Nos anos 90, quem não gostaria de ter tido a vida de João Pedro Coimbra? É aluno dos irmãos Pedro e Mário Barreiros na Escola de Jazz do Porto, e a pedagogia propicia uma banda que há-de ser ouvida pelo professor de combo Pedro Abrunhosa. É o princípio de uma viagem inesquecível que nasce na movida portuense e se transforma no grande acontecimento pop da década, e um dos mais transformadores do pós-25 de abril. Com vinte anos, JP Coimbra vê a lua da cadeira da bateria, o instrumento em que se tinha iniciado apenas ano e meio antes de dar o corpo pela alma.
Quando o céu acaba, a terra ainda tem de esperar. Convence Luís Jardim a “estagiar” em Londres, e, quando regressa ao Porto, integra a banda de palco dos Três Tristes Tigres nos concertos do Guia Espiritual e, já no final da década, de Comum. No choque frontal entre pop e linha da frente, ainda integra os Coldfinger, mas o novo milénio acentua novas vontades.
Faz-se homem das sete assoalhadas e Mesa é o nome dado à casa criativa onde compōe, produz e toca. Uma porta giratória estabilizada com a voz quente e possante de Mónica Ferraz. Alguma da pop mais estimulante da alvorada do século digital há-de passar por este tandem. Em 2003, o fulgor do inaugural Mesa concilia universalismo pop e contemporaneidade. Há trip-hop fumarento em Tinta Invisível, uma Mímica Sísmica animada por electroclash e o electropop motivacional de Divagadora - uma bela canção para dançar com a esfregona.
A pop dos Mesa tanto é tingida pelo progresso como pela mundanidade. Em Esquecimento, Mónica Ferraz solta a fera. “Quero ver gente, quero ver a terra/chegar a casa e ter alguém à espera”, exclama. A acção é comandada por máquinas mas predomina a fisicalidade. Um corpo sonoro musculado, esculpido pela pulsão rítmica, sem abdominais de boy band. Luz Vaga bebe da ciência humana de Björk, enquanto Celofone veste a pele dos Três Tristes Tigres. Fumo da Frase também tem o bafo de Comum mas os Mesa não vivem debaixo de saias. Querem e podem.
Esgotam a primeira edição do álbum, reeditam Mesa com o espiríto de Scott Walker em Restless Minds, e a EMI entra em cena. A indústria valida o que para a imprensa já era evidente. Os Mesa estão a crescer sem vestir números maiores que as pernas. Rui Reininho é o interruptor do segundo raio de Luz Vaga e tudo parece ser um dia claro a despontar.
Em 2005, Vitamina ordena a desarrumação mas não consegue ser tão fulgurante. A irracionalidade da estreia é absorvida por uma expressão mais coesa e acústica de banda. O efeito e causa de muita estrada nos anos anteriores, acentuado pelos blues hereges das seis cordas de Jorge Coelho. O que parece soluçar é a máquina programada para os projectar. O álbum é ovacionado, tem pérolas como a mediterrânica Vício de Ti, o beijo molhado no house de Lobo ao Luar, e uma surpreendente Deixa Cair o Inverno, informada por Sérgio Godinho, mas o salto para as grandes plateias fica por dar e os Mesa ficam naquele impasse entre ser e ter. Que a metamorfose gradual dos posteriores Para Todo o Mal, Automático e Pés que sonham ser cabeças (com a segunda vocalista Rita Reis) não há-de desatar.
E, no entanto, os Mesa são titulares de alguma da ourivesaria pop mais reluzente dos últimos vinte e cinco anos, celebrados dentro de menos de um mês com concertos a 7 de maio na Casa da Música e 15 de maio no Lux. Os Mesa eram? Os Mesa são. Estas cançōes pertencem a um tempo, mas estão vivas e provocam ciúmes à automação pop actual. João Pedro Coimbra lembra-se de como tudo aconteceu.
Cresces no Porto?
Cresço em Lisboa até aos dez anos e depois vou para o Porto. Os meus vieram para cá porque a minha mãe tem raízes aqui em cima.
Em que ambiente musical e cultural?
