No princípio era o Frágil, a alvorada da noite moderna portuguesa, ainda nos primórdios dos 80, mas é no final da década que no Alcântara-Mar, onde DJ Vibe era residente, e no Kremlin, que se começa a sulcar a cultura “raven”, como José Rodrigues dos Santos lhe há-de chamar em horário nobre, no lançamento da reportagem de Paulo Bastos na célebre festa da Estação da Luz em Aveiro, em 92, com Vibe, Luís Leite e João Daniel. A tirada pertence a um dos vários excertos hilariantes de Paraíso, imersão no Jardim do Éden da comunidade electrónica portuguesa, exibido pela terceira e última vez com sessão esgotada, em clima de grande euforia, na Culturgest, integrado no Indie Lisboa.
Um ano antes em Xabregas, no atelier do fotógrafo João Silveira Ramos, ensaiavam-se as primeiras raves na zona oriental de Lisboa, inspiradas nas festas clandestinas em armazéns abandonados, que serviam de casa ocupada ao corpo a corpo do acid house em Inglaterra. Depois do punk, era a grande corrente contracultural a despontar, por reacção ao neoliberalismo engravatado lubrificado pelo governo Thatcher (1979 - 1990). Embora ambos fossem confrontacionais, vestiam tons diferentes. O punk e respectivos afluentes, como o pós-punk e o gótico eram sombrios e provinham de temperaturas negativas, enquanto a “música de dança” era garrida e eufórica. Fartos de viver como morcegos, os ingleses queriam festa. E o vírus atravessou a Mancha.
A alvorada da cultura reagia à austeridade de uma Inglaterra onde a desindustrialização deixava os jovens sem emprego e sem respostas, devido ao enfraquecimento dos sindicatos e à privatização dos serviços públicos. As raves eram um escape. Como viriam a ser em Portugal, aliás, uma jovem democracia ainda a acordar para a vida. Não é por acaso que em Paraíso, electrizante documentário de Maria Guedes (Maria Amor) e João Ervedosa (Shcuro), ambos DJ, e do realizador Daniel Mota, o 25 de abril é tantas vezes invocado. Porque, de facto, o contexto sociopolítico, a geografia atlântica e a hospitalidade eram propícias para que a maré subisse. Havia um desejo dos filhos da revolução de cumprir a liberdade conquistada pelos pais. Libertar-se dos espartilhados do dia-a-dia e exceder expectativas. Não foi apenas um movimento a nascer da invisibilidade, foi uma revolução cultural propagada como onda de choque. A febre espalhou-se como fósforo no mato e embora se perceba que, em poucos anos, a massificação tenha obrigado a uma selecção natural, não se perdeu o efeito de evasão ao secretariado.
Em 1991, Xabregas recebe então uma enigmática rave, com música dos DJ do Bairro Alto, entre os quais DJ Vibe, e de Rui Pregal da Cunha, vocalista dos já extintos Heróis do Mar, e então nos LX-90, banda que emulava o som rock dançável dos Happy Mondays, e da qual fazia parte o DJ Tó Pereira, ou seja.. Vibe. Demasiado vanguardistas para um Portugal pop/rock, ainda dependente da balança de importaçōes musicais da Inglaterra dos 80, os LX-90 recriam no vídeo de Dah Wah, rodado por José Pinheiro no referido armazém e citado visualmente no documentário, uma rave xamânica e transcendental. Vibe é o nome usado por Tó Pereira para se fazer à pista - ele que há-de ser o DJ da festa Rave On, a primeira rave fora de Lisboa, em 1992, considerada o pecado original e a entrada no paraíso. Que em 1993 há-de viver no Castelo de Montemor a festa Medieval Groove, considerada a mãe de todas as raves.
