Silly: "É mais fácil dizer numa canção o que sinto do que escrever numa mensagem ou conversar com alguém"
Em Viver Sensivelmente, Silly prometeu. Em Miguela, Silly retribuiu. 27 meses de separação entre o EP de estreia e o álbum inaugural soam a eternidade em lanço de correria, mas o passo lento é o teste definitivo do algodão. O tempo é o filtro entre o que passa e o que fica. As cançōes florescem como plantas de interior, serenas e harmoniosas. Involuntariamente e sem conflito, Miguela perde a exclusividade autobiográfica e transforma-se em contraditório da actualidade no seu ritmo contemplativo. Um eco imenso dos Açores onde nasceu, e do Alentejo onde cresceu, num primeiro longa-duração amassado como pão no estúdio de Fred, não só produtor como um dos pulmōes do disco. Se grande, grande é a viagem porque motivo há-de ser para ontem?
Passaram mais de dois anos desde o primeiro EP. Quiseste ter a certeza do teu tempo?
Não tenho pressa em nada, muito menos a criar. No meu caso, as coisas aconteceram de forma orgânica e ponderada. Não houve pressas nem pressōes de lado nenhum. A forma como encarei o crescimento foi cuidado e para isso é preciso tempo. Dois, dois anos e meio, nada foi para ontem.
Miguela porque o álbum é a tua fotografia? A tua casa?
O conceito do álbum tem muito a ver com o meu crescimento até ao momento actual. Por todos os sítios por onde passei - essa característica nómada da minha vida. O ter nascido nos Açores, crescido no Alentejo e viver em Lisboa. O título vem daí e também porque me chamo Maria Miguel. O nome Miguela também esteve em cima da mesa quando a minha mãe ainda estava grávida. A capa do disco personifica essa identidade. É uma forma simbólica de contar a história.
É uma voz que vem do interior?
Sim, completamente. É muito autobiográfico. Talvez um pouco egoísta nesse sentido mas agrada-me a ideia de aquilo que vivi ou senti possa tocar noutras pessoas com histórias completamente diferentes.
É um álbum muito sereno, de paz interior e, por isso, de contraste com um tempo de correria constante.
Isso é um grande elogio. Essa serenidade existe, sem dúvida, em mim. Não sempre mas com alguma constante. E existe a conformidade de encontrar a beleza e simplicidade. Essa não-pressa tem a ver com a minha forma de ver o mundo. Talvez esteja a ser um pouco romântica mas não sinto necessidade de estar presente ou aparecer. A correria, o estar sempre com pressa, esse jogo plástico…Como também contei histórias delicadas, que não são fáceis de partilhar em conversa, tinha que usar um tom sereno. Sem grandes fogos de artifício.
Deixar a música falar por ti.
Sim. Não sei bem explicar isto, mas também me desresponsabiliza em parte. Não é que rejeite a responsabilidade mas o exercício de escrever e cantar ajuda-me a expor. É mais fácil dizer numa canção o que sinto do que escrever numa mensagem ou conversar com alguém.
É uma forma de vencer a timidez?
Aaaaaa, espero que sim. Como as sinto tanto, pode ser uma forma de me ajudar nisso mas não creio que vá mudar de forma drástica. A timidez faz parte da minha personalidade.
Usaste sons gravados em família nos interlúdios, assim como no vídeo do Herança. É um álbum de família?
Sim, tem a ver com o espaço que ela ocupa na minha vida que é muito grande. Eu sou a irmã mais velha de seis e além de sermos muitos, eles são muito importantes. Ao trabalhar neste disco, olhar para trás e percorrer todo este caminho, penso em todos esses momentos. O Herança foi uma forma de fixar tudo isso. Ainda hesitei se deveria expor a minha família, mas pareceu-me uma coisa tão bonita que não se tornou gratuita.
No triângulo Açores-Alentejo-Lisboa, que importância teve cada um dos lugares no processo de criação?
