Gonçalo F. Cardoso (Discrepant): "A principal regra é nunca editar um disco que eu próprio não comprasse"
A intenção da entrevista a Gonçalo F. Cardoso, timoneiro silencioso da Discrepant, partiu da catadupa de discos soberbos editados com uma regularidade impressionante para um selo tão livre de convençōes formais e despido de amarras. Por exemplo, as geográficas.
As antenas do editor são intercontinentais e não se detêm nos limites terrestres. “Música alienígena”, é uma descrição própria bem escolhida para classificar um património discográfico riquíssimo na desconstrução dos trilhos da música dita popular - e, ainda assim, capaz de interagir com a universalidade e daí esmiuçar alicerces subterrâneos, particularidades invisíveis e infinitos sem resposta.
Além de investigador do ínfimo, Gonçalo F. Cardoso é também coleccionador de sons. “Andar por aí a gravar tudo o que me desperta curiosidade e, eventualmente, reorganizar os resultados em fragmentos de memória” é um dos seus prazeres vitais.
Em junho, já tinha florescido o portentoso Island Slang, assinado como Lagoss (Gonçalo F. Cardoso, Daniel García e Mladen Kurajica) e Abagwagwa (Nihiloxica). A chegada de Impressões de Várias Ilhas (Macaronésia), álbum de recolhas nos Açores, Cabo Verde e Canárias, onde reside, precipitou uma segunda manga de perguntas, em que pensamento e prática resumem uma só intenção de localizar, desvendar e examinar. O eterno reencontro com a memória é o solo fértil da proposição de novos mundos.
Retirei esta declaração de intençōes da antologia Música Impopular Portuguesa. "O nosso objetivo é desconstruir, distorcer e reformular a tradição da música (im)popular". É uma afirmação política?
Não diria que é política, propriamente dita. De certa forma, é um lema que traduz a minha abordagem à música e aos géneros num sentido mais lato. Desconstruir géneros/estilos para criar algo que não seja tangível ou classificável – música alienígena!
É justo dizer-se que mais do que contestar este mundo, procuras inventar outros ou, pelo menos, escavar o que não está à superfície?
De certa forma, sim, dentro do conceito de world building (criação de mundos), tanto na música como na literatura e no cinema, sempre foi um conceito que me atraiu pessoalmente.
De onde surgiu o entusiasmo por música fora das correntes habituais, incluindo as alternativas habituais?
Sou um ouvinte obsessivo e também um arquivista autodidata - de certa forma vejo a editora como um trabalho de arquivo. Mas estou sempre à procura de novas descobertas sonoras. Paradoxalmente, muitas das maiores surpresas chegam através da escuta de gravações antigas ou esquecidas, mais do que pela produção contemporânea. Dedico grande parte do meu tempo a ouvir música velha e recente — numa tentativa de resgatar narrativas sonoras marginais ou invisíveis. Interessa-me não só o som em si, mas o seu contexto, a história que carrega, e como pode ser reativado ou ressignificado hoje.
Há uma sátira da realidade transversal a grande parte dos discos, se não a todos?
É algo que me interessa muito — um comentário ao nosso mundo atual, distópico, à loucura que nos rodeia, ao dilúvio de (des)informação. Sou obcecado com significados escondidos e sociedades ocultas de poder, mesmo que muitas delas sejam fruto da nossa vasta imaginação. Gosto de abordar estes temas com sátira ou com um toque de bom humor, sem pretensiosismos.
Quais são os critérios para a Discrepant editar um disco?
Não há regras fixas. Acho que depende do efeito que a música tem em mim. Normalmente, estou desligado do sucesso ou fracasso comercial que um álbum possa ter (mesmo que por vezes prejudique financeiramente a editora). Suponho que a principal regra é nunca editar um disco que eu próprio não comprasse. Isso reflete-se também no preço — odeio ver os meus discos vendidos a preços elevados, a tornarem-se itens de luxo ou exclusivos e tento praticar preços o mais baixos possíveis.
Tens limites para o exotismo?
Sim e não. Para mim, é uma questão de gosto e de respeito pelo material ou região que estás a explorar. Certamente já compus trabalhos que hoje não faria, talvez por achá-las fora de contexto, mas tudo faz parte da curva de aprendizagem e de estar aberto a conceitos que me atraem, como o exotismo ou o "alien", o "outro" — conceitos muito presentes no meu trabalho e no da editora. Para mim são celebrativos e positivos, nunca exploratórios. Tudo está em jogo, é a história do mundo e da humanidade — uma amálgama interminável de ideias e criações. Só temos de estar conscientes do que estamos a fazer, com quem e porquê. Fora isso, para mim, está tudo bem — não fico facilmente ofendido.
