Glockenwise: "A margem acompanhou-nos sempre, por rejeição e agora por apreciação"
À margem, de certa e toda a maneira. Gótico Português, o segundo disco do resto da vida dos Glockenwise, chega ao ano de vida amadurecido em barricas de carvalho. O lugar de despertença ocupado pelos barcelenses é assumidamente ambíguo e um meio-caminho entre a rejeição natural de quem se sente à margem e o reconhecimento da marginalidade enquanto campo de desafiante incerteza. Por isso, possibilidade.
Na arte eléctrica dos Glockenwise, o rock é um campo grande de liberdade e um laboratório de experiências. Que tem em Barcelos capital geográfica de um não-lugar estético. Porque até na dita “portugalidade” se sentem à margem e confortáveis.
Esta sexta-feira 1 de março, há concerto de celebração no Musicbox. No final do mês, a Besta viaja até aos Açores para matar o Tremor.
Há um ciclo novo no Plástico e no Gótico Português?
Nuno Rodrigues - É inevitável reconhecer que sim. Havendo três discos em inglês e o quarto e o quinto em português, dá a sensação de uma outra trilogia. Esperemos que não fique por aí. Mas sim, há a ideia de uma outra metade que se iniciou. E depois porque coincide com a nossa temporalidade humana. Há três pessoas que são radicalmente diferentes num momento e no outro. Essas ideias, umas mais físicas e outras metafísicas, conjugadas dão a sensação de um renascer, uma nova fase.
Mudar para o português foi uma mudança estética ou acompanhou uma transformação nas vossas vidas?
NR - Há vários motivos. Em parte, tem a ver com um maior conforto com a língua portuguesa. Começámos a apreciar com outro interesse música feita em português. Na nossa adolescência, nos anos formativos, não aconteceu. Fomos muitos influenciados por um tipo específico de garage rock ou punk que mesmo entre os artistas de quem gostávamos de cá - e, no nosso caso, éramos fanáticos pelos Green Machine, que ainda por cima eram da nossa terra -, o inglês era predominante e preponderante para fazermos aquilo. Queríamos soar aquilo. Com a idade, começámos a gostar de artistas que escrevem muito bem em português e, nesse caso, assumo mais eu a responsabilidade porque as letras são minhas. É curioso porque o Plástico não ia ser em português, aliás, a determinada altura houve uma ideia amalucada de fazer um disco bilingue, gravá-lo duas vezes com arranjos diferentes para português e inglês. Essa ideia megalómana ficou pelo caminho quando começámos a perceber que não tínhamos interesse nenhum em fazer aquelas músicas em inglês. Aquilo estava vocacionado para ser em português. Não havia maneira nenhuma ou vontade de traduzir para inglês porque aquelas ideias se começaram a aportuguesar.
O que tinham para dizer ficou mais nítido para quem vos ouve?
NR - Não tenho dúvidas nenhumas. A partir do momento em que surgem as músicas do Plástico há uma mudança enorme na maneira como o pouco público que tínhamos e continuamos a ter recebia a obra. O interesse já não era estético-musical mas narrativo-discursivo. Passou a haver uma identificação que não sentia antes do ponto de vista da identidade. Há dias cruzei-me com a possibilidade de uma pessoa estar a pensar tatuar uma letra nossa. Para mim, é tão absurda essa ideia de podermos ter escrito algo com uma identificação tão pessoal que é uma realidade muito nova para nós. E muito mais recompensadora do que qualquer experiência que possamos ter tido antes.
Para poderem apreciar bons vinhos, tiveram que beber muita cerveja?
NR - (ri-se) Essa analogia é boa. Não tenho dúvidas. Há uma coisa engraçada nos Glockenwise. Nós somos um caso muito raro em que é possível acompanhar todo o fio condutor desde uma adolescência em que começámos a tocar e gravar com 16/17 anos até agora. É tudo uma continuidade. Não há muitos projectos com esta longevidade. Independentemente do valor artístico, é possível traçar este contínuo porque a nossa vontade de pôr as coisas cá fora, e de não as fazer desaparecer, foi permanente. O nosso habitat natural foi sempre esse: querer tocar, querer sair, querer sair dali, sobretudo. É natural que se consiga percepcionar esse amadurecimento. Tenho 33 anos e isto é a coisa mais antiga que tenho na vida. Comecei a tocar com o Rafa (guitarrista), o Cris (ex-baterista) e o Fiuza (baixista) quando tinha 15 anos. Metade da minha vida foi passada nisto, e consigo documentá-la através da música.
