O ano: 2007. O mês: janeiro. A cidade: Berlim. Não neva mas o frio racha. Duas radialistas, um jornalista e uma responsável da editora atravessam a Europa para conhecer a cantora de quem se fala: Amy Winehouse. O recado They tried to make me go to rehab/But I said: No, no, no já anda pelas bocas do mundo, com um misto de matreirice e insubmissão. A cama pop com padrōes de leopardo tecidos à mão com materiais de soul sedosa dos sessentas, é assinada pelo estilista Mark Ronson. Sem ele, o figurino seria outro mas essa é uma outra história dentro da história. Amy já é Winehouse e a iconoclastia está prestes a sagrar-se como primavera. É para isso que vamos à Alemanha: para desenhar a personagem transparecida nas cançōes.
Back To Black é um clássico instantâneo. É-o em 27 de outubro de 2006 quando sai no Reino Unido, em janeiro de 2007 quando a Universal o distribui mundo fora, em março de 2025 quando esta memória é descrita, como seria em 1966, algures entre as Shirelles, as Supremes, Roberta Flack, Nina Simone e Ella Fitzgerald. Em directo, diferido ou com efeitos retroactivos, Amy não devia nada às eternas, mas alguma imprensa portuguesa, paralisada na música de guitarras - o revivalismo pós-punk/new wave, a insurgência dos Arctic Monkeys como “primeira banda da Internet” e os novos ventos novaiorquinos -, desconfiou. A grandeza de Amy reduz este facto a um rodapé, como a história há-de sentenciar, porque Back To Black é como o algodão. Não engana, nunca falhou a ninguém. É tão cru e autobiográfico que não poderia ser mascarado nem no Carnaval.
Estamos em Berlim então para examinar um coração ao pé da boca. A imprensa ainda tem um papel essencial na percepção colectiva. As revistas inglesas já começaram a praticar o desporto favorito dos anos seguintes: dissecar Amy até ao osso. Literalmente. Nesta fase, ainda estamos como o psicanalista a olhar para o divã. Back To Black está prestes a entrar em choque com a terra. Traz paixão, amor carnal, sofrimento e auto-destruição. Amanhã será sempre longe demais para quem ama assim. O tempo demonstrá-lo-á demasiado depressa. Quatro anos e meio, entre o reconhecimento do magnetismo da personagem e o fim tragicamente anunciado. A trajectória do clube dos 27 é implacável: ascensōes rápidas como um fósforo, lumes instantâneos e explosōes bruscas. Haveria um guião alternativo? Amy foi a última heroína.
Agora, estou sentado na sala de uma conhecia cadeia hoteleira, numa paralela à Alexanderplatz, a aguardar pela minha vez na fila de entrevistas. Nossa, porque a Mónica Mendes da Antena 3 - provavelmente, a primeira comunicadora em Portugal a ver no inaugural Frank o potencial inesperado para a maioria desvelado por Back To Black - veste a mesma camisola. Alimentamo-nos a expectativa mutuamente enquanto aguardamos pela nossa vez. Já há Internet nos telemóveis mas usá-la ainda é uma excentricidade. O Google é um motor sentado de busca usado em computadores de torre. A informação disponível é mínima. Temo-nos um ao outro como fontes credíveis de curiosidade e interesse. A influência maternal da Motown? O papel condutor de Mark Ronson? A veracidade das letras? Back To Black será uma aliteração de Back To Blake? Aguardemos.
Já estou sentado com ela. Amy está toda embonecada de pin-up - como sempre, como dantes. O aquecimento central funciona. Na mesa de secretária do quarto, há um bule e bolinhos. Como boa inglesa, bebe um chá. Faço-lhe companhia. E conversamos sem pressa enquanto o tempo voa. Amy é simpática. Amy é distante. Amy sorri. Amy distancia-se. Amy responde. Amy hesita. Amy é afável. Amy é monossilábica. “É tudo muito espontâneo. Quando escrevo, não me preocupo com quem irá ouvir o que digo. Pode chegar a milhares de pessoas. Se digo algo, é por necessidade.” O recorte de jornal do Diário de Notícias não deixa mentir. Amy responde, mas não se revela. Não estou satisfeito. Provoco-a com o excesso. Rehab e a adição. Bem preparada, Amy defende-se. “Não estou viciada em álcool. Não escolhi o Rehab para primeiro single, foi a editora e, de facto, tem sido uma canção muito falada. Não tenho um problema com a bebida, simplesmente por vezes embebedo-me”. Quem nunca?
