Tudo começa pelos afectos. Pela reciprocidade humana que há em partilhar frequências musicais. À boa maneira da história das editoras independentes, na base da Discos Extendes há uma micro-comunidade. A música funciona como causa e consequência, como álbum de família em que cada edição aflui de um rio maior.
É aí que encontramos o recém-editado Eu Adoro os Meus Amigos, assinado pelo timoneiro Diogo. O justo reconhecimento da afinidade como argamassa das relaçōes, mas também da necessária gestão de expectativas de uma pequena editora, do difícil equilíbrio entre investimento e retorno - e não só financeiro -, e também de uma informalidade bem humorada. “Levar esta coisa da música com uma certa descontração e boa disposição, sem nos levarmos demasiado a sério”, assume sem comichão.
“É música de dança, bem simples”, relata, com “baixos lá para cima”, ou seja descer ao mais alto nível, vozes doces a convidar para zonas de risco, muita adrenalina e teste à reacção física. Puxar o fio de Eu Adoro os Meus Amigos é examinar com bisturi a identidade da Extendes (remistura da original Extended Records), incansável chancela editorial, indispensável da produção electrónica portuguesa da última década.
O ano tem sido produtivo com discos de Aheloy!, Phoebe, Bleid, Serpente/CZN e do próprio Diogo, a termo individual e com Swilaw, mas a torneira ainda não se fechou. E o próximo ano já está cheio de notas no calendário.
Chamar Eu Adoro os Meus Amigos ao teu EP remete para uma ideia de afecto e cumplicidade. É um disco que fala por ti e pelos teus?
Vou-te ser sincero, inicialmente quando fiz estes temas, não tinham nenhum tipo de conceito em mente. Queria fazer uns temas simples com uma certa estética definida, mas não havia propriamente nenhum tipo de construção em torno deste temas. É música de dança, bem simples. Baixos lá para cima e programação de baterias, essencialmente. Foi só depois dos temas estarem feitos, e de os ouvir ao longo do tempo, que o nome surgiu. E essencialmente por sugestão do Jomi (tcp Conhecido João e Director Gráfico da editora). Ele sai-se sempre com bons nomes! Há nesses temas uma certa dinâmica entre um tom celebratório e uma vibe meia combativa e algo agressiva. E daí criar essa narrativa sobre a habilidade necessária para gerir as amizades ao longo do tempo...Principalmente quando as nossas vidas adultas se vão desenvolvendo de forma independente, e todos nós vamos crescendo em direções diferentes. As prioridades mudam, algumas frustrações acumulam-se...é preciso saber gerir. Portanto é um disco que reflete esse processo, e sim tem muito de afecto e cumplicidade. No geral acho que se pode falar de uma entrega. Como a que se faz na pista de dança.
Essa familiaridade pode remeter para uma ideia de festa caseira e não apenas de clube. Jantaradas que se prolongaram até de manhã propiciaram este EP?
Poderia ter sido. Mas na verdade essas jantaradas são cada vez menos frequentes. Agora os jantares acabam pela meia noite, uma da manhã, que um gajo preza muito o seu descanso. Mesmo sair à noite até tarde é muito menos frequente. Um gajo já tem que escolher bem as suas batalhas…
No texto de apresentação, escreve-se que o EP "é mais sobre a música e menos sobre as palavras". O sentido de humor dos títulos tem alguma intenção? Transmitir informalidade? Rir e dançar são estados semelhantes?
Acho que o André Florêncio (que assina o texto) escreveu que é mais sobre música, porque nos próprios temas os vocais são usamos mais de uma forma rítmica do que para traduzir uma mensagem. Até porque os títulos dos temas não têm uma ligação directa com os samples de voz. Podem haver algumas aproximações, mas não são imediatas. Por exemplo no tema Dar ao Slide, que era uma expressão que usávamos no meu grupo de amigos da faculdade para dizer que íamos abalar, os vocais remetem para uma ideia de deslocação também...Take Me Away…Para onde, não sabemos, mas há um desejo de deslocação. É uma questão de afinidades, eu acho. E sim, há uma informalidade que é comum à linguagem entre amigos, não é? Então os títulos refletem isso também. Quantas vezes terminamos um assunto com "oh pá, caga!". Sobre rir e dançar nunca pensei, mas agora que perguntas, talvez haja uma certa espontaneidade que é comum aos dois, mas não sei se isso nos leva a algum lado...