A vossa relação também foi mudando?
NR - Sim, mas acho que há pilares imutáveis. Um dos motivos que nos faz estar juntos é porque somos mesmo amigos. Que é outra qualidade em falta na maior parte dos projectos musicais com que nos vamos cruzando. Percebemo-lo através das inquietaçōes mercenárias de muitas bandas. No nosso caso, há este fenómeno estranhíssimo de gostarmos mesmo uns dos outros. Já não somos como em adolescentes quando passávamos a vida em casa uns dos outros. O que nos une sempre é a regularidade dos nossos ensaios. Encontramo-nos todas ou quase todas as semanas, e é aí que estamos juntos, excepto uma almoçarada ou outra. É um ritual. Há um lugar de amizade balizado pela banda e por querer tocar.
Além da amizade em torno da banda, parecem ser um grupo de melómanos.
NR - Sim, isso relaciona-se com a resposta anterior, com o passar do tempo nos termos tornado pessoas diferentes e isto ser o que nos liga. Ou seja, o que nos liga é o tocar juntos mas não a música enquanto conceito. Alguns de nós não estão assim tão preocupados com a descoberta de música nova, enquanto outros, e eu sinto-me incluído nisso, assim como o Rafa (Rafael Ferreira, guitarrista), somos mais melómanos. Gosto muito da vanguarda, sou neófilo, enquanto o Rafa é mais arquivista e gosta de traçar um historial. Temos abordagens muito diferentes, completas e abrangentes, sobretudo sobre o que é música boa e má. A rede é muito vasta.
A ideia do Gótico Português nasce por se sentirem marginalizados?
NR - A ideia de margem é fundamental para nós, desde o início, porque nós eramos da margem, de uma pequena localidade do norte do país, e queríamos sair daqui, de tocar e ir conhecer. Queríamos viver aventuras como numa banda desenhada. Essa ideia de margem acompanhou-nos sempre, por rejeição e agora por apreciação. Se nos sentimos marginalizados? Acho que nos vamos sentindo marginalizados com o passar do tempo por motivos um pouco diferentes. Éramos miúdos e estávamos num meio de stoner rock e rock psicadélico. A distância dos centro industrio-musicais e até mesmo a nossa distância de aproximação a determinados circuitos musicais pode parecer que somos marginalizados mas diria que é uma marginalidade auto-imposta.
Neste caso, a marginalidade tem um princípio geográfico mas não se esgota em Barcelos. Uma banda rock em 2024 tem um circuito mais pequeno?
NR - Sim, há muito que se fala da morte do rock. Há elementos reais. Objectivamente, há bastante tempo que não há uma banda rock numa Queima de Fitas mas nós também não somos convidados para ir a Paredes de Coura desde 2013. Não diria que essa mudança se nota apenas nos espaços onde o rock deixou de existir (sorri). Nós o que somos é da despertença, e essa despertença também é de género. Não somos uma banda rock como os Cobrafuma ou os Hetta, de um nicho musical sólido, como o hardcore ou o metal. Estamos num sítio híbrido, estranho, melancólico-romântico-urbano-depressivo que não cola com género nenhum. Nem estamos interessados em vestir-nos de determinada forma, nem pertencer a uma tribo. Isso deixa-nos um pouco orfãos dessas geograficas musicais. Dá-nos muita liberdade, por um lado, mas tira-nos essa sensação de “cena”, ainda que em Portugal seja muito difícil criar “cenas” devido à dimensão do país. Se o rock está a desaparecer dos consumos massificados? Se calhar sim. Hoje é mais palpável e há qualquer coisa que me agrada nisso. Sempre senti que apanhámos o fim da grande onda rock, e há qualquer coisa de o rock passar a ser contra-cultura, como as suas origens, que me agrada.
Se o rock está a desaparecer dos consumos massificados? Se calhar sim. Hoje é mais palpável e há qualquer coisa que me agrada nisso. Sempre senti que apanhámos o fim da grande onda rock, e há qualquer coisa de o rock passar a ser contra-cultura, como as suas origens, que me agrada.
É uma perspectiva diferente do passado.
NR - Sim, isso faz dialogar muito mais com outros discursos de arte contemporânea, pensamento e crítica cultural. Expōe muito mais do que miúdos giros com uma guitarra que são imediatamente mandados para a capa do NME. Obriga a reflexōes interessantes.