Quando era miúda, a minha mãe chegou a tocar piano clássico. Foi colega da Maria João Pires. Depois, teve que desistir por questōes familiares. Apesar de desde miúdo gostar imenso de música, principalmente de bateria que era um instrumento que me fascinava, nunca tive aulas até aos 16 anos. O ambiente cultural até à minha adolescência era o normal. Ouvia música na rádio e via o que passava na televisão. Não tinha acesso a álbuns. Isto ainda nos anos 80.
Como é que a tua personalidade musical se forma como ouvinte e depois como músico?
Começa-se a formar com aquilo que era normal na época, e ainda hoje é, só que de forma diferente. Com a partilha de cassetes. Um tio meu tinha uma colecção de vinil altamente e ia para lá gravar coisas. Na escola, havia uma malta mais indie. Levavas as capas debaixo do braço e aquilo era o teu statement. Comecei a gostar de coisas sem as ter ouvido porque o acesso não era como hoje. Lembro-me de ver uma capa dos Doors com o Jim Morrison nu e pensar: “quero ouvir aquilo”. Ou dos Smiths. Era uma amiga minha que andava de Doc Martens, sempre com alto estilo, e trazia esses discos. Fui levado por isso, pelo lado visual. E depois passava o tempo em discotecas (lojas de discos) a tentar perceber se gostava ou não. Juntava algum dinheiro e comprava. E ouvi muita rádio, até a uma idade adulta. A rádio foi formadora. Lembro-me de ouvir o Álvaro Costa e descobrir o Jeff Buckley. Muita gente não se lembra mas ele esteve em Londres e depois passou um período longo em Los Angeles. Era quando fazia um programa ao sábado à tarde na Antena 3 e mostrava em primeira mão o que estava a rebentar nos EUA. Ficava colado. Era uma pesquisa informal e às vezes difícil. Como ter aulas de música. Estudei na Escola de Jazz do Porto e na altura não tinhas acesso a material visual dos artistas a tocar. Hoje, tens tudo no YouTube. Tinhas que imaginar. Nos anos 90, o meio era iminentemente áudio. Hoje é multimédia. A imagem passou a ser mais importante para as pessoas do que o próprio som, pelo menos para uma franja.
Houve algum disco, banda ou movimento que te tenha marcado? Pertencias a alguma tribo?
Gostava de tudo menos de reggae e heavy metal. Naquelas festas de sábado à tarde, ouvia-se Violent Femmes, Cramps e The Meteors. Sempre gostei muito de Smiths, ainda hoje é uma das minhas bandas favoritas apesar de o Morrissey ser um gajo um bocado esquisito e às vezes execrável. Adoro a fusão do songwriting com o wall of sound das guitarras do Johnny Marr, das letras e da voz do Morrissey. Também gostava bastante de Sex Pistols. Depois, percebi que o produtor deles era o Chris Thomas que também produziu o Paris 1919 do John Cale, que é um dos meus álbuns favoritos. Essa já é uma pesquisa mais tardia. Percebi a importância dos produtores. Por exemplo, o Brian Eno estava ligado a uma série de bandas de que gostava, desde Talking Heads, a Roxy Music, Devo e ao John Cale.
Quando começas a estudar?
Por volta dos 17 anos, na escola Caius, em frente ao Majestic. Daí fui para a Escola de Jazz do Porto. Ainda cheguei a fazer o curso superior de música mas na altura não havia sequer curso de jazz na Escola Superior de Música. O que gostava mesmo era de bateria e percussão e a clássica não me motivava. Também não tinha dinheiro para ir para a Berklee, nos EUA, e acabei por ficar na Escola de Jazz. Tive óptimos professores. É daí que vou para os Bandemónio. Quando já estou nos Três Tristes Tigres, começo a interessar-me pela composição. Tive aulas particulares de piano e de baixo.
O Pedro Abrunhosa foi teu professor?
Ele dava aulas de combo na Caius. Eu, o Nuno [Mendes, guitarra], o Luís [Gregório, baixo] e o Cláudio [Souto, teclados] fizemos uma banda de jazz-fusão. O Pedro ouviu-nos e convidou-nos.
As cançōes do Viagens já existiam?
Já.
Isto acontece durante a gravação do álbum?
