Taylor Swift ocupa os 14 primeiros lugares do top americano de singles. Taylor Swift tem o álbum mais ouvido nas primeiras 24 horas. Taylor Swift tem a canção mais ouvida no dia de lançamento. The Tortured Poets Department conquistou mais de mil milhões de reproduções em apenas cinco dias, sendo o primeiro álbum da história do Spotify a atingir o recorde. The Tortured Poets Department também bateu recordes na Apple Music, tornando-se no álbum pop mais ouvido no dia de lançamento. Em apenas seis dias, The Tortured Poets Department tornou-se no álbum mais ouvido em apenas uma semana. The Tortured Poets Department bateu o recorde de vendas: foram vendidas mais dois milhões de cópias só nos Estados Unidos. Em números, The Tortured Poets Department já é o álbum da década.
Taylor Swift é omnipresente: pode influenciar as eleiçōes americanas, tal como Oprah foi instrumental para eleger Obama. Taylor Swift é ubíqua: estimula a economia americana, e a digressão a passar por Lisboa este mês é citada nas previsões de lucros de Wall Street. Taylor Swift é universal. A digressão é a primeira da história a superar os mil milhões de dólares (930 milhōes de euros). Mas há uma bipolaridade. The Tortured Poets Department tem 31 cançōes espartilhadas por 122 minutos, mas não se vislumbra justificação para tão longa-metragem. A crítica é unânime: Taylor Swift foi longe de mais no afã de chegar a Presidente dos Estados Unidos dos Afectos. Isto é a bolha dos comentadores, porque do outro lado há um continente tão grande de seguidores, que The Tortured Poets Department não precisa da rádio ou da televisão para doutrinar. Para esses, Taylor Swift é uma seita e o fanatismo é implacável.
As regras do jogo mudaram. Se a democracia está a perder o chão comum, como haveria a cultura popular de conservar o núcleo histórico quando as alteraçōes climáticas são tão profundas? O centro é ela mesmo e Neil Tennant não percebeu que no modelo actual da Liga dos Campeōes, tudo se joga no plano da comunicação. No tempo das West End Girls, a canção era a mensagem. Hoje, o meio é o veículo utilitário para chegar ao refrão emparelhado via Bluetooth. Basta ver por alguns fenómenos aparentemente inexplicáveis no TikTok. A aleatoriedade tem muito a ver com a capacidade com a capacidade de a música se adaptar à plataforma.
O Pet Shop Boy saltou para a lista negra dos acólitos de Taylor Swift. Não é exagero. Querem ver? A revista Paste foi obrigada a ocultar o nome do autor da crítica a The Tortured Poets Department devido a “ameaças de violência” por parte de fãs. Em 2019, quando a revista dissecou o álbum Lover, o autor foi verbalmente atacado pelos Swifties. “Preocupamo-nos mais com a segurança da nossa equipa do que em ter um nome associado a um artigo”, justifica a Paste. Na análise a The Tortured Poets Department, pontuado com a nota de 3,6/10, o crítico defende que Taylor Swift “não consegue não infantilizar as pessoas que compram a sua música” e argumenta que “a verdadeira tortura reside no facto de estas canções serem inabitáveis”, sentenciando a leitura com um desejo: Taylor Swift deveria “afastar-se durante sete anos”.
A música, convém recordar, estuda-se. Como qualquer outra disciplina, aliás: política, futebol, física, biologia, teologia ou gastronomia. A crença de que a música não pode ser escrutinada parte da premissa infantil, que tomou conta do espaço público, de que todas as relaçōes estão restritas à emoção. Como se êxtase ou decepção servissem de garrote à volta do pescoço e nos impedissem de reflectir sobre esses mesmos estados emocionais. Como todas os fenómenos de interpretação subjectiva, a música oferece-nos mais perguntas do que entrega respostas mas podemos ensaiar hipóteses, levantadas precisamente a partir da pesquisa e reflexão. Enquanto fenómeno universal, a música não se explica apenas por si mesma. Ajuda a compreender-nos individual e colectivamente. Sem esse debate, dificilmente teria havido evolução.
