Hugo Oliveira e André Carvalho
Em 2020, André Carvalho e Hugo Oliveira (Minus) tiraram a Jazzego da cabeça para o vinil, não apenas como reprodutores de um movimento internacional fortíssimo de quebra de barreiras no jazz mas como desejo assumido de dinamizar e transformar - derrubar preconceitos, criar elos e alargar limites.
Em quatro temporadas, editaram remisturas de Azar Azar para Miles Davis, o Azar EP do alter-ego do virtuoso Sérgio Alves, dois discos de Minus & MR Dolly, o cartão de visita Granito, e nos últimos meses o digital No More House, de Gazpa, o afrocêntrico Bourgeois de Nelembe, e o eléctrico Memória da Pedra Mãe dos Bardino, com participações de Minus & MR Dolly e Azar Azar.
Sim, o papel enquanto editora é o enaltecimento de uma comunidade centrada no Norte por afinidades geográficas. Aos quadros, juntou-se entretanto Rui Martins. Três personalidades falam pela Jazzego mas a Jazzego fala por uma urgência colectiva de liberdade e coexistência.
A Jazzego tem jazz no nome. A vossa relação com o jazz resulta da necessidade não apenas de editar mas também de transformar?
André Carvalho - A relação com o jazz surge de uma forma bastante transformativa, ao acreditarmos que o género acaba por servir de base para todo um conjunto de música que apreciamos. Em 2018 tive oportunidade de co-editar o álbum de beats do Minus & MRDolly Man With a Plan e desde então fomos mantendo uma certa relação de troca de cromos musicais, do que cada um andava a ouvir, que discos andava a comprar, etc. Fomos notando que havia em comum uma atração pela recente vaga de projetos de UK Jazz e todas as diversas variações. A editora aparece com o propósito de editar o disco do Sérgio Alves - Azar Azar - que na altura tocava com o Minus e cuja sonoridade seria enquadrável neste movimento. A coisa foi-se desenvolvendo a partir daí.
Rui Martins - Eu, que me juntei à Jazzego bem mais tarde, conheci a Jazzego precisamente pela proximidade às sonoridades do UK Jazz, que andava a ouvir muito.
AC - No entanto, se olharmos para o nosso catálogo até hoje, sinto que, apesar da ligação estar lá (especialmente no enquadramento temporal em que aparecemos), não nos vejo como uma mera replicação para o mercado português. Sinto que temos a qualidade para traçarmos o nosso caminho sem que daqui a uns tempos ainda que tenhamos que traçar este paralelismo.
Hugo Oliveira - Na minha perspectiva, aqui o jazz tem a ver com a posição mais “underground” (para nichos) do que propriamente a forma. Claro que muitos dos projectos que editamos na Jazzego de certa forma estão relacionados com o jazz, seja pelo background académico de alguns músicos, ou por este ser a base de criação para praticamente todos os projectos.
O que é o jazz para Jazzego?
AC - É díficil descrever. O nosso jazz é aquele que não agrada necessariamente aos puristas do género. Acaba por ser bastante conspurcado com as mais diversas ramificações musicais. Eu acho piada a isso, sinto que estamos numa espécie de limbo em que somos demasiado “intelectuais” para malta do mainstream (e até da cena mais indie) e demasiado mainstream para a cena do jazz. Cresci com a coleção de clássicos jazz do meu pai, mas só comecei a apreciar verdadeiramente o género através do hip hop e da música electrónica. Para mim, o jazz da Jazzego acaba por ser um reflexo disso.