Tudo era novo, excitante e inocente. Vivia-se intensamente. Amanhã era longe demais para pensar demasiado nos erros naturais de quem não dispōe da rede do passado. A cultura de clube já fazia frente à dominação do rock na noite, as festas produzidas por figuras como Paulo Nery e António Cunha, o histórico editor da Kaos, fervilhavam, DJ portugueses como Vibe, Luís Leite, Tó Ricciardi e João Daniel assenhoravam-se dos pratos, o público que viajava de lugares improváveis como Lousada, dançava mascarado até de madrugada em castelos ou lugares improváveis como o Convento de S. Francisco, em Coimbra (a cultura estava repleta de símbolos religiosos como forma de endoutrinação de um novo culto e de profanação dos costumes), os jornalistas frequentavam, as televisōes (pasme-se) interessavam-se e, claro, a música era a cola de todo o movimento. Ainda não havia uma compreensão generalizada do que eram o house e o techno, e das suas diferenças, mas essa inconsciência foi a semente de um universalismo local em que nomes como The Ozone, Kult of Krameria e os incontornáveis Underground Sound of Lisbon desenhavam um som claustrofóbico e tribal, ainda com marcas de colectivos como os LFO mas já seduzido por outras latitudes e motivos percussivos como o garage novaiorquino.
The End of the Earth is Upon Us era o passaporte para o apocalipse pronunciado por Darin Pappas, um fotógrafo e surfista californiano a viver em Cacilhas, que pouco tempo depois seria conhecido como Ithaka. Embora DJ Vibe e o amigo Doctor J (Rui da Silva, ex-técnico da TSF) se tivessem esmerado no lado A Dance With Me, foi So Get Up, do mesmo single o grande estouro. Clássico absoluto coroado pelas pistas, contou com o precioso impulso de DJ de Nova Iorque como Junior Vasquez, em aparelhagens como a do Sound Factory, as remisturas deste e de Danny Tenaglia, e a mão de Rob Di Stefano, responsável pela distribuição internacional através da Tribal Records. “Transformador foi pouco”, descreve o novaiorquino sobre as revoluçōes por minuto a acontecer em catadupa.
Di Stefano e Tenaglia estão entre os depoimentos do documentário, assim como a grande maioria dos DJ portugueses da época, de Vibe a Luís e Paulo Leite, Rui da Silva, Jiggy, A. Paul, João Daniel, Alex S., os Ozone, Frank Maurel, Nuno Cacho, Ruizinho, Carlos Manaça, DJ Morgana, Zé Pedro Moura, Yen Sung, Mário Roque, os irmãos XL e Wla Garcia, Alex FX, os contemporâneos destes Rui Vargas e Carlos Fauvrelle, o promotor Paulo Nery, o agente Miguel Marangas, e os bailarinos do Alcântara-Mar Manuel Potes e Vitor Machado. A visão dos intervienientes é prática e vivida, e só precisava de um pouco mais de contexto distanciado para sustentar a riqueza do arquivo, mas a história é contada sem interferências por quem a viveu acordado até de manhã.
So Get Up explode em 1994, ano de objectos fundamentais como Viagens de Pedro Abrunhosa, e prescientes como Rapública. Portugal está a mudar, o cavaquismo a cair da tripeça e é por esta altura que se dá o baptismo de voo de A Paradise Called Portugal, expressão cunhada pela influente revista Muzik, após uma semana ensolarada de reportagem (o cunho já tinha sido posto pela Kaos previamente). As festas multiplicam-se por todo o país, a comunidade cresce sem parar e o som electrónico normaliza-se nas pistas, o esforço editorial da editora é incansável mas Portugal não se consegue exportar.
So Get Up projecta os USL internacionalmente mas viaja sozinho em primeira classe. E embora faltem explicaçōes, Paraíso não o esconde pela voz do próprio DJ Vibe. Nem a um declínio, acentuado pela massificação e reputação que os excessos implicam mas tal como se ouve num testemunho recolhido numa reportagem televisiva, “drogas há em todo o lado. Não é só nas discotecas”. Até na ressaca, Paraíso humaniza os arquitectos de uma revolução inconsciente e vertiginosa. Toda a gente estava demasiado extasiada para descer à terra. Perdeu-se uma oportunidade. Podia ter sido outro o rumo?
As raves não cessaram, as festas continuaram, eventos como o Neptunus chamaram a Portugal a nata dos DJ ingleses, mas entretanto já outras subculturas tinham irrompido como o jungle, o drum’n’bass e o IDM. Fecharam clubes como o Alcântara-Mar Em 1998, abrem-se as portas do paraíso do Lux e do Vaticano. E a partir daí, a história é outra.
Esperança (Hope) foi a faixa que fechou a pista do Alcântara-Mar
Artigo consultado: Uma pequena história da música electrónica de dança em Portugal (parte II)