Perto de dois minutos depois de ter batido à porta, o dono da Tabacaria assoma. “É o Esteves Sem Metafísica”, entidade delegada por Teresa Esteves da Fonseca para descer pela janela das traseiras e sossegar as partes sensíveis com chocolates. O ingresso em Proposição, a canção de abertura, é elucidativo. Nada aqui é novo, tudo aqui é pessoal e singular. Queremos entender esta charada.
De.bu.te (ed. Flor Caveira) é a estreia de uma poeta (em 2023, publicou A Morte Não tem Pátria) com caligrafia e lábia aguçada. Teresa pode não saber ler música no sentido formativo mas tem na escrita uma língua franca de namoro com o desconcerto e a desinibição. Fala de sobriedade, redenção e desejo sem interdiçōes no mergulho.
Em Sebastião Macedo (Príncipe de assinatura), encontrou um cúmplice para forrar as paredes de um labirinto de improviso jazzístico, pop de verve clássica, rock progressivo com violinos no telhado, de casta Gentle Giant e Curved Air, e arranjos klezmer circenses como em dar-me de volta.
O bloco mais surpreendente de cançōes do ano não vem dos eixos habituais mas tem origem demarcada. De Arruda dos Vinhos, a metafísica de Teresa Esteves da Fonseca.
O De.bu.te é o “mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres”?
(pausa) Sim, acho que é o “mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres”. É o que está por baixo de uma vivência ainda não muito longa, mas já com alguns anos e que agora se concretiza material e sonoramente.
Como é que olhas para a escrita de cançōes? Entrelaça-se com a autora?
Acho que se entrelaça muito. A música sempre esteve presente e é-me difícil fazer essa distinção. Claro que há questōes em que a música e a poesia se distinguem, mas há outras indissociáveis. Quando escrevo sem pensar em composição musical, imagino um sentido rítmico. Digo os poemas em voz alta para perceber se soam bem, se há um som que faça sentido. Para os gregos, música e poesia eram o mesmo. As palavras eram cantadas. É um acumular dos anos vividos que trouxe esta música. Sem grandes declaraçōes.
Uma autobiografia?
Acaba sempre por ser. Não é tão biográfico, no sentido em que não conta episódios concretos da minha vida mas tudo o que o artista faz ou escreve é autobiográfico porque parte de si. A única maneira que conheço o mundo é a dentro da minha pele. Só sei descrever as coisas com os meus olhos.
Qual é a pré-história musical do De.bu.te?
Nunca estudei formalmente. Nunca andei numa escola, mas desde cedo interessei-me pela guitarra. Também experimentei outros instrumentos como o baixo, a flauta irlandesa e a guitarra portuguesa. Sempre muito autodidacta, se bem que é um termo com o qual não concordo muito porque nunca ninguém aprende tudo sozinho. Perdi muitas horas no YouTube de volta da guitarra até conseguir desenvolver [a técnica].
A cultura musical foi fundamental. Bebi muito dos meus pais e a partir da adolescência desenvolvi o meu gosto. Fui procurando cada vez mais e mais coisas diferentes. Na minha “formação” musical, foram fundamentais os coros de Igreja. Sempre fui menina de coros e os coros de igreja têm uma particularidade muito interessante que é misturar músicos amadores com profissionais. Pessoas sem formação musical nenhuma com outras que estudaram no Conservatório ou aprenderam guitarra clássica, piano ou composição. O contacto com essas pessoas sempre me ajudou a compreender alguma teoria musical. Desenvolvi muito o ouvido e a criatividade harmónica. Quando não havia partitura, tinha de inventar uma voz.
Nunca pensei em composição. Aliás, nunca achei que tivesse muito talento musical por isso é que desenvolvi uma parte cultural mais forte. Pensava: “já que não tenho talento, ao menos vou adquirindo conhecimento”. Em 2020, comecei a tentar fazer umas coisas. Sabia que era criativa nos arranjos. Comecei a fazer coisas muito simples e chegámos até aqui.
É através da Igreja que chegas à [editora ]Flor Caveira?
Não exactamente, porque somos de Igrejas diferentes. Eles são Protestantes e eu sou Católica, mas desde que, para aí em 2009, tomei conhecimento da Flor Caveira, com o Tiago Guillul, o lado religioso provocou-me. “Estes tipos têm uma ganda lata”. Dizem estas coisas com a maior das simplicidades. A minha admiração por eles é musical mas começa pelo lado religioso.
Na escrita, és desinibida. Expōes o desejo e o excesso. Não te interditas.
Sim, tem a ver com a forma como fui educada pela Igreja Católica. Andei numa escola de Jesuítas, à qual ainda estou ligada, e a linha deles é muito humana. Passa muito pelo auto-conhecimento e pela humildade de aceitar quem sou, com as minhas fraquezas e forças. Fui educada a não ter preconceitos comigo. É daí que vem a franqueza comigo própria. Fui incentivada a não cair no auto-engano. A única forma de ser verdadeira com Deus é ser verdadeira comigo.
O significado da palavra na escrita de cançōes obriga o texto a nascer primeiro?
Varia. Às vezes, nasce primeiro a melodia. Penso sempre nas melodias com palavras, mesmo que depois as mude. O Paul McCartney começou o Yesterday com “scrambled eggs” porque ele precisava de palavras para pôr naquela melodia, e foram as primeiras que apareceram. Há letras que nascem primeiro, às vezes encaixo uma letra na melodia. Não tenho uma regra.
Para um álbum de estreia, o De.bu.te tem uma produção cheia, grandiosa e desinteressada de um género em particular. Obra de Príncipe (Sebastião Macedo, produtor)?
