No final de um concerto arrepiante d’A Garota Não no Teatro Joaquim Benite, em Almada, um amigo explicava com convicção militar o maravilhamento: “para mim, isto é a definição de esquerda”. Como a nossa amizade é um eterno debate de opiniōes, em que vence sempre o afecto, respondi-lhe: “para mim, é a definição de honestidade”. Porque apesar da convicção de esquerda aguerrida, como José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho, os ideais servem uma grandeza musical e humana que fazem de discursos como o dos Globos de Ouro um rio com princípios sem fim. Das cançōes de A Garota Não vê-se o peito de Cátia Mazari Oliveira, e isso é maior que partidos e ideologias.
Para quem a segue, e a outras figuras inteligentes e lúcidas, das artes ao jornalismo e à política, o poema-Kombucha de domingo é tão natural como a sede de abrir a torneira e deixar sair as palavras de um jorro, mas foi o bastante para provocar um abril em outubro. O ritual do habitual foi quebrado e os Globos de Ouro furaram a irrelevância dos prémios do meio artístico português. O inesperado discurso de uma improvável vencedora foi lido num canal concorrente do Big Brother ao domingo à noite, pertencente a um grupo de comunicação cada vez mais ultra nas opçōes de direita. Que mulher é essa? É a escritora de cançōes que faltava a uma esquerda descrente e orfã de novas referências desde as perdas de José Afonso, em 87, e de José Mário Branco, em 2019, cativa do elixir da eterna juventude de Sérgio Godinho. Esta música era precisa e muita gente precisava desta música.
A Garota Não escolheu as palavras e tom certos mas a notícia é o onde: num espaço mediático habitualmente vedado à franqueza das leituras e à crueza dos factos. Em cerimónias como a dos Globos de Ouro, as feridas são disfarçadas com base para tudo parecer belo e aparente mas, como fez de questão de nos reavivar “vivemos no tempo das flores de plástico”. Bonitas por fora, artificiais no toque, estéreis na reprodução.
O efeito-dominó foi imediato. De domingo para segunda, tinha-se amplificado pelas redes sociais, e escalado pelas rádios, jornais, sites e noticiários. O ponto quente dos Globos de Ouro não foi o vestido de uma influenciadora, a queda de um apresentador, ou o anúncio da gravidez de uma boneca. Foi o rasgo de lucidez de uma escritora independente de cançōes, que na semana anterior havia estreado um “vídeo” sobre os 422 milhōes de lucro anual da GALP. A mesma que há alguns meses fora ostracizada no teatro de marionetas dos Play e, em reacção, escreveu um manifesto por si e por quem está fora do jogo.
Só que na guerra das audiências, e antes de qualquer outra é essa a primeira trincheira da SIC, até o grito doce de uma sadina tão grande na sua falibilidade tem cabimento na contestação. Não é por acaso que dias antes, milhares de portugueses saíam de casa, a um sábado de manga curta, para se manifestar pelo direito à habitação, enquanto seis activistas portugueses, entre os 11 e os 24 anos, levaram 32 países europeus a tribunal por falharem nas respostas à catástrofe climática - um outro grupo não se esteve nas tintas e pintou o ministro de verde.
Podemos discutir a justeza dos actos destes últimos mas não os sintomas. A impotência perante a subida das taxas de juro (“saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação”), ou perante a extrema poluição causada por cruzeiros e jactos privados, são só sinais de fadiga de um modelo gasto e inimigo das pessoas. Por inércia e impotência, ainda não se achou um melhor, mas tal como no discurso d’A Garota Não, ou como na iniciativa dos activistas, há uma réstia de esperança que nos faz querer e crer na mudança. E essa coisa é que é linda.