Como também se pode ler no texto, é redutor tratar o Eu Adoro os Meus Amigos apenas pela amizade. A profundidade destas faixas exprime a identidade da Extendes, pelo menos a actual?
Sim, de certo modo. Pelo menos desde que comecei a assumir a direção da editora, temos privilegiado coisas mais bassy, com breaks à mistura...Também porque essas são as coisas que nos interessam tocar. E se é aí que está o nosso interesse, só pode ser natural que as escolhas da editora reflitam isso mesmo.
É justo dizer que gostas de conciliar o familiar com o desconhecido e essa é uma das marcas da editora?
Sim. Apesar de tudo, e para mim, a música de dança é feita para um contexto celebratório e implica um certo abandono. Daí que eu ache interessante que haja sempre uma certa familiaridade das formas. Eu gosto de usar vocais soulful, mesmo que já os tenhas ouvido somewhere else, porque acho que se as pessoas reconhecerem um sample qualquer, isso acaba por criar nelas um clique com o qual elas se identificam. E isso é fixe! Cria imediatamente uma resposta emocional. Agora também há que ter cuidado e não nos podemos deixar cair na armadilha do saudosismo nostálgico e da eterna rememoração...Há muito essa tendência de agrilhoar o presente ao passado, nos dias de hoje. Tu vês isso com a marketização de prequelas e sequelas no cinema por exemplo, e dos constantes remakes em live action e etc... Parece que de há uns anos para cá ficamos sem ideias, e que a única solução é repetir. Isto deve-se em parte ao aparato de captura do capitalismo, que procura vender-nos produtos, e a nossa compra torna-se sempre mais fácil se reconhecermos algo e se já tivermos com o produto uma relação emocional. Vender algo novo e desconhecido é sempre mais difícil. Mas se olharmos para a história da música de dança, ela sempre foi muito progressista... Sempre esteve na ponta da lança da vanguarda, quer falemos nos meios tecnológicos que utiliza na sua produção, como nas diferentes estéticas que dela saem, não? Então eu acredito que é preciso manter uma certa postura de desafio para manter as coisas interessantes... Mas na verdade, e apesar de achar que esse equilíbrio entre o familiar e o desconhecido são marcas da editora, acho que a sua principal característica é mesmo preservar uma certa informalidade. Levar esta coisa da música com uma certa descontração e boa disposição, sem nos levarmos demasiado a sério. Ainda que por vezes seja difícil...
Eu gosto de usar vocais soulful, mesmo que já os tenhas ouvido somewhere else, porque acho que se as pessoas reconhecerem um sample qualquer, isso acaba por criar nelas um clique com o qual elas se identificam. E isso é fixe! Cria imediatamente uma resposta emocional.
Há algum fio condutor nas escolhas editoriais ao longo dos anos?
Médio. Nós gostamos de editar coisas diferentes, mas há uma certa predileção por coisas mais bassy e com uma vibe meia inusitada. Mas até agora o que foi ditando as nossas escolhas foram mais os afectos. Gostamos de editar coisas de pessoas que estão à nossa volta e que fazem coisas interessantes, e que nós gostávamos de ver reconhecidas. O lugar de uma editora também é esse, o que criar um espaço de visibilidade, para algumas coisas que de outro modo estariam mais escondidas. O que não nos impede de, caso recebamos umas demos incríveis de alguém com quem nunca falamos, saltar logo para a edição. Isso aconteceu com a tape do aheloy! por exemplo. Mas sim, creio que há um fio condutor que é ditado pelos nossos gostos pessoais, e hoje em dia mais meus e do Jomi, mas os nossos gostos são abrangentes e podem ir do jungle ao funk brasileiro...
Tens alguém com quem dividir tarefas ou ajudar-te?