Isto começou no verão de 2022 quando comecei a trabalhar com o Fred ainda em Lisboa. A conexão entre nós foi muito forte. Acabámos por ficar juntos desde aí. Na primeira semana de janeiro de 2023, aluguei um monte alentejano durante uma semana. Fui sozinha e todos os dias trabalhava numa ideia instrumental nova. Saí de lá com seis ou sete temas, dos quais só aproveitámos dois para o disco. No verão passado, fui para os Açores para uma casa que temos numa Fajã no meio do nada. Acabou por não sair nenhuma ideia mas lembro-me de ter ouvido o primeiro arranjo de cordas do Marcelo Camelo para o Herança. Lisboa foi o berço do disco porque foi onde passámos grande parte do tempo a trabalhar mas os Açores estão muito presentes porque fui buscar muitas partezinhas de VHS filmadas lá, assim como vozes minhas, do meu pai, do meu irmão e da minha irmã. Todos os lugares acabam por estar presentes.
O papel do Fred suplantou o de produtor. Foi cúmplice em todo o álbum?
Sim, definitivamente. Este disco foi dividido. Saiu-nos do pêlo aos dois. O Fred foi muito mais do que produtor, foi mentor e cúmplice em todos os momentos. Sempre que falo do disco ou da minha música, é no plural. Ele esteve presente em todos os detalhes das cançōes e até fora delas. Fomos vivendo coisas fora, trabalhámos noutros projectos e conhecemos outras pessoas. A ideia do vídeo do Herança foi sugestão dele.
É por isso que o convidaste para cantar na Vento Forte que fecha o álbum?
Claro, e fiquei muito feliz porque é a primeira vez na vida que ele canta [em disco]. Quando ouviu a letra, bateu-lhe muito e disse-me: “isto também sou eu”. Não teve medo e mergulhou comigo no convite que lhe fiz porque inicialmente era só eu a cantar. Há um momento que tem uma parte instrumental com coros do Fred, que ele enviou para mim numa primeira maqueta. Emocionei-me a ouvir e perguntei-lhe se ele aceitava cantar comigo. Também foi uma forma fixe de acabar o disco, o ter a presença dele.
No EP notava-se mais a influência do hip-hop, talvez enquanto processo mais do que de resultado. No álbum, talvez se note mais a tua personalidade do que um género em particular.
Talvez tenha a ver com maturação. E com o encontro feliz com o Fred, que por me ter lido tão bem permitiu soltar espectros. No disco, estão coisas que sou mas ainda não tinha encontrado forma de verbalizar. Nunca senti essa necessidade de catalogar o que faço. Lembro-me de ter partilhado contigo na outra conversa que tivemos que achava essa ideia um pouco perigosa. Ao longo destes mais de dois anos, foram surgindo outras referências e influências. Tenho mais mundo e conheço mais música. A minha timidez talvez também não permitisse explorar certas coisas.
O processo criativo tem-te servido de auto-reconhecimento?
Sim, sem dúvida. Tem sido uma descoberta de coisas que não sabia que era capaz de fazer. Ou que sozinha não tinha capacidade. É fixe perceber que tanto sou o Vento Forte, que é uma canção acústica, como também sou uma Procurei mais dançável. É fixe rever-me nessas diferenças. A ideia pode fechar o disco com a Vento Forte tem a ver com isso porque é a canção mais “fora”, por ser a minha preferida e por ser um fim que abre uma janela daqui para a frente. Se no futuro, fizer uma canção dentro desses limites, eu também sou isso.
Apesar de ser um álbum autobiográfico, tem várias participaçōes como o David Jacinto e o Marcelo Camelo, além do Fred. A entidade Silly pode crescer no futuro?
Não é uma coisa que pense muito. Esta aliança com o Fred vai perdurar. Houve várias pessoas envolvidas no disco, de forma mais ou menos directa. Daqui para a frente, a base seremos nós dois, pelo menos gosto de pensar que sim, mas sinto muito que Silly sou eu e todas as outras pessoas que trabalham comigo, me ajudam e inspiram.