Esta crónica ia ser sobre a ausência de futuros tangíveis na música actual. Ele há-de existir algures e nunca irá perecer. Não é uma questão de fé, é apenas o reconhecimento factual de que historicamente, todos os ciclos, mesmo os mais estrangulantes, são seguidos por contraciclos. Porém, neste momento não se vislumbram nomes ou correntes com o potencial transformador de David Bowie, Kraftwerk, Can, Neu, Michael Jackson, Prince, Cybotron, Joy Division, New Order, Pop Dell’Arte, Public Enemy, A Tribe Called Quest, Aphex Twin, Daft Punk, M.I.A., Kanye West, The Streets, LCD Soundsystem, Buraka Som Sistema, Burial, Kendrick Lamar ou James Blake, entre tantos outros, no passado premente. É ingrato e injusto observar apenas o efeito. Há razōes para este impasse. A voracidade do capitalismo roubou todo e qualquer projecto político de futuro viável e pacificado porque, como se sabe, o devir leva a tempo a ser testado e aperfeiçado. E sem massa crítica como a do jornalismo, dificilmente se cimenta. Em alternativa, ofereceu-nos a tirania do algoritmo a vilipendiar o tempo e a espera. O imediato é inimigo da tentativa e erro. Nunca se produziu tanta música, nunca tanta música soou tão pré-fabricada, normalizada e decalcada de fórmulas químicas. (Esse texto está em rascunho e acabará por sair. Na verdade, relaciona-se em pleno com a escalada dos últimos dias)
Depois, a agenda interrompeu a emissão. Disparos, gritos, chamas, acusaçōes, justificaçōes. Mas antes do assassinato de Odair Moniz na Cova da Moura, um outro acontecimento de enorme gravidade deu que falar, pelo menos abaixo da superfície. A produtora Terra Treme tinha marcado a festa gratuita Noite em Branco, com o sedutor chamamento “Tudo Pode Acontecer”, na associação cultural Planeta Manas, no Prior Velho, perto do aeroporto, para o produtor e sócio Tiago Hespanha poder filmar um documentário sobre a Noite. Lian:e, Bleid e Phoebe eram os DJ. A artista Tita Maravilha ia apresentar a performance Puta Híbrida. Tudo feito às claras com direito a duas bebidas para os 200 mais rápidos a chegar. Era tão bom mas não chegou a ser.
Nas redes sociais, a produtora relata uma rusga da PSP. “Entraram à força na nossa sede associativa dezenas de agentes duma equipa de intervenção rápida, armados e encapuçados, alegando tratar-se duma inspeção de rotina”, pode ler-se em comunicado. “Sem notificação formal, fizeram buscas e revistaram coercivamente todas as pessoas presentes, impediram a festa de continuar e ordenaram a saída das pessoas associadas, sem motivo válido que o justificasse.” Para se ter ideia do pânico gerado, “durante duas horas, as pessoas foram impedidas de entrar ou sair”. O acto “impediu as filmagens [de] uma instituição cultural apoiada por fundos públicos” do Ministério da Educação e da Direção-Geral das Artes. Ao Público, a PSP justifica com uma “fiscalização planeada” a dois estabelecimentos. A Terra Treme garante não ter havido mandato para a “inspecção de rotina”.
A Terra Treme condena o “comportamento repressivo por parte das forças de segurança”, classificado de “inaceitável” e de “ataque direto à liberdade de expressão artística” pela qual luta “todos os dias.” Ao Público, Tiago Hespanha acrescentou “que a motivação por detrás da intervenção policial na festa não era de ordem criminal” e apresentou três justificações durante a rusga: "condições para estar aberto, consumo de estupefacientes e o possível “motivo moral”, dado que o agente perguntou ao produtor se “gostava de ter um filho neste ambiente”. Outro agente terá acusado o Planeta Manas de ser uma fachada para “outros negócios”. Foram apreendidas drogas, mas alguém imagina a festa do Festival de Tribeca ser interrompida pelos mesmos motivos? Ou os afters dos Globos de Ouro?
Repressão policial/Terrorismo oficial, in Alerta Geral dos Peste & Sida (1989)
Lembrei-me do tiroteio à queima-roupa da PSP no bloqueio da Ponte 25 de abril, a 25 de junho de 1994, que atirou para uma cadeira de rodas o jovem Luís Miguel Figueiredo, então com 18 anos. Do Alerta Geral dos Peste & Sida nos primeiros segundos do clássico Portem-se Bem como botão de alarme do endurecimento das autoridades durante o cavaquismo. E do concerto pelo movimento Tropa Não em 1989, organizado pelo PSR, que já na década de 80 fazia do combate ao racismo uma causa, invadido violentamente por militantes neonazis que acabariam por esfaquear mortalmente o militante José Carvalho. O assassinato deste, também ele muito querido no partido, e a invasão à sede, ainda hoje com a mesma morada da Rua da Palma, parecem uma justaposição dos acontecimentos dos últimos dias.
Então como agora, há uma violência a bater na invisibilidade. E uma guerra declarada à diferença comandada pelo capitalismo. Porque antes destes problemas serem raciais ou de identidade de género, são socioeconómicos e é na questão de classe que os devemos situar. Até para contrariar a fragmentação das lutas e a individualização das causas, quando elas estão todas entreligadas como as raízes das árvores. Sem surpresa, tanto o Primeiro Ministro como o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa defendem uma polícia mais autoritária e musculada. Todas as experiências demonstram que quanto mais bruta é a acção, mais violenta é a reacção.
Não tenhamos dúvidas que o chicote vai estalar. O clima de medo vai crescer. Nada se vai resolver estruturalmente. O ataque aos mais fragilizados e às minorias sociais continua dentro de momentos. Não começou este fim de semana nem é um exclusivo das políticas de direita. Talvez em momentos como o actual, se sinta mais uma dureza que começa na linguagem. O objectivo é muito claro: remover os obstáculos para que o capitalismo continue a sua marcha triunfal, distractiva e neutralizadora da resistência. Mas tal como o absolutismo dos reis e das monarquias, o poder inescapável do capitalismo pode ser perfurado, defendia a autora Ursula K Le Gun. “A resistência e a mudança começam muitas vezes na arte”. Talvez essa verdade tantas vezes provada se possa reacender no fogo. E responder à pergunta existencial do início do texto.