Gisela Mabel: "Componho com base no passado, noção do presente e esperança no futuro"
Não é jazz, não é clássica ou contemporânea. Não é portuguesa nem afro-brasileira. Então que música é esta desbravada como um vendaval sereno a voar das mãos de Gisela Mabel? Talvez um pouco de todas estas nortadas. Da educação no Conservatório à formação prática no jazz, da paixão pelo Brasil à herança maternal de Angola, o piano é a extensão não apenas do corpo mas de uma história ainda em reconhecimento facial através da música.
Pianistas com técnica e sensibilidade há muitos, mas capazes de transmitir a dualidade entre paz e angústia com a precisão e expressividade de Álbum de Retratos, o cartão de visita editado no ano passado, são raros. E talvez por isso, a escola de Gisela Mabel se funda com a sua própria consciência em construção, e alastre o profundo respeito pelo piano a uma colecção de memória descritivas, reproduzidas sem a restrição do vocabulário.
Para primeiro auto-retrato, soa a obra de mestre. Com ou sem palavras, hipótese deixada em aberto adiante, vamos ouvir falar muito dela. Gisela Mabel confessa sentir-se mais segura ao piano do que a verbalizar emoçōes mas nesta que é uma das suas primeiras entrevistas, não deixa dúvidas. Há muito a contar do invisível.
Como chegaste ao piano?
Foi engraçado porque quando era miúda, a minha família mudou-se para uma casa em que a senhoria deixou um piano. Velho, todo desafinado. Era um piano vertical. Aquilo era super-curioso para mim. A minha mãe não me deixava tocar com medo que estragasse o piano. Era uma sala interdita. E foi assim que cresceu este bichinho. Entretanto, comecei a aprender. Já tinha dois anos de Conservatório e ela ainda não me deixava tocar no piano.
Qual é a pré-história do Álbum de Retratos?
Estudei música clássica no Conservatório, em Olhão, durante cinco anos. Inicialmente, assumia o piano como um refúgio, e ainda hoje é, mas como uma cena à parte da minha vida de estudante. Comecei a tocar com 14 anos e sempre vi a música dessa forma. Quando fui para a Faculdade, tive que escolher outra área que não a música, por influência da família. ‘A música não funciona, tens que tirar um curso e depois logo se vê’. Estudei Serviço Social mas faltava-me algo. Precisava de ter a música mais presente, até porque quando estudei em Leiria, estive algum tempo no Orfeão local, só mesmo para ter o piano na minha vida. Entretanto, acabei o curso e eu: ‘boa, não vou fazer mais nada com isto. Quero ir para Lisboa estudar música’. Foi aí que estudei jazz [na JB Jazz]. Apercebi-me que era o caminho, mas ainda não era bem o que procurava. Comecei por estudar standards como o All of Me e o Fly Me To The Moon e tive o primeiro contacto com uma peça chamada Blue Bossa, que é um standard estudado no jazz, mas já a roçar a música brasileira. Fiquei fascinada e só queria tocar aquela peça e aquele estilo. Cheguei a pedir à professora [Paula Sousa, pianista de jazz e em tempos teclista dos Reportér Estrábico] para não tocar mais standards de jazz e só tocar música brasileira. ‘Ah não, para tocares música brasileira tens que esperar muito. São muitos anos de estudo.’ Tanto me chateei com aquilo que fui à procura do que me tocava mesmo na alma. Estava à procura de livros que me ensinassem a linguagem e encontrei um professor de forma aleatória. Encomendei os livros, a achar que o autor estava do outro lado do oceano, quando a pessoa estava em Lisboa, dava aulas e queria ser meu professor.
Quem era?
Turi Collura. Mostrou-me uma relação diferente com o instrumento, não só através da música brasileira, mas de um conhecimento mais puro. Também desenvolvi a capacidade de composição e foi aí que comecei a querer compor com influências mais próximas do Brasil como África.
Tens ascendência africana?
Sim, da minha mãe biológica. Ela é angolana.
Quando dizes que descobriste uma relação diferente com o instrumento, terá sido um vínculo mais pessoal e emocional? Contar a tua história ao piano?
Exactamente, exactamente. Aliás, eu sentia que na escola era muita teoria para aprender mas não me via conectada. Não ouvia aquilo que queria.
Era um ensino apenas técnico?
Exacto. Sentia-me desconectada da sensibilidade de tocar aquela nota e senti-la sem saber o que ela é. Esse professor trouxe-me a ligação emocional com o piano. Costumo dizer que componho com base no passado, noção do presente e esperança no futuro. Aliás, o Álbum de Retratos surge daí. De momentos passados na vida ou de alguém que se cruzou comigo. É uma reflexão sentimental sobre aquilo que passei.
É isso que explica a turbulência serena que perpassa as cinco peças? A paz e a inquietação coexistem.
Sim, porque é assim que levo a vida. Como toda a gente, passei por imensos obstáculos mas encarei-os sempre de forma positiva.
Há sempre uma luz no fim.
É, no final o meu coração está em paz.
A tensão racial está presente?
Em que sentido?
