Beber água da fonte. Amaro Freitas repete várias vezes a expressão durante a conversa mantida por Zoom de antevisão aos concertos em Lisboa e Ovar. Não é bem uma entrevista, é uma lição de vida de um músico que fala sobre a transformação de um piano em floresta.
Amaro Freitas não toca apenas, faz dos instrumentos transmissores de oxigénio. E para isso imergiu na floresta amazónica para receber a sabedoria dos povos indígenas e escutar os barulhos da natureza, traduzidos num piano preparado à John Cage com identidade brasileira.
Y Y é o notável disco acabado de editar, que parte de um olhar profundamente crítico sobre as políticas de Jair Bolsonaro de destruição da Amazónia para chegar a um lugar musical de ancestralidade e reconstrução do humanismo. Os concerto estão marcados para quarta, dia 20, no Centro de Arte Ovar e sexta-feira, dia 22, às 22h00, no novel festival Belém Soundcheck no Centro Cultural de Belém.
Como é que o piano preparado se encontra com a Amazónia?
Há cerca de dez anos, coloquei a mão dentro do piano pela primeira vez e percebi que se podiam gerar outros sons. Depois, descobri o John Cage e fiquei encantado com o processo do piano preparado. Há cinco anos, comecei a criar as músicas do Y Y. Comecei a experimentar coisas dentro do piano e a pensar sobre um piano preparado que soasse a uma identidade brasileira. E aí, foi extremamente importante visitar a Amazónia pela primeira vez. Descobri um outro Brasil. Um lugar completamente diferente com o seu porto. As pessoas dependem do barco para descer e subir. Dormem em redes dentro dos barcos. Existem casas flutuantes preparadas para existir em cima do rio. E essas casas deslocam-se. Há um grande fenómeno que é o encontro do Rio Negro com o Rio Solimōes. Eles encontram-se mas não se misturam. Emocionei-me ao presenciar isso. As frutas do norte, a vastidão da floresta e obviamente a comunidade indígena Sateré Mawé (código ancestral que se traduz por “água ou rio”). Participei no ritual. Comi formiga, carne de jacaré e peixe. Ouvi frases como “beber água da fonte” e “comer o fruto do rio”. Falámos sobre floresta, rio, o equilíbrio do planeta e a importância da Amazónia no Brasil. Percebi que tinha encontrado um norte para o disco.
Que reflexão fez da imersão na Amazónia?
Reflecti que vivemos num país tropical muito quente. Que tem diversos ritmos como o samba, maracatu, frevo, caboclinho e bumba meu boi. Todos eles são muito dançáveis e contam um pouco da história da construção dos povos negros indígenas brasileiros, a partir de influências ibéricas, árabes e afro. Pensei em trazer esse som tropical para o piano preparado. É uma música extremamente complexa mas não tem o swing do trópico. Não tem esse calor do território. Queria trazer essa identidade brasileira para dentro do piano. A utilização dos instrumentos foi extremamente importante para construir a narrativa sonora. Tudo começou com experimentação. Primeiro, coloquei objectos [dentro do piano]. Não queria fazer como o John Cage que colocou parafusos e porcas porque teria muitos problemas em actuar em alguns festivais do mundo. Não iam aceitar um parafuso dentro de um Steinway (ri-se). Então, pensei em trazer elementos que não estragassem o piano. Trouxe o e-Bow de guitarra, a mola da roupa, sementes amazónicas e fita. Cada um desses objectos traz uma sonoridade específica que às vezes lembra o sintetizador, um som industrial, um trovão ou um tambor. Há harmonia, há melodia, há experimentação e há novidade. Quis misturar o estudo da polirritmia e da isorritmia com a harmonia para chegar a um lugar de música e não apenas de experimentação.
Foi extremamente importante a troca com a comunidade Sateré Mawé para entender caminhos que pudessem homenagear a floresta, o rio e a natureza, mas que ao mesmo tempo criassem um diálogo entre povos.
Trazer o som da natureza para dentro do piano era essencial?
Sem dúvida. Essa construção de usar instrumentos que vêm da Amazónia foi justamente para criar um piano preparado mágico que afirma uma identidade brasileira. Sou muito grato por ter vivido uma temporada em Manaus e ter a oportunidade de trazer o som da natureza para o piano.
Teve o cuidado de lhe chamar troca em vez de apropriação.