Sim, de certeza. Ele já estava a gravar com o Mário Barreiros e com o Quico Serrano. O Pedro tocava com uma banda que era a Máquina do Som e depois decidiu fazer o Viagens com uma banda nova, mas basicamente tocado por eles os três e os sopros do Maceo Parker. A génese do disco é muito interessante porque sai de duas cabeças muito distintas: o Mário, pelo lado dos instrumentos acústicos como a guitarra e a bateria que ele toca muito bem, e o Quico que é um génio dos sintetizadores. Também o tinha conhecido na Caius porque ele era demonstrador dos teclados da Roland. Eram autênticas naves espaciais e o meu entusiasmo pela electrónica também começou a crescer.
Nos Bandemónio, a primeira digressão é em 94. É incrível porque começámos em abril na Gartejo, com o Maceo Parker, numa sala com pouca gente e os nossos pais a levar os instrumentos para Lisboa porque não havia dinheiro para contratar uma equipa. No final do ano, tínhamos feito 120 espectáculos. Foi um fenómeno impressionante. Eu já nem vinha ao Porto. Tínhamos um acordo com um hotel em Lisboa e não me apetecia voltar a casa. Tinha 20 anos, metia a roupa num malão gigante e xau. Apareço daqui a uns meses.
De repente, estás no olho do furacão.
Sim, para mim foi muito importante. Só tocava bateria há ano e meio (ri-se). Apesar de me fascinar desde miúdo, a primeira vez que tive uma bateria a sério foi na Caius. Sentar-me naquele kit, com aquelas peças, ainda hoje é especial. Nunca mais quis sair [da bateria]. Os meus pais compraram-me uma bateria de entrada de gama, mas morávamos num apartamento e os vizinhos não acharam piada nenhuma aquilo. Já nos Bandemónio, a primeira digressão é em 94. É incrível porque começámos em abril na Gartejo (posteriormente conhecida como Paradise Garage), com o Maceo Parker, numa sala com pouca gente e os nossos pais a levar os instrumentos para Lisboa porque não havia dinheiro para contratar uma equipa. No final do ano, tínhamos feito 120 espectáculos. Foi um fenómeno impressionante. Eu já nem vinha ao Porto. Tínhamos um acordo com um hotel em Lisboa e não me apetecia voltar a casa. Tinha 20 anos, metia a roupa num malão gigante e xau. Apareço daqui a uns meses. Havia sempre dias em que não havia concertos. O Nuno tinha carro e nós aproveitávamos. Fazíamos o que tínhamos a fazer durante o dia e à noite íamos ver concertos, ao cinema…
Curtir a vida.
Sim, muito fixe. No ano seguinte, ainda fazemos 60 ou 70. Foi uma experiência muito importante e formadora. Se não fosse isso, hoje não era músico.
Na passagem de 2024 para 2025, a RTP2 transmitiu um concerto da digressão do Viagens no Coliseu do Porto no final de 1994 e aquele momento parece irrepetível. Nota-se que os Bandemónio são pessoas muito novas e toda a gente, incluindo o próprio Pedro Abrunhosa, está a viver tudo pela primeira vez, sem o peso de uma máquina exterior. Até as imagens de bastidores mostram quase tudo.
Sim, fizemos quatro coliseus no Porto e três em Lisboa com o Maceo. Até para o Pedro, é uma situação nova. Ele era bastante mais velho que nós, já tinha uma experiência no jazz mas foi a primeira aventura pop a surtir efeito, com muito mérito. Estava tudo a acontecer. Nós estávamos a aprender e ele também estava a aprender a ser a persona que criou. Foi uma aprendizagem para toda a gente que estava nos Bandemónio nessa altura.
Findo o ciclo dos Bandemónio, tocas com os Três Tristes Tigres a partir de 1996.
