte. Gosto muito de ver o bairro da Mouraria cheio de mouros mas isso tem que ser equilibrado (sorri).
Houve uma intenção deliberada de criar algum tipo de choque?
Nada. Quando começo estes processos, entro numa espécie de obsessão. Limito-me a despejar o que me está a chegar com muita intensidade. Fico quase sem dormir, com uma energia enorme. O que me move não é chocar ou marcar a diferença. Até fico surpreendido ao ouvir as reacçōes. O que é super-chocante para as pessoas para mim é natural. Para mim, é um objecto que vale a pena e que não consigo não fazer (sorri). Uma espécie de algeroz.
Mas concordas com a ideia que há pelo menos uma ruptura com a tradição mais comum.
Acho que é uma ampliação. Já experimentei quase todas as formas de expressão artística performativas: circo, teatro de rua, teatro físico, teatro musical, cinema…e desde há muito que viajo bastante, sobretudo como Jonas & Lander, e acho que isso se reflecte. Há uma ampliação nesse sentido. Como estou habituado a criar um espectáculo de dança, onde a cenografia e a dramaturgia são muito pensadas, depois aplico isso no processo criativo do fado. Como gosto muito de ficção, surrealismo e desta dimensão longínqua ligada a exotismos do fado, isto intriga-me muito. Sinto que estou a trazer uma interpretação nova para coisas silenciadas. O fado do Brasil ainda existe. Há um grupo no Brasil que dança uma dança chamada fado, formado por indígenas e pessoas escravizadas. Não sinto que esteja a romper, sinto que estou a chamar a atenção para algumas dimensōes desaparecidas do fado.
Sinto que estou a trazer uma interpretação nova para coisas silenciadas. O fado do Brasil ainda existe. Há um grupo no Brasil que dança uma dança chamada fado, formado por indígenas e pessoas escravizadas. Não sinto que esteja a romper, sinto que estou a chamar a atenção para algumas dimensōes desaparecidas do fado.
Uma devolução?
Espero que sim (sorri). Todos os movimentos para ampliar que vêm de um lugar de admiração e amor, são bem-vindos e só enriquecem as formas de expressão cultural. É natural que elas evoluam e ganhem outras cores.
Inclusão e etnicidade não são valores habituais no fado.
Não sei se essa imagem está correcta. Sempre me senti muito incluído. O bullying que sofri é o bullying que qualquer pessoa sofre ao chegar ao fado. É uma espécie de corredor da morte para se entrar no fado que acontece a toda a gente (ri-se). Entendo essa leitura de fado de direita, mas há muitos tipos de fado e lugares de fado. Ainda assim, e apesar de este fado que conhecemos hoje ser o da ditadura, sinto que é um lugar de inclusão. Sempre que é o fado que nos liga, consegui falar com pessoas muito diferentes de mim. Há ali qualquer coisa que nos liga, que nos faz parar para nos escutarmos e a pessoas de outras etnias, estrangeiros…um ambiente multicultural. Cresci no fado, vivo-o a partir de dentro e não sinto que seja um lugar de exclusão. Pelo menos para mim nunca foi.
Como te vês no meio?
É a minha família. A família de fado é como se fosse uma extensão da minha família. Não há outro meio onde sinta isto, apesar de ter passado por várias formas de expressão artística.
O fado é um centro de gravidade que te liga a todas as outras disciplinas?
Sim, é isso. Desde sempre passei por imensas experiências que vão tendo um princípio, um meio e um fim, e o fado mantém-se intocável. É o meu veículo nesta viagem. Tudo o que colecciono, é acrescentado.
Ao trazeres cante alentejano, música cigana e brasileira para o Maçã d’Adão, quiseste mostrar elos de ligação com o fado?
São lugares onde há pontos de contacto. Há projectos de fado flamenco, de morna com fado, música brasileira com fadistas é o que há mais e não é por acaso que eles acontecem. Estes ADNs estão na cultura portuguesa e consequentemente no fado. O fado e o cante alentejano estão muito próximos. O cante tem essa herança árabe ainda mais forte, que no fado está mais esbatida. E são também consequências da minha vida. A minha maior frustação é não ser bailarino de flamenco. Já fiz muitas aulas e o fado batido até foi o meu primeiro contacto com o flamenco ao vivo. A minha relação com o Brasil é fortíssima, tanto no lado espiritual - faço várias giras de candomblé -, a escritura afro-brasileira e indígena interessa-me muito, ouço muita música brasileira, o Lander é do Rio de Janeiro e tudo isso acaba no meu trabalho. São tudo marcas da minha biografia que de alguma forma se coaduna com a do fado. Essas pontes históricas são-me muito queridas. Com África também. Cresci numa escola em Odivelas e tinha imensos amigos afrodescendentes. São tudo consequências e nós somos multiculturais. A minha família anda a fazer testes de ADN e estamos a ser surpreendidos com a nossa herança. Há África, há Itália, há Brasil…
Por falar em vários tipos de fado, têm-se feito diversas experiências com diferentes roupagens como a electrónica mas no teu caso, há uma ideia de expansão mas não necessariamente de fuga.