Tudo está em jogo, é a história do mundo e da humanidade — uma amálgama interminável de ideias e criações. Só temos de estar conscientes do que estamos a fazer, com quem e porquê. Fora isso, para mim, está tudo bem — não fico facilmente ofendido.
Fisicamente, onde estás nesta altura e de que maneira te relacionas com a questão territorial? Enviam-te material de todo os lados? Visitas laboratórios sonoros?
Atualmente estou nas Ilhas Canárias, onde tenho vivido na maior parte dos últimos sete anos. A geografia e o meu ambiente imediato são muito importantes para mim — inspiram-me e influenciam-me de várias formas, umas mais visíveis do que outras. Recebo muitas demos e propostas de artistas de todo o mundo. Continuo a tentar viajar o mais possível todos os anos — enquanto o puder fazer, é isso que farei para me ligar, conhecer e ter experiências significativas que me ajudem a definir enquanto pessoa e desenvolver o meu trabalho.
Editaste Tiago Sousa, Jibóia e três volumes de Música Atípica Portuguesa. Há os Garoa formados por dois músicos brasileiros a viver em Lisboa. Que peso tem Portugal para a Discrepant?
Também Ondness/Serpente, Niagara, Filipe Felizardo, Alförjs, Diana Combo, Calhau, O Morto, Banha da Cobra, Alexandre Centeio, Shela, Luar Domatrix. Ou seja, como português a viver no estrangeiro, não sou indiferente ao que se passa em Portugal e tento apoiar o máximo possível a grande música e talento que aí se faz. Acredito que Portugal tem uma das melhores cenas experimentais e alternativas da Europa, especialmente se tivermos em conta a nossa dimensão populacional. Desde muito cedo — mesmo estando a viver em Londres — procurei criar ligações com a cena de Lisboa, do Porto e de outras partes do país.
Como português a viver no estrangeiro, não sou indiferente ao que se passa em Portugal e tento apoiar o máximo possível a grande música e talento que aí se faz. Acredito que Portugal tem uma das melhores cenas experimentais e alternativas da Europa, especialmente se tivermos em conta a nossa dimensão populacional.
Dizias em entrevista ao Bandcamp que, quando começaste em 2011, estavas muito interessado nas field recordings do King Gong no Sudeste Asiático. E agora o que te entusiama?
Continuo muito interessado no trabalho dele. Na verdade, sempre me atraiu mais a desconstrução que o Laurent faz das suas próprias gravações étnicas do que as gravações de campo em bruto. O seu trabalho e abordagem tiveram uma grande influência na Discrepant nos primeiros tempos e continuam a tê-la, embora talvez de forma menos dominante, à medida que o catálogo se expandiu em várias direcções. Continuo a editar o trabalho do Laurent — o último volume com manipulações de gravações de campo da Tanzânia saiu há alguns anos (Tanzânia 2) e temos um novo disco, de regresso ao Sudeste Asiático, dedicado aos Lisu, previsto para o final deste ano.
Os meus interesses são amplos e, tal como os meus gostos, têm algo de esquizofrénico — poderia atribuir diferentes “períodos” à editora, em que me foquei numa determinada cena musical, género, estilo ou região, até me deixar atrair por outra que despertasse os meus ouvidos. Houve o período das field recordings/electroacústica/ambient/drone (Kink Gong e afins), que marcou o início da editora, seguido muito rapidamente pelo que chamo de período libanês, com álbuns da cena experimental de Beirut, como Malayeen, Charbel Haber, Praed, Mazen Kerbaj, etc.
Depois concentrei-me mais na cena portuguesa, com o lançamento do primeiro volume das Antologias Atípicas e outros discos associados — mais ou menos ao mesmo tempo em que comecei a ligar-me à cena sul-americana, com bandas como Meridian Brothers, Romperayo e Chúpame El Dedo, entre outros, como a compilação La Danza del Agua, Los Siquicos Litoraleños e Bardo Todol, da Argentina.
Atualmente, estou a sair de uma fase mais ligada ao new age / orgânico / exotica ambient, com os lançamentos da série Aquapelagos. Em simultâneo, tenho-me envolvido bastante com o que se poderia chamar de música tropical — não só com a minha banda LAGOSS, mas também com artistas de fusão fourth world, como Babau, memotone ou brasileiros como Guilherme Granado, Garoa, entre outros.