Sim, o Quico fazia parte dos Tigres. Produziu o Guia Espiritual com o Alexandre [Soares] e a Ana [Deus]. Eles precisavam de alguém que tocasse bateria acústica e electrónica. Nos Bandemónio, já tocava com samplers. Convidaram-me e para mim volta a ser uma experiência formativa porque tinha estado num contexto pop e agora passava para um contexto mais alternativo. Para mim, ambas válidas e enriquecedoras. Sou daquelas pessoas que acredita que só há boa e má música. Se é pop ou não, interessa-me pouco. Interessa-me sim se me soa a alguma coisa. Se mexe comigo ou não. O Viagens mexeu comigo, como o Guia Espiritual e o Comum (1999) também. Eles depois pararam em 2000 e regressaram em 2016. Nessa altura, volto a tocar com eles até 2020. Foi uma aprendizagem. Tirei o curso da pop e a seguir fiz o curso da vanguarda pop (ri-se). Senti-me um privilegiado.
O Viagens, o Guia Espiritual e mesmo o Comum são marcantes para a música portuguesa dos anos 90.
Absolutamente. Tive o privilégio de estar envolvido em todos. No entanto, ainda há um episódio no meio. Quando saio dos Bandemónio em 96, vi uma entrevista no Blitz com um personagem chamado Luís Jardim que eu achava que era brasileiro, porque ele assinava Lois Jardim. Tinha tocado percussão em discos da Björk, no primeiro dos Jamiroquai…Percebi que ele era português, arranjo o número e ligo-lhe para Londres. “Olha, sou um ‘tuga que toca bateria. Gostava de ir para aí trabalhar contigo”. Ele não fazia ideia quem era o Pedro Abrunhosa ou os Bandemónio mas chamou-me. Arranjei onde ficar e ele apanhava-me todos os dias em Picadilly Circus. Passei umas semanas a vê-lo trabalhar.
Foi o teu estágio?
Foi. Percebi como é que uma indústria a sério trabalha. Ele era muito respeitado lá. Fazia sessōes com toda a gente. Podia ter ficado mas preferi voltar.
Os Mesa já remoíam nessa altura?
Os Mesa começam a andar na minha cabeça a partir de 2000. Entretanto, ainda vou para Lisboa tocar com os Coldfinger. É nessa altura que faço as primeiras maquetas. Nem mostro ao Miguel [Cardona] nem à Margarida [Pinto]. Tinha vergonha. Não sabia se valia alguma coisa. A imprensa tem um papel fundamental. A minha formação musical também se faz com a imprensa a ler o Blitz, o DN+ que eu adorava, e antes disso, o Se7e. Eram bíblias, comprava religiosamente para estar a par do que se fazia lá fora e cá dentro, e saber mais sobre a história da música. Nessa altura, já ia para os servidores de Internet rapinar discos porque nem todos chegavam cá, nem havia dinheiro para os comprar. Não tinha Spotify. Os jornais foram importantes porque tinham uma secção de bandas não editadas. Dávamos um concerto no Porto e estava lá o Blitz. Havia jornalistas aqui. Isso foi muito importante para termos uma primeira reacção jornalística. Fizemos uma maqueta e passou pela primeira vez a Tinta Invisível na rádio. Foi na Antena 3, com o Nuno Galopim, o Henrique Amaro e penso que o Nuno Calado. Foi muito especial ouvir um tema meu pela primeira vez.
A Marta Ren foi a primeira vocalista dos Mesa?
Sim, houve várias interacçōes nessa altura até a banda estabilizar. Experimentei várias cantoras. Sempre quis ter uma cantora. A Marta Ren fez parte dos Mesa nos primórdios. Ainda demos um concerto no Hard Club com ela.
Existe alguma gravação dessa altura?
Acho que não. Tinha um PC na altura e perdi todas as maquetas. Dos Mesa, só tenho o que veio em DVD dos estúdios do Mário Barreiros.
A Mónica Ferraz fixa-se como vocalista. Ela vinha do circuito dos bares?
Sim, a Mónica trabalhava com a mãe num bar muito importante de jazz em Matosinhos que era o B.Flat. As bandas vinham ao Hot Clube, em Lisboa, ao B.Flat, e à Escola de Jazz do Porto, onde havia um bar em que cheguei a trabalhar. Era o circuito de jazz dos anos 90. A Mónica deu os primeiros passos no B.Flat.
É lá que a conheces?
Conheço-a porque perguntei ao Quico se ele conhecia alguém para cantar. Ele sugeriu-me a Mónica e deu-me o contacto.
O primeiro álbum sai em 2003, pela Zona Música, de forma independente.