Sinto que estamos numa espécie de limbo em que somos demasiado “intelectuais” para malta do mainstream (e até da cena mais indie) e demasiado mainstream para a cena do jazz (André Carvalho)
RM - Já eu fiz o percurso inverso, comecei a apreciar jazz pelos clássicos, e continuo a redescobri-los de tempos a tempos, e fui no início algo avesso a algumas fusões, sobretudo porque não ligava muito à música eletrónica. Mas o que importa realmente é que me deixei de preocupar com essa questão, que discuti várias vezes com outros músicos. No passado Outono em Jazz, durante uma conversa onde participou também o André, discutiu-se este tema e os músicos de Sun Ra Arkestra diziam algo como “Sun Ra é acima de tudo música”, e isso é o mais me importa.
AC - Esta conversa com elementos de Sun Ra e MPB4 acaba por ser um belo momento “full circle” para mim. Ao longo dos anos e de passar por vários géneros musicais, Sun Ra acaba por ser uma constante em toda a música que oiço desde que me lembro. Seja na música dos Blur (no álbum 13), dos UNKLE ou dos Spaceboys/Cool Hipnoise. Um dos discos que me fez querer começar este projeto editorial foi o Juan Pablo: The Philosopher dos Ezra Collective que termina com a Space Is The Place.
HO - Ainda de encontro com a pergunta anterior, o jazz acaba por ser o elo de ligação e de paralelismo com todos os intervenientes. A Jazzego é também hip-hop, house, dub e tantos outros géneros de expressão musical. O que considero interessante no jazz é o facto de este ser um género que recebe da melhor forma as outras expressões pela linguagem livre e de improvisação implícitas. Daí a presença da palavra no nome da jazzego.
O jazz acaba por ser o elo de ligação e de paralelismo com todos os intervenientes. A Jazzego é também hip-hop, house, dub e tantos outros géneros (Hugo Oliveira)
Observar o jazz como um acto de liberdade, e como tal, um campo de múltiplas possibilidades e diálogos, é invocar os seus princípios?
AC - O acto da criação e da edição independente em Portugal é mais que tudo um acto de rebeldia. Nesse sentido, talvez sim, estejamos a invocar os princípios do jazz.
HO - Se procurares ir à génese do jazz e do poder emocional que o género transmite, é distante, e até mesmo desonesto do que nos levou à criação da Jazzego, até porque o termo Jazz é dado por caucasianos para definir a música de intervenção negra aquando do início desta expressão musical. Os nossos princípios e preocupações são participar mesmo que no papel de espectadores da riqueza e boa música que os intervenientes com quem colaboramos têm a mostrar ao público que pode ou não estar familiarizado.
O acto da criação e da edição independente em Portugal é mais que tudo um acto de rebeldia. Nesse sentido, talvez sim, estejamos a invocar os princípios do jazz (André Carvalho)
Como definir a Jazzego? Editora? Missão?
AC - Sempre nos assumimos como uma editora. Somos uma editora independente, sem romantismos. Editamos a música que gostamos e tentamos não perder dinheiro no processo.
HO - Acho que o André de forma simples respondeu a esta questão, acrescento que acredito na forma entusiasmada com que o fazemos e que de certa forma, isso transmita algum romantismo à premissa e missão de descobrir no nosso nicho elementos que se identifiquem e partilhem da nossa visão e motivações.
O Porto/norte é o vosso epicentro?
AC - Vivemos e trabalhamos no Porto. Tenho dificuldades em falar disto sem parecer um parolo bairrista, mas acredito na criatividade como uma força diferenciadora desta cidade que manifesta em diversos tipos de linguagem. Até à data existe um foco que gostaria de manter em associar-nos a músicos que são daqui ou escolhem viver aqui.
RM - Sem dúvida que é epicentro, porque vivemos e trabalhamos todos cá, ainda que nenhum de nós seja na verdade originalmente do Porto, o que não deixa de ser curioso e de certa forma diz também sobre quem muita das vezes são os agentes ativos das cidades. É inevitável que nos dê um particular prazer editar trabalhos que de alguma forma estejam ligados à cidade, até por uma questão de proximidade às pessoas. Em todo caso, interessa-me particularmente que seja qual for a herança daquilo que fazemos, esta tenha impacto que transcenda as fronteiras geográficas. Estamos a fazer isto na segunda maior cidade do país, provavelmente a segunda cidade do país com maior público e acesso a apoios e infraestruturas que nos ajudam a fazê-lo. Isto é um grande privilégio, quanto mais te afastas dos dois grandes centros do país - Porto e Lisboa - mais difícil, ou mesmo impossível, fazer algo deste género se torna. Tento que tenhamos essa consciência durante o processo, e que de alguma forma possamos também retribuir.