Da turbulência.
(pausa) Está lá, mas ainda é algo que estou a explorar. Não cresci nessa cultura, embora tenha crescido com várias crianças que são [afrodescendentes]. Tenho essa herança e quero descobri-la em mim, mas ainda não tenho uma posição muito definitiva. A música ajuda e todo o EP tem algo que remete para aí mas ainda não me consigo posicionar. Corrói-me por dentro.
O Sonho de Abril tem um posicionamento político?
Pode ter, mas por acaso escrevi-a sem pensar dessa forma. O sonho de Abril é liberdade mas essa música é uma homenagem à minha mãe biológica, quando ela faleceu. É o nosso mês, nascemos ambas em Abril. A minha mãe angolana fugiu da guerra e veio para Portugal. Nunca teve as mesmas possibilidades que hoje tenho. É uma homenagem aos sonhos dela e aos meus. Uma mensagem para ela de que hoje posso ser quem quero ser e tenho a liberdade de expressar o que quero dizer ao mundo. É muito pessoal.
A música dói-te quando sai de ti?
Dói, aliás às vezes só me apetece chorar quando estou a tocar nos concertos, mas é uma dor…
Que te conforta?
Sim, que me traz força e coragem. No fim, pacifica-me.
As cinco composiçōes ilustram momentos específicos?.
Sim, o Álbum de Retratos é literal. Em miúda era tradição na minha família da minha mãe não-biológica fazer um álbum. O EP é o folhear das páginas e a minha impressão de momentos específicos. É estranho dizer isto mas a Quietação remete para as minhas férias de verão (sorri). A imagem gráfica associada remete para as ondas do mar e a música tem essa…ondulação. Vai e volta. O mar traz-me essa paz mas atrás da bonança vem a tempestade. Por isso é que a música tem tensão.
Quando compōes, pensas logo em imagens?
Ah, sim. Componho sem pensar mas vêm-me logo à cabeça imagens. No Choro Africano, por exemplo, estava a tocar e a ver uma mãe africana a embalar o filho e a contar-lhe histórias da vida dela e da família. De como tinha sido difícil chegar ali, mas a passar-lhe essa força. Essa é a imagem que tenho ao longo da música.
Além das memórias autobiográficas, colocas-te no papel de observadora.
Sim. Tanto que esta imagem não é de ninguém em específico. Posso trazê-la para mim, num sentido mais profundo, mas é uma mãe e um filho. Não é que tenha acontecido na minha vida.
Tens peças apenas para piano e outras com uma densidade instrumental maior. Como é que foi este processo?
Muito, muito difícil. Primeiro, o sair do quarto. Querer mostrar a alguém. Para teres ideia, fui a estúdios para materializar aquilo que tinha na cabeça e faltava-me mais de metade [do orçamento]. Mas isto tinha que acontecer, sabes? As pessoas que fui encontrando e me encaminharam nem sequer eram minhas amigas. Surgiram. Um pianista que não me conhecia de lado nenhum marcou um café comigo e disse-me: ‘tu já sabes o que queres e és capaz de pôr em maqueta as tuas ideias. Não precisas de um produtor’. Fiquei muito surpreendida por aquela pessoa, vinda do nada, me estar a dizer aquilo. E assim foi. Fiz as maquetas, ele viu o que era preciso, quem eram os músicos, e aconteceu. Foi muito suave. Ainda assim, fiz uma campanha através do GoFundMe. Pagou o EP, senão ainda o estava a fazer.
É tudo instrumental. Passou-te pela cabeça teres vozes?
É algo que quero fazer no futuro, embora nada muito assumido. Existe uma grande diferença entre música instrumental e com palavra. A letra remete para algo específico, e eu gosto de deixar a liberdade em aberto. Tenho muita dificuldade em expressar aquilo que sinto por palavras, porque se tivesse facilidade…Então, deixo o piano falar por si.
A seguir ao Álbum de Retratos, o que se segue?
Confesso que ainda me sinto colada ao EP. Recebi um convite para fazer parte de uma colectânea, e fiz a música em duas semanas porque queria muito participar, mas senti que a sonoridade ainda está muito colada ao Álbum de Retratos. Há muita coisa que quero fazer. Gostava muito de explorar a relação com a música africana. Talvez faça algumas colaboraçōes. Sinto falta da partilhar com outras pessoas. O piano é um instrumento solitário.
Passa-te pela cabeça trabalhar com outras pessoas num formato mais próximo de um ensemble?
Claro! Se eu em casa, estou a tocar piano a pensar nisso…Adorava, aliás é um dos meus sonhos tocar com uma orquestra. Este EP já era para ter uma base de banda mas para me apresentar preferi que fosse mais minimal, mais cru.
Daí ser difícil categorizá-lo. Se é jazz, clássica ou contemporânea.
Exacto. Bebo de muitas fontes. Ouço de tudo.
A viagem ao Brasil vai reflectir-se no futuro?
Vai, até porque o meu coração ainda está lá. Ouço música brasileira e fico louca, aliás estava numa praia na Baía e compus duas músicas a olhar para aquele mar lindo.