Sim, tive reuniōes em Lisboa com várias editoras. Nenhuma estava interessada. Comecei a desesperar porque estava sem dinheiro. Já estava pronto para trabalhar em qualquer coisa. Quando estou quase a desistir, recebo uma chamada do Fernando Tomé da Zona Música, que representava o catálogo da Mute em Portugal. Ele queria apostar em catálogo nacional. Editou os Coldfinger e uma série de outros projectos (Hipnótica, Atomic Bees, Primitive Reason, More Republica Masónica, etc.) da época. Foram eles quem financiou o disco. Gravámos no estúdio do Mário Barreiros, que tinha acabado de ser feito e eu conhecia. Queria ter boas condiçōes. Eram para ser sete dias, acabaram por ser três semanas. Foi uma grande experiência. Ainda fiz um arranjo de cordas no sampler e tive que passar para partitura. Não sabia se os músicos conseguiam ler (ri-se).
É um disco muito laboratorial. Como é que o fizeste?
Foi feito com um sampler de hardware da Yamaha, um Juno 106, que é um teclado MIDI dos anos 80, e um sequenciador Atari que o Alexandre Soares tinha parado e me emprestou.
Concordas que nesse primeiro disco se notam as marcas dos Três Tristes Tigres?
É natural que sim, e por várias razōes. Eu era muito influenciado não só pelo som dos Tigres mas pelo pensamento artístico, de coerência sonora e não-cedência. Queria fazer um disco muito puro e verdadeiro. E depois porque o Alexandre foi co-produtor. É natural que se sinta. Também gostava muito de trip-hop. Aquela densidade toda, a construção das cançōes, o romantismo das máquinas, que é o que fundamenta aquele som cinemático de Bristol. Gostava muito de Tricky e Massive Attack, e isso povoou o disco dos Mesa.
A Tinta Invisível, que abre o disco, é logo o teste do algodão.
Sim, é imediato. É muito cinematográfica.
A Cinematic Orchestra também explorava muito essa relação entre imagem e som com instrumentos electrónicos e acústicos.
Sim, vi-os no Porto em 2001 quando vieram tocar o Man With a Movie Camera. O filme é mudo. Também gostava muito, sim. Como gostava do Goldie e de drum’n’bass.
Apesar da génese laboratorial, há um lado muito orelhudo nas cançōes. A intenção era casar o experimental e o universal?
Sim, é aquilo que conversámos. Nunca distingi entre música pop e experimental. O que mais me interessa é a pesquisa tímbrica. É por isso que gosto muito da produção pop. Até posso não achar incrível a música, mas tudo aquilo que medeia a canção, desde os sons, à produção e engenharia, é uma arte incrível. 70 anos depois, o formato canção resiste e ainda se fazem coisas interessantes. Nos Mesa, e não só, sempre houve essa ambiguidade. Tenho muitos interesses na música. É difícil catalogar o que faço e isso sempre foi um problema para as editoras e algumas rádios. Os meus projectos sempre foram difíceis de etiquetar. Tens uma canção orelhuda e a seguir ouves três minutos de non-sense.
O Mesa é bem recebido pelo público. Passa na rádio e tem boa imprensa. Vende bem e passados poucos meses justifica uma reedição. Como é que aparece a voz samplada do Scott Walker na Restless Minds?
A primeira edição na Zona Música esgota e nós fazemos um digipack com a segunda. Esse miminho é baseado no 30th Century Man do Scott Walker, que é um dos meus compositores e artistas favoritos. Na altura, samplei-o, mas tivemos que pedir autorização. Pensei que ele não fosse aceitar mas ele gostou. Recebemos uma mensagem do publishing a dizer que ele tinha curtido. Foi muito fixe para mim, gostava imenso dele.
O Rui Reininho contracena na segunda versão do Luz Vaga. Reconheces uma passagem de testemunho da pop portuense que vem, pelo menos, desde os Taxi, os GNR, o Rui Veloso e os Ban, ainda nos anos 80, e continua com o Pedro Abrunhosa e os Bandemónio, os Clã, os Ornatos Violeta e depois os Mesa? Há uma explicação social para isto?
