Era uma questão de tempo até o “segredo muito público” rebentar. A revelação de um caso de violação espoletou uma avalanche de denúncias do comportamento de João Pedro Coelho, pianista de renome no meio e ex-professor do Hot Clube de Portugal. A acusação partiu de Liliana Cunha, de nome artístico Tágide, com duras críticas à escola por alegado encobrimento. A partir daí, abriu-se a tampa de esgoto. Múltiplas denúncias, entre elas de assédio a adolescentes entre 14 e 18 anos, e capturas de ecrã com mensagens explícitas, muitas delas de ex-alunas. "Isto é uma coisa que acontece há anos. Tenho neste momento quase 70 mensagens de denúncias de raparigas", contou Violeta Luz, também ela vítima assumida, ao Notícias ao Minuto. "Ele foi professor no Hot Clube durante anos e toda a gente sabia que ele enviava mensagens e assediava as alunas. Aliciava-as a beber álcool e a ir a festas com elas, quando eram ainda menores", relatou.
O caso de Liliana Cunha foi denunciado às autoridades. Cabe à justiça julgar o acto de violação mas o impacto está muito para além da barra do tribunal porque parte de um jogo de sedução mediado por factores de influência e poder. O “mestre” usa o seu prestígio e estatuto para tirar partido de uma situação de admiração, o virtuosismo (e a pedagogia) saltam para os lençóis e o desequilíbrio de forças funciona como uma mordaça para a vítima. Isso explica o medo da denúncia e a protecção do abusador por parte de um meio estruturalmente machista e estreito em que há mais pianistas que pianos. Os relatos são tantos que só pode ter havido encobrimento, pelo menos entre pares. O Hot Clube demarca-se da acusação de cumplicidade para com o músico, explicando ter cessado a relação com João Pedro Coelho em 2023 e confirma ter identificado “duas situaçōes de assédio no ano lectivo de 2021/22 (…) tendo levado ao afastamento dos professores em causa”.
Liliana Cunha perdeu o medo após uma primeira denúncia de comportamento abusivo de Tadas Quazar, DJ e proprietário do bar Baras Darbas, nos Anjos. A descrição repete-se. Fascínio da vítima enquanto estudava em Lisboa, aproveitamento do estatuto por parte do abusador, e manipulação através de um relacionamento tóxico. A cidadã alemã relata uma situação limite de violência física, denuncia ameaças, insultos e traumas, e acusa ainda o lituano de fazer o mesmo com outra mulher. Tanto João Pedro Coelho como Tadas Quazar usaram as redes sociais para negar.
As denúncias contra João Pedro Coelho acontecem num meio conservador, masculinizado e de classe como é o do jazz. Nada é novo se pensarmos nas relaçōes de poder entre predador e vítimas, contadas nas acusaçōes de assédio ao “professor estrela” Boaventura Sousa Santos. Em meios intelectualizados, herméticos e patriarcais, o progressismo nem sempre sai dos livros e os actos por vezes ficam aquém das palavras. Como se pode observar pelo caso que envolve o sociólogo, a legítima denúncia pode ter efeitos devastadores no percurso académico. Sara Araújo, uma das 13 subscritoras de uma carta de denúncia, acusa-o de usar "o sexo como moeda de troca" e de exclusão "da coordenação de todos os projetos em que tinha investido a minha dedicação".
Boaventura de Sousa Santos já iniciou a “defesa do bom nome” no Tribunal de Coimbra mas em março o relatório comissão independente concluiu que o CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) contribuiu para a perpetuação de situações de abuso e assédio entre professores e alunos, descrevendo uma “cultura de assédio e abuso sexual” assim como um clima de "abuso verbal, desqualificação e usurpação do trabalho, tarefas e exigências múltiplas e sobrepostas, imposição de desempenho de vários papéis e funções diferentes e por vezes incompatíveis, instrumentalização de pessoas para satisfação de necessidades pessoais e realização de trabalho para proveito pessoal por pessoas numa posição hierarquicamente superior", sem nunca nomear Boaventura Sousa Santos.
O problema não é de género (musical) nem é tampouco um exclusivo do showbizz. Está disseminado. Não acontece só no jazz. No clubbing ou na Academia. Mas todos os casos relatados se passam em meios localizados de prestígio em que o hiato entre denúncia e investigação pode ter efeitos nefastos para a vítima. Em que uma denúncia isolada se pode virar contra a denunciante ou cair no vazio. A coragem de Liliana Cunha derrubou a barreira do medo, mas num país tão pequeno, assente em relaçōes feudais de poderes hereditários e privilégios verticais, ainda é cedo para assumir que uma denúncia colectiva no meio do jazz transforme este sismo num #EuTambém capaz de roubar testemunhos aos corredores, abalar as estruturas e mudar comportamentos.
Estranhamente, das notícias publicadas nenhuma tem origem no jornalismo musical. Têm medo de quê? (Actualização: o Público publica este sábado uma reportagem sobre o caso)