“Muitas vezes, estou frustrada por não ter uma guitarra perto de mim, mas se eu sou uma escritora de cançōes é normal que sinta necessidade de compor”, justifica-se. Os primeiros versos da dolorosa You Know I'm No Good tresandam a pecado. “Meet you downstairs in the bar and hurt/Your rolled up sleeves and your skull t-shirt/You say: What did you do with him today?/And sniffed me out like I was Tanqueray”. Amy persiste no modo de auto-defesa. “O álcool não influencia a minha escrita. Isso tem muito a ver com a minha própria pessoa e como não há uma dependência, o problema nem se coloca”. Ainda não sabemos o suficiente sobre ela para duvidar, mas as cançōes contam uma versão diferente que o definitivo Amy, apesar de desautorizado pela família, há-de testemunhar com provas oculares.
Recorte da revista Sexta do Diário de Notícias. A única entrevista publicada a Amy Winehouse na imprensa portuguesa
Uma infância feliz, uma adolescência turbulenta. Tal e qual Kurt Cobain - Amy e Montage of Heck parecem irmãos de pais diferentes quando se estreiam separados por poucos meses em 2014. Distúrbios psíquicos a descambar a casa dos vinte. Bebedeiras e outros abusos de férias nas Canárias. No documentário, Amy e as amigas são retratadas como bifas em Albufeira. Amy era uma inglesa como as outras mas tinha algo mais. Um je ne sais quoi com palato de Camden à prova de entrevistas e desconfortável com todo o circo de indústria montado à sua volta. Ela queria cantar a sua história, mas tal como Nina Simone, Ella Fitzgerald ou Amália Rodrigues, não se sentia confortável a contá-la. Guardava-a num cofre junto ao peito para não ter de a racionalizar e explicar.
Conversar até rima com entrevistar mas não é o mesmo que conhecer. Em quinze minutos de gravador ligado, a principal conclusão transcende as respostas. Ela não pertencia ali. Como se me dissesse: “queres conhecer-me? Ouve a música”. Bye Amy, it was a pleasure. See you later. Saí convicto de que nunca mais teria aquela frágil figura de sobrancelhas avançadas e peito saliente à minha frente. E de que sim, havia algo magnético nela que não se explicava. A potência emocional de um trovão. Uma voz indisfarçável como não se encontra na falsa cultura dos concursos. Sebentas de discos e cantoras digeridas em doses cavalares de sofrimento. Uma atracção colossal pelo abismo. E o produtor certo na hora certa a vestir as cançōes com roupagem à medida - por exemplo, a melodia de Ain’t No Mountain High Enough, de Marvin Gaye e Tammi Terrell, a empolgar o refrão de Tears Dry On Their Own.
Vemo-nos mais logo porque no final da maratona, Amy Winehouse terá direito à volta de consagração. O palco, a sua banda, as cançōes que por ela rogam. Na sala do Tempodrom, com características muito semelhantes ao antigo Paradise Garage, em Alcântara pouco mais de mil pessoas, entre imprensa de toda a Europa, convidados e vencedores de passatempos, acotovelam-se para A ver. E ali sim, o inferno funde-se com o paraíso. Amy inteira, sem deslizes, a ludibriar a miséria com prazer, uma banda irrepreensível, e um alimhamento de cançōes divinais. Tudo o que queríamos ouvir, com intermissōes de Doo Wop That Thing de Lauryn Hill, Fuck Me Pumps do primeiro álbum, Monkey Man de Toots & the Maytals e a inevitável Valerie. O melhor de todos os mundos, como não mais proporcionou depois do verão fatídico de 2007 quando caiu nas malhas da heroína por amor. E todo o mundo à volta se dissipou. Das rasteira do amor, nasceu o futuro glorioso de Back To Black, fatídico para Amy. Talvez o pressentisse quando todos lhe queriam um roubar um pedaço.
Já depois do concerto, desceu à festa privada para convidados. Cruzámo-nos na fila para pedir o bar. Sorriu, pediu um gin e desapareceu entre a algazarra.