Sim, passou muito pelo produtor. Eu vinha com ideias bem vincadas mas o facto de não saber música por vezes dificulta a comunicação. Aquilo que ficou era o que eu queria, só que eu não sabia explicar a textura e a densidade pretendidas. Tentei explicar canção a canção o que pretendia, e o Sebastião percebeu exactamente. Ele fez um esforço muito engraçado de me pedir uma playlist das referências musicais em que eu queria pegar. Foi ao encontro de quem eu gosto e por que é que gosto. Gostar dos Beatles quase toda a gente gosta, mas cada um gosta por razões diferentes. Cada um sente as canções à sua maneira.
A intenção e não apenas o efeito.
Exactamente. Funcionámos muito bem em dupla. Os arranjos são dele e acho que ficaram muito bem.
Suponho que essa playlist não tenha muita música actual.
Tem alguma, tem alguma. Umas Billie Eilish e umas Rosalias…Também tem Bach, Beatles, Gentle Giant…uma esquizofrenia. De facto, tem coisas mais antigas. Anos 60 e 70 é do que gosto mesmo.
Revês-te mais numa ideia de não pertença a este tempo ou numa perspectiva de atemporalidade?
Talvez numa ideia de atemporalidade, não por me querer distanciar do meu tempo mas por não me exigir encaixar nesse mesmo tempo. Não é um acto de rebeldia de não pertença, é o não me limitar pelo tempo que me é pedido.
És uma lisboeta a nascer em Arruda dos Vinhos. Viver numa vila mais pequena permite-te ter uma paz e silêncio impossível na grande cidade?
Sou arrudense apesar de ter nascido em Lisboa. A minha família está aqui há bastantes geraçōes. Também já vivi em Lisboa. Está tudo relacionado. Identifico-me como uma eremita filantropa. Adoro estar com pessoas e amigos, mas tenho uma grande necessidade de me isolar. O viver na Arruda, um sítio mais pequeno, permite-me viver esta vida mais isolada. Não é que a realidade me seja alheia, bem pelo contrário. Também tenho as minhas ansiedades sociais. Um artista que viva fora da realidade não percebe o que as coisas doem, mas o isolar-me faz com que não doa tanto. Um sítio mais pequeno também tem o seu quotidiano, mas sim, tenho essa necessidade por feitio. Fazer as minhas coisas sozinha e não fazer nada sozinha, mas também não me deixando cair numa solidão que não é saudável.
Escreves sobre música?
Vou escrevendo de vez em quando. Sobre a música, já escrevi para a Brotéria e para a Forma de Vida, que é uma revista universitária. Para a Brotéria, escrevo sobretudo sobre literatura.
O que procuras na análise crítica? A observação é transmitida para o processo criativo?
Acho que sim. A cabeça que escreve uma crítica é a mesma que faz uma canção. Quando escrevo uma crítica, já tenho uma data de outras músicas que ouvi e críticas que li. É difícil. Tenho mais medo dos outros críticos do que de mim. Podíamos estar hora a falar sobre isto. Para mim, o papel do crítica não é dizer se é bom ou se é mau. Na minha perspectiva, e sei que isto pode ser polémico em alguns meios académicos, o trabalho de um crítico é tanto melhor quantas mais chaves de leitura dá. É isso que tento fazer nas recensōes e não tanto os juízos de valor. Claro que louvo alguns pormenores mas preocupo-me acima de tudo em fazer pontes para aquilo que os outros vão ouvir. Tanto para a escrita como para a música, tive que me despir dos preconceitos académicos. Começava a escrever e pensava: “o que é que este professor vai pensar?”, e não é por aí. Tem de haver um casamento entre o lado intelectual e o lado sensível. Às vezes, sinto que os críticos são um bocadinho autofágicos. A arte é para ser partilhada com toda a gente. Não é só para mim.
Lês crítica musical em Portugal? Foi importante para ti?
Musical não tanto. Mais a literária e alguma do cinema, mas desisti do cinema porque acho que os críticos não gostam de ver filmes. Odeiam. Gosto de ler críticas antigas do T. S. Eliot. Em relação à crítica musical, sinto que está presa a termos que eu também não conheço porque não tenho formação musical. Das áreas que me gostei de estudar na Faculdade de Letras foi Teoria da Literatura. O que é a literatura, o que é a arte, a diferença entre um poema e uma lista de compras. Temas interessantes que entretêm intelectuais e eu andava muito entretida nessa altura, mas em paralelo, tive de fazer um exercício para que essas coisas não ensombrassem a criatividade.
Quando se tem uma mente muito habituada à crítica e à teoria, é difícil libertar a parte criativa. Este disco foi óptimo nesse sentido. Está cheio de mudanças de tempo e de tom. Como não tenho essas capacidades musicais, cingi-me aquilo que é mais fácil. Não compliquei demasiado. O lado mais académico da crítica é bom porque dá arcaboiço intelectual mas é preciso ter cuidado porque pode ser castrador.
Vais dar concertos? O que pensas fazer com estas cançōes?
Não é que queira dar concertos mas pretendo divulgar o meu trabalho. Há três concertos em cima da mesa que hei-de comunicar nas redes sociais. Tenho a sorte de ter comigo músicos muito bons. A maioria são amigos do dia-a-dia, o que me vai dar conforto porque sou uma ex-tímida. O palco ainda me é desconfortável mas é algo em que tenho de trabalhar. Sem sacrifício não se consegue.
Além de cantares na Igreja, já deste concertos como Esteves Sem Metafísica?
Depois do álbum sair, dei um num pequeno festival chamado Em Casa. Eles ligaram-me uma semana antes de o De.Bu.Te sair para ir lá uma semana depois de o álbum ser editado. O timing foi perfeito. Isto com cançōes minhas porque já cantei muito em casamentos, eventos empresariais e casas de fado. Mas aí é diferente porque o repertório não é meu.