Sim, quando abraço a experiência em Manaus. De forma muito cuidadosa, não queria que soasse a apropriação cultural. Foi extremamente importante a troca com a comunidade Sateré Mawé para entender caminhos que pudessem homenagear a floresta, o rio e a natureza, mas que ao mesmo tempo criassem um diálogo entre povos. O Mapinguari e a Uiara (as duas peças de abertura de Y Y) são alguns dos encantados. Seres míticos que cuidam da população e fazem parte da crença no imaginário das lendas brasileiras. Dessa forma, estaria a representar essas lendas. Tudo isso fez parte da construção do guião do disco. O Mapinguari é o encantado da mata que odeia caçadores - apanha-o e devora-o na floresta. Ele tem uma boca na barriga e um olho no rosto. Saímos da floresta e somos convidados pela Uiara, a sereia. Na língua do tupi, significa “mãe d’água”. A sereia canta com o som do e-Bow nas cordas do piano (reproduz o som). Ela convida a entrar dentro de água. Nunca vivi esta experiência mas há uma imagem muito bonita que é a de um submarino que quando chega a um certo nível de profundidade, deixa de ter contacto com a luz. Nesse momento, o submarino é desligado e ligado de novo. Os peixes reflectem a própria luz dentro do oceano. Parece uma constelação. De uma forma muito imagética e sonora, convido e apresento o poder e a beleza da floresta e dos rios, e ao mesmo tempo reflicto sobre a importância de parar o garimpo (exploração) ilegal da Amazónia e a importância de não matar a floresta nem poluir os rios. E pergunto: é para aqui que querem atirar plásticos?
O que o impressionou mais na Amazónia?
A Amazónia produz um fenómeno incrível que são os rios flutuantes. O Rio Amazonas despeja uma quantidade absurda de água nos oceanos todos os dias. A água gerada pelos rios flutuantes é muito maior do que a água despejada no mar. É uma neblina gigante por cima da floresta que faz chover no Rio de Janeiro, em São Paulo e Bela Horizonte. É fundamental para chover no Brasil. É importantíssima a preservação da Amazónia. Este disco é uma chamada de atenção para cuidarmos do nosso território, sabendo que o nosso planeta já vem a sofrer com a exploração desenfreada dos recursos naturais. A Terra já passou por várias fases. Ela sobreviverá mas, desta forma, estamos a provocar a nossa própria extinção. O convívio com a comunidade indígena fez-me sentir um extraterrestre na Terra. Criámos um modelo de vida social que nos afasta da natureza. Temos uma rotina de trabalho e deveres a cumprir que nos faz entrar num autocarro, num comboio, num trabalho ou numa casa. Perdemos o encantamento de olhar para as estrelas, sentir a floresta e tomar banho do rio. A expressão “beber água da fonte” é tão anormal hoje em dia. Comer o fruto do rio ou ver um homem a pescar para se alimentar. Mas sempre com a consciência que também é importante que os peixes sobrevivam em água pura. Quer no Y Y, quer nos outros discos, a vida sempre foi um grande influenciador. No Y Y, isso é muito potente. A experiência em Manaus era a peça que faltava para fixar a narrativa.
O regime de Jair Bolsonaro foi muito castigador com a Amazónia. O Y Y é também uma reacção política?
Sem dúvida. Foi desesperante viver no Brasil no período Bolsonaro em várias situaçōes: na pandemia, na atitude para com a Amazónia, no armamento e na divisão do povo. Não sou capaz de dizer que está tudo bem no governo Lula mas é extremamente radical a mudança em um ano. As pessoas relacionam-se de forma muito mais tranquila. O discurso de ódio diluiu-se. No entanto, os alimentos continuam a estar muito caros e a Amazónia continua a ter exploraçōes ilegais. Continua a haver problemas por resolver que vêm de governos anteriores mas podemos sentir uma leveza maior. O meu trabalho sempre foi acompanhado de uma veia política. No Y Y não é diferente. Os títulos dos meus três álbuns não vêm de uma herança colonizadora. Rasif é uma palavra árabe. Sankofa é africana e Y Y indígena. Queria dar nomes que não fossem em português, inglês, francês ou espanhol. Criar uma narrativa de território a partir de outras influências. O posicionamento político vem também da necessidade de descobrir o Brasil a partir do crivo de quem viveu a história. Quando era criança, todas as histórias sobre mulheres e homens negros, pessoas indígenas ou vindas de África, foram contadas por brancos, a partir de um crivo que não trazia auto-estima para pessoas pretas e indígenas no Brasil. Estes álbuns mostram a diversidade e a potência destes povos. Estou a tentar criar narrativas de um Brasil que não era conhecido por mim nem foi conhecido pela minha irmã. Por exemplo, quando homenageio Tereza de Benguela (no álbum Sankofa), a líder do quilombo, que quando lutava contra os bandeirantes apropriava-se das armas e transformava-as em panelas. Isso é muito simbólico, até se pensarmos no governo Bolsonaro, é tirar aquilo que mata para dar aquilo que alimenta.