O Porto tem uma história fecunda de músicos de jazz. Que diagnóstico fazem da cidade, quer em relação ao meio, quer à abertura do público para aceitar linguagens contemporâneas?
RM - Temos sentido um interesse em crescendo, que nos apraz muito claro, mas não deixa nem vai deixar de ser música para um pequeno nicho, e isso traz as suas limitações no alcance daquilo que conseguimos fazer. Sem que isto seja um diagnóstico exato, parece-me que há uma boa fatia do nosso público que está de alguma forma ligado à música profissionalmente, e basta olhar para o extensíssimo catálogo da Porta Jazz, já com mais de 100 edições, para perceber que há no Porto muita gente a ligada ao jazz. Ainda este ano, no Festival Porta Jazz, verificamos uma vez mais uma adesão muito grande do público, o que nos dá algum ânimo para aquilo que fazemos, que sendo diferenciado da Porta Jazz, partilha certamente connosco algum desse público.
AC - Sinto que existe essa abertura. Basta ver os line-ups dos grandes eventos e festivais e percebe-se que muitos slots vão sendo ocupados por artistas que se encaixam dentro desta sonoridade na cena internacional - Domi & JD Beck, Ezra Collective, Kamaal Williams, etc. Sinto no entanto que ainda estamos a tentar conquistar o nosso espaço em termos de público e de oportunidades para nos darmos a mostrar.
Além da edição, operam em campos como a gestão de carreira e agenciamento? Está nos vossos planos?
RM - Relativamente à gestão de carreira não é algo que façamos nem imaginamos poder fazer num curto/médio prazo, não só pela falta de recursos mas também porque o trabalho que fazemos enquanto editora independente não pretende interferir dessa forma tão direta naquilo que é o percurso dos artistas. Por outro lado, começámos este ano a trabalhar agenciamento para alguns dos artistas do nosso roster, através da colaboração com a Susana Brandão. Temos consciência que é, naturalmente, um dos vértices menos desenvolvidos da editora, mas é algo onde pretendemos investir alguma energia para que consigamos ajudar mais os músicos que colaboram connosco, porque é também um dos pontos de maior dificuldade para eles.
AC - Algo que temos vindo a sentir, é que não basta meter a música cá fora. Temos que também trabalhar em formas de a apresentar ao vivo de forma a cativar mais público. Seja através de concertos das bandas que editamos, ou da promoção de eventos (como DJ sets) da música que gostamos.
Acabam de editar o álbum dos Bardino, que tanto tem os pés no jazz, como estica os braços até ao rock. O disco de Gazpa, por exemplo, está muito mais próximo da música electrónica de dança, enquanto o de Nelembe se liga ao afro beat. Quais são os limites da vossa curadoria?
AC - Correndo o risco de me repetir, sinto que o grande limite é gostarmos do que editamos. As decisões do que é editado ou não são definidas entre os três, sendo que eu pessoalmente, penso cada edição de uma forma muito simples: se eu visse este disco numa loja, comprava?
As decisões do que é editado ou não são definidas entre os três, sendo que eu pessoalmente, penso cada edição de uma forma muito simples: se eu visse este disco numa loja, comprava? (André Carvalho)
RM - É de facto muito amplo, os limites por vezes são até baseados nos recursos e calendário e não tanto por encaixe editorial.