Claro que todos os “períodos” anteriores da editora não desaparecem — estão em constante mutação e fusão com as influências do passado, presente e futuro.
O volume de edições é bastante elevado para uma independente a operar num nicho tão específico. Consegues dedicar-te só a esta actividade?
É uma espada de dois gumes. Por um lado, muitos lançamentos mal atingem o ponto de equilíbrio (ou demoram anos a recuperar o investimento), por outro, se parar de lançar coisas, as pessoas perdem o interesse ou a editora entra em dormência — e eu aborreço-me. A ideia para o futuro é lançar menos, o que significa ter de dizer mais vezes “não”, mas é a única forma de sobreviver (e planeio fazer isto até morrer ou até que alguém me pare ou o dinheiro acabe). Não é tão difícil manter a editora activa — o problema é que as pessoas desvalorizam cada vez mais a música gravada, preferindo serviços como Spotify ou YouTube. Manter tudo nicho visa um público mais colecionador, alguém que ouve música num contexto único e quer a experiência completa — e não apenas música de fundo para responder a e-mails.
Para se ter uma ideia, qual é a média de tiragem de uma edição em vinil? E em cassete?
Antes fazia 500–1000 vinis e 200 cassetes. Mas os preços subiram e as pessoas compram menos, por isso raramente faço mais de 300 vinis e mantenho as cassetes entre 70 e 100. Claro que há também o digital que “apoia” os lançamentos de uma forma ou de outra — mesmo que o retorno seja ridículo, pelo menos chega a sítios onde as pessoas não têm o luxo de comprar um vinil a 25 euros.
Que circuito é este? Quem são as pessoas que se interessam por esta música? Há um padrão?
Boa pergunta. Está espalhado pelo mundo inteiro, sem restrições geográficas nem estilos definidos. Do improviso metal na Indonésia à salsa psicadélica na Colômbia, interpretações tradicionais japonesas ou mutações de chaabi egípcio em modo transe, até jams de hip hop na Palestina — o mundo é um lugar culturalmente rico que transcende fronteiras. Músicos e ouvintes curiosos conectam-se. O segredo é manter-se afastado dos haters (sorri).
O streaming paga contas?
Um lançamento não chega ao ponto de equilíbrio com streaming. Talvez 500 lançamentos em streaming ajudem a cobrir algumas despesas da editora — envios, armazenamento, administração, etc. Por outras palavras, não. Nem remotamente.
A aura misteriosa é parte da identidade editorial? Uma forma de realçar o objecto artístico em vez de afirmar a personalidade? Uma maneira de comunicar?
Não estou consciente de haver uma aura misteriosa enquanto identidade. Gosto de colocar o lançamento em primeiro lugar e não me sinto confortável quando há uma personalidade à frente da editora — para mim, é quase constrangedor fazer autopromoção, mas entendo que é necessária na maioria dos casos. Simplesmente não é o meu estilo.
Qual é a marca de água de cada uma das editoras-satélite Souk, Sucata, Pacific City, Keroxen e Farsa?
A Souk é uma editora-irmã mais virada para os ritmos, com lançamentos mais ligados ao universo “global beats”. A Sucata Tapes é uma editora só de cassetes para tiragens pequenas e com um foco em discos mais distópicos e estranhos, ancient sci-fi on tape. A Pacific City Discs é uma das mais recentes, focada no trabalho do artista norte-americano Spencer Clark aka Monopoly Child Star Searchers. A Keroxen Records é o braço editorial do festival com o mesmo nome, aqui em Tenerife — um grupo de bons amigos que decidi apoiar em termos de distribuição e atividades gerais da editora. A Farsa Discos é uma editora semi-dormente dedicada a projetos conceptuais falsos criados por amigos da editora.
Também tens actividade como "investigador sonoro". Que pesquisa é essa?
Dizendo de forma simples, são apenas palavras mais elaboradas para uma das minhas atividades principais: andar por aí a gravar tudo o que me desperta curiosidade e, eventualmente, reorganizar os resultados em fragmentos de memória. Sou obcecado com a ideia de memória e experiência — a ideia de que sempre lembramos as coisas de forma diferente ou só percebemos o quão especial foi um momento quando já passou. Toca na nostalgia e numa espécie de reconstrução retroativa com muita subjetividade e experiência em primeira pessoa.
A premissa das viagens aos Açores, a Cabo Verde e o regresso às Canárias foi a recolha deste sons?