Está difícil sincronizar paixão e racionalidade com reciprocidade. No mundo tecnocrata, tudo é estratégia e cinismo. A paixão não tem assento nas reuniōes. No futebol, a obsessão estratégica castiga os criativos. Nas redes sociais, quase tudo é emocional e instintivo, como um disparo. A emoção pode ser um veículo do conhecimento mas, para isso, o tempo de atenção é necessário e o algoritmo, no seu hibrismo de vendedor de pacotes 5G com estafeta da Glovo, tem voz de robot a comandar o cérebro: Harder, Better, Faster, Stronger. Nesta lógica de descontextualização permanente e de erosão do tempo, em que a memória acaba quando começa, não espanta o acto de legítima defesa da Paste. Por muitas queixas que a revista ou o autor pudessem apresentar às autoridades, o mal já estava feito e o risco de escalar das ameaças para os actos era real.
Nós por cá como estamos? Mal. Uma semana menos um depois de o clube dos poetas torturados de Taylor Swift ter aberto portas, o dia mais bonito de abril acordou com A Madrugada Que eu Esperava, o álbum-irmão do musical homónimo estreado por Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco em fevereiro e apresentado em palco ao longo das últimas semanas (segundo a Ticketline, “Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco dão corpo a Olívia, uma das protagonistas deste enredo romântico, alternando o papel com o de Clara, sua irmã. Desta forma, a actriz que interpreta Olívia mudará de dia para dia, sendo umas vezes Carolina Deslandes e outras Bárbara Tinoco”). Pela relevância de ambos na vida pública, seria de esperar que o álbum suscitasse interesse crítico. Ambas estão entre as mais ouvidas em Portugal. Têm antena televisiva e radiofónica, e o algoritmo ao dispor. Só no Instagram, Deslandes tem um milhão de seguidores - mais que toda a cidade de Lisboa (sem as periferias). Fora as outras redes e plataformas de streaming.
Saíram reportagens e notícias mas resenhas nem uma. Porquê quando a batata é tão quente? É incomum assistir-se a figuras com esta transversalidade pop aproximarem-se de temas politizados. Será esse o problema e a opinião dita livre terá medo de expressar o que pensa? Respondo por mim. Ouvi A Madrugada Que eu Esperava com a mesma atenção e concentração prestada a álbuns recentes de Ana Lua Caiano, Emmy Curl, Evaya, Mazarin, Aldina Duarte, Tiago Sousa, Mura e Stereossauro, Benjamim, Capitão Fausto e Branko, só para citar os primeiros ocorridos. Se a ideia era celebrar a liberdade e abril enquanto mês perdurante, A Madrugada Que eu Esperava faz efeito-ricochete. As cançōes são rígidas e obedientes a fórmulas radiofónicas. As letras algo infantilizadas. A Madrugada Que eu Esperava é um acto de liberdade, que pode ter o efeito benigno de sensibilizar plateias gerais, mas falta-lhe risco e coragem para capitanear as tropas.
Deslandes e Tinoco têm a mesma legitimidade para fazer da Revolução um musical como Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho ou Jorge Palma têm propriedade para participar nos papéis-intervenientes deles mesmos. A questão é se terão independência para objectar à ditadura do mediatismo. A Madrugada Que eu Esperava parece cair na tentação de objectificar o 25 de abril e representá-lo como uma revolução indolor mas anos de estudo dão-me apenas a segurança da minha opinião. Respondo só por mim, sem absolutismos, e gostaria de ter acesso a outras visões, para ter a hipótese de comparar a minha. Numa sociedade madura e evoluída, assuntos relevantes como este discutem-se sem paternalismos. Como se vê, o problema é de comunicação e global. E extravasa os limites de uma indústria musical que só lida bem com a crítica quando esta a favorece.
Uma entrevistada recente questionava-me porque razão a crítica, ou o que resta dela, só aborda álbuns de “artistas B” (palavras da própria), argumentando que “os artistas A” precisam de ser questionados para poderem evoluir e usar o poder de atracção sobre o público para conduzir gostos massificados - a diferença entre líder e seguidor. O tema é complexo mas a resposta é simples. Os jornalistas são mal-pagos e têm medo que as suas opiniões possam ter consequências sobre a profissão. Os comunicadores digitais estão demasiado reféns do algoritmo e têm receio de estar no centro de uma guerra de seguidores. E alguns “líderes de opinião” preferem fingir-se de mortos, demitem-se de usar o seu conhecimento, para não fechar outras janelas de oportunidade. Qualquer que seja a resposta, a liberdade de expressão não está a passar por aqui. Não foi para isto que se fez abril.