A Rosa Ramalho, que foi uma conhecida ceramista de Barcelos, está presente no Gótico Português. Quiseram realçar a ideia de que há cultura para além do Galo de Barcelos?
NR - A ideia do disco surge num sítio que não é Barcelos, é o Museu de Santa Maria de Lamas que é também um local marginal e um espaço bizarro. Aquela bizarria era familiar e pôs-nos a pensar porquê. Começámos a identificar uma série de padrōes que tanto podiam ser em Barcelos como ali, ou noutro sítio qualquer em Portugal. Havia ali uma energia oculta. Fomos à procura das nossas raízes e ao pesquisar em arquivos se haveria depoimentos da Rosa Ramalho, encontrei aquela entrevista e ela traduz perfeitamente aquilo que estávamos sentir, quando ela diz que o Galo de Barcelos é feio e prefere o do Picasso (sorri). Achei essa passagem maravilhosa porque é uma figura de proa de uma portugalidade cristalizada a descontruí-la, a mostrar-se muito mais complexa e muito menos fetichizada do que aquilo que nos querem fazer crer que é. Esta cultura da margem, inventiva e bizarra, era exactamente o que nós sentíamos. Ela nunca disse que não gostava de Lisboa, tal como nós adoramos Lisboa, mas não queria deixar de fazer barro. Nas raízes, encontramos o húmus da nossas identidade. Estas contrariedades têm tudo a ver connosco.
Dizias em entrevista à TimeOut que o Portugal da província “tem massa crítica, pensamento, soluçōes e criatividade”. E é possível sê-lo em Barcelos?
NR - É possível. Consigo dar-te provar por pessoas que ainda estão Barcelos a fazer coisas talvez mais interessantes do que muitos projectos dos centros urbanos. E isto não é só em Barcelos. Acho que sim, falta muita coisa, mas falta também ao resto do país central perceber as oportunidades que existem nestes sítios. Ou as oportunidades criadas pela falta de oportunidades, através da invenção de meios. Não estaria a dar esta entrevista se não tivesse passado por esse processo. Muito do que me levou a pegar numa guitarra pela primeira vez não foi só por ser um misfit, também foi por estar aborrecido e não ter nada para fazer. Era muito mais fixe ter uma banda de rock e andar de carrinha para ir a qualquer lado do que ficar em casa a papar moscas. Encontram-se muitos exemplos disso. A circulação dos artistas em Portugal deve-se a pessoas que têm este sentido de urgência. Estou a lembrar-me do Nuno Biónico em Bragança, que marca concertos a todos os artistas. Ou na SHE (Sociedade Harmonia Eborense) em Évora. A malta de Fafe no Café Avenida. Há uma enormidade de pessoas que não quer estar sujeita aos ditâmes da centralização.
Mas é possível fazer-se disso vida?
NR - Não é por acaso que vivo no Porto. Estou aqui porque foi aqui que encontrei uma oportunidade na minha área profissional, que é a arte contemporânea. Pelo menos agora, é aqui que tenho que estar mas o que é curioso é que vou tendo muitos amigos que estavam no Porto e estão a regressar a Barcelos ou Braga, onde estão a aparecer oportunidades. E muitos que aqui vêm e não encontram nada. Aqui há mais oportunidades, claro, e em Lisboa há muito mais do que em qualquer outro lado no país, mas também há mais riscos e incertezas. Falta dar mais meios a estas vontades para se poderem tornar auto-suficientes mas sinto que as coisas estão encaminhadas para uma diversidade maior do que há vinte anos.
Existe um “som de Barcelos”?
NR - Muito já foi dito sobre a “cena de Barcelos”. Os principais negacionistas são os próprios músicos de Barcelos. Há uns tempos, o Tojo dos Black Bombaim descreveu exemplarmente a cena de Barcelos. Ele dizia que a cena de Barcelos era sentar na mesa do café com um camarada que podia emprestar uma guitarra para o concerto da semana seguinte, porque a minha se partiu. Ou podia dar-me boleia de carrinha para um concerto em Leiria porque ninguém tinha carta. Isso era a cena de Barcelos. De certa maneira, um grupo de malucos que herdou estas atitudes de um grupo de malucos anterior a nós e que as passou a um grupo de malucos e malucos que veio depois. Não sei bem onde é que eles estão mas de certeza que há miúdos a fazer barulho em Barcelos. Há várias razōes para ter saído música e artistas de Barcelos. Acho que a grande diversidade estética se deve ao facto de o que nos unia não era uma coisa estética mas antes uma atitude DIY e uma partilha grande.