Construir em vez de destruir.
Exactamente. Era o que o Wayne Shorter dizia sobre o Milton Nascimento: “uma das coisas que eu acho mais incrível nele é que fala de música e de outras coisas”. Ele não fala só de um amor passional. Fala sobre construir pontes e derrubar muros. Sobre o Brasil e o mundo, a partir de um outro ponto de vista. Acredito muito na música como lugar de cura e conexão. Como um pão que alimenta o espírito. Quando celebramos a música em palco, podemos esquecer todas as barreiras e conectar-nos com aquilo que é mais ancestral. A frequência tira todas as diferenças. Não importa se é um homem negro ou branco. Naquele momento, tudo isso desaparece. No final do espectáculo, várias pessoas vêm ter comigo a chorar ou para me abraçar. Isso fortalece-me e querer produzir ainda mais música. A música é o meu ritual, o palco é um local de conexão espiritual. É como se pudesse trazer o pôr-do-sol a uma pessoa que passou o dia todo a trabalhar e perdeu essa imagem.
Nós, seres humanos, queremos sempre mais. O capitalismo vigente faz-nos querer produzir mais. Talvez tenha cegado um tipo de condução humano que poderia continuar a explorar mas de forma muito mais equilibrada. Estamos distraídos com as tecnologias e com o entretenimento. Isso faz-nos não estar preocupados em resolver problemas que sabemos que vão acontecer.
O Y Y também afirma que somos natureza?
Sem dúvida, talvez tenhamos perdido essa conexão mas no momento em que nos reaproximamos, ela recebe-nos. Talvez a humanidade esteja à beira do abismo. Pode ser que perto do precipício encontremos soluçōes. Eu também me interrogo sobre isso: para onde estamos a ir? O que sabemos é que a natureza é hostil. Tem a tempestade e tem a bonança. Há um equilíbrio. Nós, seres humanos, queremos sempre mais. O capitalismo vigente faz-nos querer produzir mais. Talvez tenha cegado um tipo de condução humano que poderia continuar a explorar mas de forma muito mais equilibrada. Estamos distraídos com as tecnologias e com o entretenimento. Isso faz-nos não estar preocupados em resolver problemas que sabemos que vão acontecer. Há zonas que vão ficar inundadas, há países que vão ficar sem água e sem alimento. Como natureza que também somos, devíamos aprender mais com ela. Podemos explorar, podemos continuar com o progresso tecnológico mas criar estratégias equilibradas para que a vida não tire mais de um lugar para dar a outro.
Acredita que o futuro possa reinventar-se a partir da ancestralidade da natureza?
Acredito. Toda a gente deveria ter contacto com os povos ancestrais. Existe em todo o lado mas o Brasil é um dos países com maior concentração de povos ancestrais. Eles guardam histórias e lendas. O modo de vida é uma lição para todos os que contactam com eles. Infelizmente, não somos educados a partir dessa perspectiva e acabamos por viver numa ilusão porque entendemos o mundo a partir do agora. De morar num prédio. Mas isso é muito recente na história da humanidade. Os povos ancestrais têm uma sabedoria enorme sobre a vida. Krenak, um grande líder indígena brasileiro, já dizia: “no dia em que o mundo acabar, nós saberemos como viver. Vocês não”. Eles têm uma conexão com a natureza que nós não temos. Uma noção de mundo diferente. Estamos habituados a uma vida extraterrestre dentro da Terra. O Y Y é um disco que fala sobre a transformação de um piano em floresta, como se toda a floresta amazónica coubesse dentro do piano. E se um piano pode ser transformado em floresta, nós também podemos dar um passo atrás e conectar-nos.