Já tinha ido aos Açores (São Miguel) algumas vezes e vivo nas Canárias. Acho que nessa altura já tinha montes de gravações dos dois sítios. A ideia de fazer um álbum sobre a Macaronésia só começou mesmo a ganhar forma quando surgiu uma possível viagem a Cabo Verde. Nenhum dos outros arquipélagos foi planeado — mas Cabo Verde era a peça que faltava para tudo começar a encaixar. Por isso, sim, Cabo Verde foi o único sítio que visitei já com a ideia do álbum na cabeça.
Levaste coordenadas definidas? Dá ideia que há um roteiro pensado mas depois te deixas guiar pela descoberta de forma muito intuitiva.
Nada muito planeado, para ser sincero. Tenho uma ideia meio vaga de sítios onde gostava de ir, mas nem sempre isso tem a ver com o que estou a gravar. Quando lá estou, tento absorver o máximo que consigo no tempo que tenho — e é isso que acaba por guiar o que capto. No fundo, estes álbuns são mais memórias minhas destes lugares do que qualquer coisa documental ou “científica”. É tudo bastante pessoal e instintivo.
Fico com a impressão que evitaste os destinos mais óbvios e procuraste locais "fora do mapa". A pesquisa geográfica definiu a investigação sonora?
Não. Todos os álbuns foram gravados em destinos turísticos — alguns mais ligados à natureza (como Bornéu), outros mais virados para o paraíso de postal (como Zanzibar). Não procuro fugir aos lugares óbvios. Gravo muito, mas às vezes deixo o material em pausa durante anos. Só quando começo a esquecer o que vivi é que consigo voltar a ouvir com distância, e aí nasce o disco. Gravo de tudo: pessoas, mercados, rádios, templos, cafés, restaurantes, centros comerciais. Por vezes, os sítios mais banais são os que dão as gravações mais interessantes.
Só quando começo a esquecer o que vivi é que consigo voltar a ouvir com distância, e aí nasce o disco. Gravo de tudo: pessoas, mercados, rádios, templos, cafés, restaurantes, centros comerciais. Por vezes, os sítios mais banais são os que dão as gravações mais interessantes.
No texto de apresentação do disco, defende-se a transposição da tua subjectividade para uma consciência colectiva. Colocaste-te no papel de observador mais do que de guia? Como explicas esse processo?
É ambíguo, porque enquanto estou a editar o álbum, de certa forma guio o ouvinte. Apesar de ser um observador, a gravar e a documentar o meu ambiente de forma subjetiva, acabo por me colocar no papel de guia (mesmo que não queira) ao selecionar, editar e apresentar o álbum de uma certa maneira. Espero, acima de tudo, que o resultado seja pessoal.
Não querendo recarregar sobre a questão política, evitar os locais com maiores pontuaçōes numa época de massificação de turística não é em si um acto político que define a identidade da Discrepant?
A editora, de certa forma, define-se por explorar e celebrar as margens — o que é desconhecido, pouco comercial, ou fora do radar. Por isso, sim, há uma tendência natural para evitar lugares demasiado saturados de gente. Mas, ao mesmo tempo, nada me impede de fazer, por exemplo, um álbum inteiro sobre estar numa piscina de hotel durante uma semana a fazer rigorosamente nada. Se calhar seria um disco mais crítico, ou com um tom mais sarcástico — mas acho que isso mostra como a inspiração pode surgir de qualquer lado. Não importa tanto se o sítio é “bom” ou “mau”, interessa-me mais o que fazemos com essa experiência, essa memória.
As vozes são pontuais . Priorizaste o sensorialismo de ambientes, texturas e cheiros?
Tudo se resume à forma como construo o alinhamento das faixas — e à maneira como as minhas memórias se organizam, quase sempre de forma não linear. São, na maioria, pequenos instantâneos. Às vezes tenho gravações muito especiais, mas que simplesmente não encaixam no álbum como um todo. Curiosamente, este último trabalho é aquele onde incluí mais vozes (incluindo a minha). Durante muito tempo, gravei apenas ambientes naturais ou sons do espaço envolvente — e procurava gravações onde eu próprio não aparecesse, como se estivesse sempre na terceira pessoa. Mas, com o tempo, comecei a valorizar os momentos em que há interações — pessoas curiosas que se aproximam, conversas espontâneas…O Luc Ferrari foi e continua a ser a grande influência. Muitas das suas composições incluem conversas do dia a dia, com a mulher, com a família, com desconhecidos — e isso dá-lhes um carácter pessoal e estranho ao mesmo tempo, como se fossem diários (extra) sonoros.