A reconstrução da memória da música popular portuguesa, a que se tem dado o nome de “nova portugalidade”, tem vindo sobretudo de renovadores da tradição que trabalham com electrónica. Davas o exemplo, em Espanha, da Rosalia. O vosso caso é muito particular porque o fazem a partir da música elétrica.
NR - Quando começámos a escrever o disco, as temáticas ficaram definidas muito cedo. Foram surgindo nas nossas vestes habituais apesar de querermos imprimir um determinado ambiente que tinha a ver com o gótico. Apesar de não ser o gótico a que estamos habituados, nunca pensámos em fazê-lo como resposta. Foi uma mera coincidência, até porque demorámos quatro anos e se meteu a pandemia. Nunca foi uma reacção a este movimento que é bastante palpável na música portuguesa. Por uma feliz coincidência, o disco saiu precisamente nesta altura em que há um série de artistas a fazê-lo. Uns bem, e outros mal, mas o que o fazem mal adoptam uma série de princípios da portugalidade fetichizada que é precisamente o que estávamos a tentar contrariar. Uma das coisas que não tinha a certeza se ia ficar claro era se esta outra portugalidade se ia transparecer através do disco. Posso confessar-te que incluímos bastantes instrumentos tradicionais portugueses e se calhar não se notam (sorri). O que fizemos foi mostrar que esta portugalidade pode ser discursiva e não apenas um enfeite estético. Nós somos pessoas mais complexas do que chavōes populares e eu até venho desse lugar. Somos seres pensantes e criativos. A maior parte dessas pessoas nem sequer tem esse background. Querendo ou não, sendo importante ou não, contribuímos para esse panorama mais diverso do discurso sobre a identidade portuguesa. O Conan Osiris foi quem melhor fez essa introdução pela electrónica, relacionando-se com tradiçōes. Fê-lo com autenticidade e naturalidade. Não é unânime mas foi muito importante.
Não dependerem financeiramente da banda é o que vos permite fazer singles de sete minutos?
NR - O nosso insucesso torna-nos livres (ri-se). Mesmo não sendo profissionais, até já estivemos numa editora a sério, a Valentim de Carvalho, e o modelo de funcionamento era completamente desadequado. Adoro-os mas foi um mau match. Por um lado, por não sermos músicos profissionais, o que implicava ditarmos o calendário editorial, o que é péssimo para uma editora (ri-se), e depois porque tínhamos ideias muito diferentes sobre para quem estávamos a falar e quem queríamos que nos entendesse. Estarmos desprendidos foi a melhor decisão que tomámos. Correu muito melhor o disco que lançámos por nós, feito numa sala de ensaios e num barraco, editado por nós com a ajuda na comunicação da Sara Cunha. As pessoas que fizeram este disco cabem todas dentro de um carro (ri-se). Com o Pedro Valente (Azáfama), a levar-nos às costas, e a acreditar muito. Não sermos profissionais nem estarmos presos a estruturas profissionais dá-nos uma certa liberdade.
Revêm-se na ética de uma banda como Mão Morta que, para defender a liberdade artística, optou por não se profissionalizar?
NR - Completamente! Talvez não transpareça na sonoridade mas nós apreciamos imenso os Mão Morta. Apesar de sermos quase conterrâneos, pouco nos cruzámos, mas toda a atitude Ama Romanta, não só os Mão Morta mas também os Pop Dell’Arte, tem muito a ver com a maneira como achamos que as coisas devem ser feitas.
Uma ética e não apenas uma estética.
NR - Exactamente.
O Gótico Português acaba de fazer um ano. Regressam aos palcos no Musicbox (dia 1 de março) e no final do mês no Tremor. E a seguir?
NR - Por um lado, estamos a sentir o bicho carpinteiro do palco porque adoramos tocar. Talvez até mais do que de gravar. Como estamos numa fase das nossas vidas que não nos permite ter assim tanta disponibilidade, e por querermos fazer as coisas bem, tocar implica uma logística complicada porque somos seis em palco. No ano passado, demos muitos concertos mas não tantos como gostaríamos. Este ano voltamos à carga para celebrar a segunda prensagem do Gótico Português, porque a primeira esgotou. Queremos muito visitar estes sítios onde não fomos. Este ano, vai ser focado em tocar e começar a pensar noutras coisas. Não há hipótese de estarmos parados. Há qualquer coisa aqui a querer impor-se.