É muito curioso perguntares isso. Não sei se nas letras existe esse cunho social do Porto. Eu não tenho esse bairrismo. Gosto imenso do Porto, é a minha cidade. Sinto as dores que o Porto sente, relativamente a questōes nacionais, que não têm a ver com Lisboa. Adoro e tenho imensos amigos em Lisboa. Vejo num músico do Porto alguém como o Rui Veloso. As letras reflectem personagens da cidade. Os GNR também têm isso com a Pronúncia do Norte e a capa do Psicopátria, que é dos melhores discos de música portuguesa, com a Ponte D. Luís. Adoro a escrita do Rui mas o que retiro não é se ele é do Porto ou de Lisboa. O que me importa é a imaginação dele, que funde muito bem com a musicalidade do Tóli e antes do Alexandre. Não me consigo sentir músico do Porto. Gosto do Porto mas podia estar noutro sítio. Não tenho essa pretensão. Sou um bocadinho como Fernando Pessoa quando dizia que “a minha pátria é a minha língua” (do Livro do Desassossego).
A segunda reedição do Mesa, com o dueto da Mónica Ferraz com o Rui Reininho, sai pela EMI. Uma editora multinacional trouxe maior pressão?
Sim, senti a pressão. Ninguém me pressionou directamente, aliás gosto imenso do David Ferreira (antigo director da EMI Portugal). Eu é que me impus essa responsabilidade porque as pessoas confiaram em nós. Não queríamos desiludir ninguém mas também não queríamos deixar de ser quem somos. Houve essa pressão mas está tudo na cabeça. Tivemos tempo para trabalhar à nossa maneira. O Paulo Junqueiro (A&R) nunca impôs nada, sempre apoiou, tal como o David. Na altura, ainda chegámos a ter um dos dez discos europeus do ano para a Billboard, ao lado de Franz Ferdinand e Kraftwerk. Acho que o Rodrigo Leão também fazia parte da lista. Tínhamos sido álbum do ano em várias publicaçōes. Globos de Ouro. Tudo isso causa expectativa. Como tínhamos um lado experimental e outro de fazer cançōes, uns puxam-te mais para um lado e outros para outro. Sentes essas forças. O Vitamina (2005) acabou por correr bastante bem. Tem cançōes de que gosto bastante como o Fado Lunar e o Vício de Ti.
É um disco mais físico que abdica de alguma pesquisa electrónica do primeiro. Dizias-me antes de começar a gravar que reflectia os muitos concertos dos Mesa.
Sim, tem a ver com isso, com a vontade de levar as cançōes para o palco. Queríamos estar mais leves. A electrónica do primeiro disco trazia algumas dificuldades de transposição, principalmente naquela altura. Vinte anos depois, temos outros meios para preparar os concertos da Casa da Música e do Lux.
As guitarras do Jorge Coelho tornam-se parte da massa sonora.
Sim, o Jorge foi fundamental, apesar de nunca ter sido membro efectivo dos Mesa. Já tinha trabalhado com ele e sempre gostei muito do som de guitarra. Acho que combinava muito bem com as teclas e a electrónica.
Em linguagem de indústria, ficou um salto por dar no efeito da Vitamina?
Ficou. Senti isso logo na altura e não sei porquê. Na altura, a Ana Rocha, que há uns anos venceu em Cannes com o Listen, abordou-nos para fazer o vídeo, com mais uma pessoa, do Vício de Ti. O vídeo esteve alojado numa página, durante vários anos, e já tinha mais de um milhão de visualizaçōes. Era muito. Para mim, sempre foi A canção do disco apesar de não ter sido escolhida para primeiro single. Acho que podia ter sido uma boa continuidade do primeiro mas concordo contigo. O álbum acabou por não ter o mesmo impacto. Talvez as pessoas esperassem um Luz Vaga 2, mas eu sempre preferi fazer o que não tinha feito.
É uma altura em que a velha indústria está a perecer e a nova ainda não nasceu. Ajuda a explicar?
Concordo, é um período complicado. Já se notava muito o efeito Napster do download ilegal. Lembro-me que quando sai o disco, o CD tinha um trace (para impedir a cópia do CD) só que fazia com que alguns leitores não conseguissem ler o CD. A indústria já estava mal e esses problemas todos não ajudaram. O David Ferreira também acaba por sair da EMI e os projectos dessa altura sofreram com as transformaçōes.
