A multiplicidade de reacçōes à morte de Fausto é natural e sintomática para a importância deste. É sempre assim na hora da partida, mas não cala o emudecimento da sua obra, pelo menos neste século. Antes de mais, o afastamento foi auto-imposto. Fausto relacionava-se cada vez pior com o palco, daí cada concerto nos últimos anos se ter transformado num acontecimento, não se sentia confortável com a exposição pública e muito menos com os ditâmes da indústria. Em Busca das Montanhas Azuis, o capítulo final da trilogia iniciada pelo clássico Por Este Rio Acima e continuada por Crónicas da Terra Ardente, já foi arrancado a ferros em 2011, e dois anos antes, não foi fácil convencê-lo a participar nos Três Cantos, com José Mário Branco e Sérgio Godinho. Para alinhar na aventura, impôs a presença da sua banda.
Godinho e Jorge Palma têm uma relação muito mais pacífica com o meio, e independentemente de todas as subjectividades, não é um acaso a omnipresença na actualidade mediática e não só. Ambos continuam a dar dezenas de concertos pelo país, incluindo em festivais, e em boa forma. Por Fausto não fazer parte da espuma dos dias não quer dizer que estivesse esquecido na memória colectiva. Bem pelo contrário, não deve haver outro período da história da música portuguesa que o referencie tanto. Filipe Sambado idolatra-o, Pedro Mafama inverteu-lhe o sentido da corrente em Por Este Rio Abaixo, os Capitão Fausto e Benjamim revisitaram-lhe a epopeia. A nau catrineta de tributos é velejante. A música de Fausto estava viva, mas teria eco para além das cordilheiras?
Uma viagem tão grande traz todo o tipo de interpretaçōes. É uma bela maneira de apreciar a riqueza da obra produzida. Pedro Abrunhosa foi contundente nas palavras. “Matou-o o silêncio das rádios que não o passaram porque não era moderno, os prémios que não ganhou porque não era mediático, os festivais que não fez porque a sua música não era quadrada, a contabilidade dos poucos streamings porque não escrevia a metro nem música é cálculo. Mataram-no os que nunca o viram ao vivo quando puderam, os que nunca o ouviram porque não quiseram, os que vão jurar que sempre o amaram, os que lhe vão fazer homenagens porque são urbanos e civilizados. Não lhe matem mais a Música por favor!”, escreveu.
Já o jornalista Pedro Tadeu recuperou no seu programa Panfletos da Antena 1, “a indignação de Fausto com a censura, na rádio, na televisão e no circuito comercial discográfico, da chamada Música Popular Portuguesa” contrastante “com o desfile de homenagens que agora lhe são prestadas”, a propósito da canção A-Nova-Brigada-dos-Coronéis-de-Lápis-Azul do derradeiro e citado Em Busca das Montanhas Azuis. Não consta que Fausto tenha sentido vontade de continuar a gravar, encerrado esse fascículo.
Na Visão, João Gobern aponta a contradição entre “o dia em que Fausto morreu” e a entrega da “medalha de Mérito Cultural da Cidade ao cançonetista Tony Carreira”, por Carlos Moedas, e constata a “aventureira consulta às playlists das rádios nacionais” em que “entre os felizes contemplados pelos iluminados decisores da divulgação diária e/ou semanal, não constava nenhuma canção de Fausto Bordalo Dias”, para lamentar “o nebuloso silêncio que se abateu, em torno de uma obra única, coerente, teimosa, cheia de lições e de pistas, equilibrista em doses sábias de acutilância, estudo prévio, intensidade e paixão”.
Três opiniōes a desaguar na mesma conclusão. A música de Fausto foi-se calando, ou foi silenciada, e os responsáveis pelo alargar de margens entre as cançōes e o auditório são a indústria e os meios de comunicação. O vértice da pirâmide é a reclusão do cantor maldito, materializada em ópera mágica na auto-crítica certeira de um trovador subjugado pela música de conforto e despreocupado em seguir as rotas do vento que passa. Importa perceber se o meio que aceitou revestir-se de indústria de criação de conteúdos, levando a que o público se relacione primeiro com os modelos de comunicação, antes de se importar com a música, está preparado para lidar com o silêncio, espaço e tempo exigido pelas cançōes para perdurarem um pouco mais do que um gelado de verão e surtir algum efeito além de Tik-Toks e boomerangues.
Podemos olhar para musas como Sade ou Kate Bush e achar que sim; para David Sylvian ou Robert Wyatt e considerar que não. E até figuras recentes como Frank Ocean são quase mudas. Em Portugal, esses casos também existem. Slow J e Dillaz mostram pouco. De Conan Osiris vai-se sabendo o que ele quer que se saiba e, ainda assim, a expectativa por um novo álbum continua em alta. O problema de Fausto vem de trás e muito antes da vida em rede já se tinha desvinculado deste carrossel para morar num beco com saída, protegido de outra exposição que não a da música. Seria uma personalidade difícil, como a pintam, ou sincera e exigente? José Afonso passou pelo mesmo nos anos 80 quando o quiseram afastar do mapa por ser demasiado incómodo para o pós-25 de abril.
Como se vê pelo alastrar da sua influência, havia público e interesse só que Fausto não estava para fazer as macacadas de José Cid. E basta ver a conversa com Fátima Campos Ferreira na Primeira Pessoa para observar a má relação com as câmaras. O preço de nada ter para vender é alto e não tem reembolso. Se já era caro no passado, muito pior ficou num tempo em que lidar com a aparência é pacífico e aceitar a transparência é muito complicado.