Nem sinto que aconteça com algum fadista a praticar essas experiências. É terrível transportar uma noite de fado para um palco. Quando vais para palco, o mecanismo é outro, a distância é outra, tens um aparelho de som enorme entre ti e o público. A iluminação é discursiva. É outra coisa. O ritual das noites de fado é tão delicado, é tão intimista, sem nada entre ti e a pessoa a um metro de distância, tens comida e o álcool que te inebria. Não tem nada a ver com um festival de música. As experiências são fruto do nosso tempo na música e na revolução tecnológica. Criam um certo paisagismo que é uma coisa muito natural no fado. Estão a ser feitas experiências muito interessante mas não sinto que algum de nós se esteja a afastar do fado. Estão só a experimentar outras coisas porque a forma de cantar do fado é muito vincada.
Onde se encaixam os sete pecados mortais na história?
Ela já vem ligada à Bíblia na forma de livro de criação e surrealismo em que está tudo a nascer. Comecei a ter contacto com a cerâmica. Vai beber muito ao figurado e ao artesanato de Barcelos e houve uma personagem que me fez agarrar no barro que é a Rosa Ramalho. Eles representam muito os sete pecados e eu fiz também uma figura chamada Costela d’Adão que é um homem muito esticadinho. Na parte das costelas, tem uma monstera. É uma nova paixão na minha vida e estou a preparar uma exposição. Este álbum vem muito do barro e na génese da Bíblia, Deus faz o Homem de barro. A pena de ter comido a maçã é voltar para a Terra de onde veio. Esta coisa da criação, do barro e dos sete pecados está ligada à origem. Queria ter uma canção para cada pecado, algumas melodias até já tinham letra mas refi-las para o pecado, e acabou por faltar um. Foi um acidente de que me apercebi a tempo mas achei piada e decidi não corrigir (ri-se).
Há uma relação entre o sagrado e o profano?
A luz só existe por causa da escuridão. Se acenderes uma vela ao meio-dia, não a vês. Se a acenderes num sítio escuro, ela ganha outra dimensão. O sagrado e o profano só existem se o outro existir. Estão ligados. Há coisas inexplicáveis em que a minha única escapatória é admitir que talvez isto se complete de alguma forma e exista algum ciclo que não estou a perceber. Sim, o álbum é muito sobre isso.
Numa biografia publicada na página do Festival da Canção, és apresentado como alguém que cresceu “rodeado de música sacra, frequentando coros de igreja e de gospel, no seio de uma família bipolar com o lado paterno fortemente católico e o lado materno fortemente protestante”. A resposta anterior começou aqui?
Exacto (ri-se). Ainda por cima, sou gay e nesse contexto é engraçado porque tive uma infância muito complicada e a igreja era o meu contacto com a arte. Desde que me lembro de ser pessoa que me lembro de estar na igreja. Era obrigado. Os meus primeiros contactos com a arte foram sempre através dessa moldura sacra. Todo o meu imaginário inicial nunca pensei que pudesse ficar tão entranhado. Chamo-me Jonas e o meu irmão Jó porque a conexão com Deus, tanto de um lado como do outro, é fortíssima. Toda a história [bíblica] do Jonas que é engolido por uma baleia mas está a cumprir uma missão de Deus, muito ligada com o mar…A minha ligação familiar sempre foi muito problemática e o contacto com a arte e o sagrado sempre foi uma libertação. Foi a terapia que me ajudou e guiou. Nunca pensei que me fosse ajudar tanto daí para a frente, e que viesse a espelhar-se no meu trabalho. A minha realidade é esta. Não há separação da espiritualidade.
A forma maleável como trabalhas a palavra também é comparável ao barro. Tens explicação? Pode relacionar-se com o diálogo com as outras formas de expressão?
Não faço ideia, não sei explicar. Acho que foi na quarta classe que ganhei um prémio das escolas com um poema. Não estava nada à espera. Não sou grande leitor. Acabo de ler um livro e esqueço-me. A minha memória de reter coisas e sensaçōes é muito difícil. Se forem livros de história ou temas muito fortes, gravo muito melhor mas não sei como é que esta coisa acontece. E acho que só acontece ao serviço da música porque não me dá para escrever. A melodia e a música chegam-me primeiro. Forço-me a escrever qualquer coisa mas parto sempre da perspectiva de estar a falar com alguém. Há artistas que dizem que não se importam com o público ou a opinião do público. Para mim, é o mais agonizante saber como é que o público vai receber este presente (sorri). Se calhar, é isso que ajuda a que a minha comunicação seja tão directa porque estou mesmo a pensar em falar e servir um diálogo com as pessoas que recebem aquela mensagem. Mas não sei como é que acontece porque não sou pessoa das letras.
És um estudioso do fado?
Não é só do fado, é de tudo o que venha da expressão popular. Em primeira instância da minha, e depois como é que se liga com o resto do mundo. Por exemplo, os caretos é uma coisa quase tribal, anterior ao país, que nos liga a vários pontos do mundo. Estes contactos através da arte despretensiosa e despida de preconceitos, que existe no povo, leva-me a muitas culturas. Gosto tanto que acabo por ir procurando. A minha investigação vem daí. Como me interessa, retenho essa informação e acabo por juntá-la ao meu trabalho. Gostava de fazer um documentário sobre os caretos e os rituais associados. Acompanhá-los de perto. Perceber a especificidade e funçōes das personagens. Perceber porque é que o Carnaval acaba aqui ou ali. São sempre aldeias muito pequeninas e nunca em grandes cidades, mas com muita força.
Já tens um percurso muito extenso. Trabalhaste com o Filipe La Féria, fizeste parte dos Rosa Negra e tens um Fado Mutante anterior a esta fase. O Maçã d’Adão é o trabalho que melhor reflecte tudo o que já fizeste?
Sim, é o mais completo.