Sim. A editora continua a ser gerida por nós os quatro. Eu, o João, o Gonçalo e o Sebastião. Se bem que nos dias de hoje muito do trabalho recai sobre mim. O João continua a ser o director gráfico e a tratar de tudo o que é grafismo e design da editora, enquanto que o Gonçalo e o Sebastião ajudam mais nas tomadas de decisão e no planeamento estratégico a longo/médio prazo, ajudando também o Gonçalo com questões que tenham a ver com bookings e festas e tal. Mas tudo o resto sou mais eu. Se bem que agora estamos a pensar deixar sangue novo entrar nesta editora, até porque nos precisamos de renovar um pouco. Está a chegar aquela idade...
Consideras-te um idiossincrata, no sentido em que além de fazeres e editares a música, também a pensas? Esse papel, apesar de essencial, tem vindo a ser desvalorizado?
Não sei. Nunca pensei sobre isso. Acho que todos nós temos uma forma pessoal de nos posicionarmos nesta indústria e comunidade. E faz com que todos nós sejamos idiossincráticos a um certo nível, não? Em relação a essa questão de pensar a música... Sim, é algo que gosto de fazer. Mas eu gosto de pensar sobre tudo o que faço. O que não quer dizer que seja um overthinker ou calculista. De todo. Sou até muito impulsivo e espontâneo...Mas gosto de pensar na relevância das coisas com que me comprometo e de pensar de que modo elas podem ser mais ou menos consequentes. Mas não acho que toda a gente tenha que o fazer. Também é bom poder ser livre desse constrangimento...Agora se me perguntas se acho que é importante que alguém o faça, sim acho. Mas vale tanto para a música como para qualquer outro objecto cultural.
Concordas que cada vez mais a música é reduzida à sua dimensão emocional, e que mesmo na electrónica, historicamente um bastião de pensamento avançado e futurismo, a prática e o sensorialismo hoje são muito mais valorizadas do que a inteligência?
Não sei. Eu não gosto muito desse tipo de generalizações. Não sei se é hoje mais assim do que no passado. Seguramente que consegues encontrar exemplos de explorações muito mais imediatas e emocionais no passado, assim como hoje consegues encontrar outro tipo de narrativas. Essa questão do cancelamento do futuro é um tanto ou quanto comum no pensamento de uma esquerda depressiva (e com a qual também eu me identifico de certo modo), que se personifica nas questões levantadas pelo Mark Fisher ou pelo Bifo Berardi. OK. É uma narrativa possível, anti-capitalista, mas é possível chegar a conclusões parecidas (e menos depressivas) se pensares na profusão do pluralismo estético, após o dito fim da estética e da morte das vanguardas. Hoje em dia, tudo está à nossa disposição e tudo pode ser reciclado. Podes fazer música à la Motown como as produções do Mike Ronson, como podes explodir a música de club ou o pop como fez a Sophie ou a Loraine James. Eu acho que é perigoso generalizar desse modo e dizer que hoje é mais assim que assado. Hoje pode-se tudo, e de tudo encontrarás um pouco. Agora a oferta é agora muito maior, e com a possibilidade de editares de forma independente, directamente para a internet, expondo-te a milhares de pessoas ao mesmo tempo, perde-se a ideia de narrativa histórica que as editoras podiam em tempos ter conservado. É uma questão de procurares o que te interessa e de saberes selecionar dentro desse mar de edições. E talvez por isso o papel da crítica seja hoje mais importante que nunca.
Tiveste a ousadia de publicar uma revista chamada precisamente Pista. Com que intençōes e que balanço fazes?