Como é que te relacionas com estas cançōes?
Voltei a ouvir os discos para preparar os concertos. Relaciono-me bem, apesar de ter as minhas preferências. Do primeiro disco, gosto de quase tudo. Quanto mais esquisitas, mais gosto (sorri). Foi feito com processos que hoje já não se usam. O sampler é tão importante para o final do Séc. XX como a guitarra ou o teclado. Molda completamente. Não há trip-hop sem o sampler. Nem haveria os dois primeiros do Mesa. Dou-me bem com o primeiro quase todo e com o segundo também. No terceiro, já me quero libertar. É mais livre na estruturação. O sampler também tinha algumas limitaçōes que hoje não tem. Queria passar para o piano e deixar a bateria nos concertos porque é mais fácil liderar um concerto naquela posição. O Para Todo o Mal pode ser o fim de um ciclo mas é o início de outro. Já há uma procura de um lado mais acústico. Se bem que isso já existia no Deixa Cair o Inverno do Vitamina. Fizemos uma versão que vai sair agora a 18 de abril. Não tinha sido single e achávamos que estava algo datado. É um tema mais português que remete para o Sérgio Godinho e o Fausto. Gosto imenso de electrónica mas ouço as cançōes d’Os Sobreviventes e do Por Este Rio Acima, e adoro aquilo. O som desses discos é incrível. Os Sobreviventes foi gravado no Chateau d'Hérouville, onde gravaram os Rolling Stones e o David Bowie. Pōes aquilo ao lado de um disco do Neil Young, e a produção é semelhante. E depois há uma estrutura gramatical obrigada pelo português. Tentei fazer essa procura de algo mais orgânico no Deixa Cair o Inverno.
Os concertos vão ser centrados nos dois primeiros álbuns?
Essencialmente sim, e também no Para Todo o Mal e no Automático, que são os discos com a Mónica. Vamos tocar o Cedo Meu Lugar, do Automático, que foi muito importante do ponto de vista radiofónico. Para teres uma ideia, foi a primeira vez que passámos na Rádio Comercial. Na altura, as promotoras levaram a canção, eles gostaram e, para teres noção da importância da Comercial nesta última década e meia, estreamos o video com eles e ao fim de pouco tempo, tinha mais de cem mil visualizaçōes. O impacto foi grande. Ainda foi genérico de telenovela. Foi um marco para os Mesa, teve mais exposição que o Luz Vaga.
Concordas que quando se pensa nos Mesa, os dois primeiros álbuns são os pulmōes?
Sim, os outros discos começaram a ser mais espaçados. Comecei a interessar-me por outras coisas. Fiz um projecto chamado Andrew Thorn, que não está no Spotify, com o Jorge Coelho, o Jorge Queijo e o Miguel Ramos. Na altura, também me meti num mestrado em Teoria da Composição na ESMAE. Queria ter ferramentas para pensar a música de outra forma. Já não pensava só nos Mesa.
Os estudos estão na base do projecto Vibra, o teu álbum neoclássico?
Sim, mas começam logo a aparecer no Pés Que Sonham Ser Cabeças, o primeiro disco com a Rita [Reis]. O Vibra, de facto, explora esse lado de pesquisa tímbrica. Gosto de cançōes mas estava farto. Em 2017, tinha participado no Festival da Canção, no ano em que Portugal ganhou bem a Eurovisão com o Salvador, e em 2018 participo na Eurovisão Júnior, que foi uma experiência muito interessante. Quis mudar a agulha e criar fora do formato canção pop.
Quem são os Mesa actuais, além de ti e da Mónica?
É o Jorge Coelho na guitarra, o Filipe Louro (Memória de Peixe) no baixo, e o Gil Costa que já tocou com os Mesa antes, com os Salto, X-Wife e White Haus.
Os Mesa regressam aos palcos a 7 de maio na Casa da Música e a 15 de maio no Lux
Ainda me lembro do que senti da primeira vez que ouvi Mesa. Soou-me a novo e fresco. Viajei no tempo. Cheers