HO - Acredito que a existência de um limite não será imposto por nós. Como o André diz, se algum de nós não se identificar com alguma proposta esse será o motivo para não editar. Dessa forma, o limite está na confiança que temos nos gostos individuais de cada um de nós os três. Sinto também que há uma grande vontade dos músicos em participar e contribuir desta nossa aventura editorial, e na verdade é das coisas que mais me fascinam.
Qual é a agenda editorial mais próxima?
AC - Temos algumas edições digitais que estão a ser trabalhadas e três discos pensados, sendo que para além da Granito II, um deles é a reedição do álbum Raku do baterista Hugo Danin.
Nota-se que há um círculo de pessoas à vossa volta. Faz sentido falar-se numa comunidade?
RM - Este é talvez o fator que mais nos motiva, o trabalho de impacto comunitário e de longo prazo. Importa-nos não só potenciar novas criações e ajudar na sua divulgação mas também interferir naquilo que é o ecossistema cultural que nos rodeia, através de criação de novas pontes entre músicos e outros agentes culturais.
Este é talvez o fator que mais nos motiva, o trabalho de impacto comunitário e de longo prazo. Importa-nos não só potenciar novas criações e ajudar na sua divulgação mas também interferir naquilo que é o ecossistema cultural que nos rodeia (Rui Martins)
AC - Acho que não foi algo intencional mas que foi surgindo de uma forma muito orgânica. É no entanto algo que me dá especial prazer. Não sendo eu músico, fico extremamente feliz quando vejo colaborações a surgirem de uma forma natural e “de repente” temos um álbum como o de Bardino a ter como convidados três músicos que também já editaram na Jazzego. Também temos feito um trabalho nesse sentido com as remisturas e tenho vindo a sentir que mesmo da parte do público já existe um núcleo duro de pessoal que nos acompanha e está interessado.
Sentem uma abertura, quer no meio do jazz, quer noutros círculos às formas inclusivas de jazz? Novos públicos? O que falta para chegar a mais pessoas?
RM - Pergunta difícil. Algo que sentimos que não fazíamos tão bem e que temos trabalhado ativamente é a comunicação, seja por um contacto mais próximo com os diversos meios de comunicação que nos apoiam, uma maior aposta no digital mas também uma abordagem mais estruturada ao trabalho de imprensa com os novos lançamentos.
AC - Falta o que falta em toda a cultura em Portugal. Dinheiro e apoio institucional. Não querendo entrar no discurso gasto do subsídio-dependência, basta observar as contra-capas de muitas editoras e artistas que admiramos (no Reino Unido, França, Austrália, etc.) existe um enorme apoio que aqui não existe. Saliento também o facto gritante de que em Portugal os discos não são considerados cultura, estando sujeitos a uma das maiores taxas de IVA dentro da União Europeia. O que tem o seu quê de irónico se pensarmos que, por exemplo, os festivais têm acesso à taxa reduzida.
O vosso conterrâneo Rui Correia confessava que a Biruta é um “acto de amor” e se não se tivesse um trabalho a tempo inteiro, a editora não seria viável. Pelo menos, não em dedicação permanente. É o caso da Jazzego também?
RM - Certamente, e é uma belíssima frase do Rui Correia, que descreve bem o que se passa com a Jazzego. Como já mencionado anteriormente, aquilo que fazemos é de interesse para um pequeno nicho, e um pequeno nicho em Portugal é algo mesmo pequeno. Como é sabido, o mercado em Portugal é muito curto, trabalhar uma pequena fração deste público dificulta em muito a viabilidade financeira de projetos como o nosso. Por esta razão estamos a começar a trabalhar mais outros mercados, em especial o de Inglaterra, que é um dos países onde o género de música que mais editamos tem mais expressão, mas esta é também uma tarefa muito difícil.
AC - Sinto que toda a cultura independente criada neste país é um acto de amor. Talvez por isso acredite tanto na qualidade da mesma.
HO - Concordo e identifico a Jazzego com o mesmo ato de amor.