A principal intenção era documentar. Acompanhar. Olhar para as coisas que estavam a acontecer e arquivar. Ter um objeto físico que arquiva uma série de coisas que nos pareciam interessantes e relevantes. Essencialmente para que este período não seja esquecido no futuro. E ao mesmo tempo pensar sobre elas. Pensar sobre qual a sua relevância, o que é que determinada abordagem pode querer dizer culturalmente. O que é que ataca, o que é que questiona, o que propõe...Essencialmente era isso. Abrandar, parar para pensar e escrever. Na música de dança em particular, mas na vida em geral também, existe cada vez mais uma tendência para a aceleração. Os estilos multiplicam-se, surgem novas propostas, produtores, editoras a todo o momento. O que é fixe hoje, amanhã deixa de ser. Então a ideia aqui era desacelerar e parar para pensar um pouco. Agora o balanço que faço? É que é uma canseira! É um esforço muito grande. São muitas horas a pensar, a escrever, a entrevistar, a transcrever, a editar, a montar...E depois sem grandes recursos e sem equipa é muito difícil fazê-lo. A ideia era fofa, mas acabou por tornar-se insustentável. Pelo menos, nós não conseguimos que se tornasse sustentável, e as pessoas foram perdendo a motivação gradualmente.
A ideia aqui era desacelerar e parar para pensar um pouco. Agora o balanço que faço? É que é uma canseira! É um esforço muito grande. São muitas horas a pensar, a escrever, a entrevistar, a transcrever, a editar, a montar...E depois sem grandes recursos e sem equipa é muito difícil fazê-lo. A ideia era fofa, mas acabou por tornar-se insustentável.
Estar à frente de uma editora pequena tem mais dias de prazer por se fazer aquilo que se gosta como se quer, ou de frustração quando não se consegue sair do quadrado?
Pffff! Essa é facil... de frustração. Mas mil vezes. É muito muito trabalho, para muito pouco retorno. São muitas horas investidas e passadas ao computador, e com os anos as frustrações vão-se acumulando. É claro que é fixe, quando às vezes deixam cair uma migalhinha e tu vês todo o teu esforço recompensado. Mas esses momentos são em muito menor proporção. Todos os anos fazemos um balanço e falamos na possibilidade de enterrar a editora. Vamos crescendo, as nossas prioridades mudam, e nem sempre é fácil conciliar tudo isto com o resto das nossas vidas. E no entanto aqui continuamos, e com um plano muito ambicioso para 2025. Mas acho que o futuro também passa por saber gerir um bocado melhor as nossas expectativas. No passado, todos achávamos que bastava querer muito, e que todos iríamos viver da música. E com o passar do tempo percebemos que não é bem assim. Por muito que tu queiras e que te esforces, a verdade é que 95% das pessoas não vão ter as oportunidades de que precisariam para vingar. E está tudo bem. Não vamos ser mega-estrelas e fazer tours de DJ por todo o mundo, mas podemos continuar a editar música que consideramos relevante e a promover esse espaço de visibilidade para os artistas nos quais acreditamos. E isso em si já deve ser motivo de orgulho. Acho que temos que olhar de maneira diferente para como encaramos a ideia de sucesso. Isso vai ajudar a minimizar as expectativas e tirar mais prazer do que fazemos. Pelo menos, assim o espero.
No passado, todos achávamos que bastava querer muito, e que todos iríamos viver da música. E com o passar do tempo percebemos que não é bem assim. Por muito que tu queiras e que te esforces, a verdade é que 95% das pessoas não vão ter as oportunidades de que precisariam para vingar. E está tudo bem. Não vamos ser mega-estrelas e fazer tours de DJ por todo o mundo, mas podemos continuar a editar música que consideramos relevante e a promover esse espaço de visibilidade para os artistas nos quais acreditamos. E isso em si já deve ser motivo de orgulho.
Que ediçōes e acçōes se seguem na Extendes?
Olha, posso já aqui revelar que até ao final do ano vamos ter uma última edição de um artista que se estreia na Extended Records! Será um disco do artista nascido em Angola e radicado em Lisboa, o Fabz! Trata-se de um single com dois temas originais e duas remisturas, sendo um dos originais feito com uma vocalista incrível, a The F Libra, que eu acho ter alto potencial pop! Já para 2025 temos um calendário de edições ambicioso e do qual não tenho a certeza de que sejamos capazes de cumprir na totatildade. Vai ser necessária muita organização! São cerca de dez edições entre artistas nacionais e internacionais de várias proveniências. Sentimos que é necessário que a editora reflita uma pouco mais de diversidade. Há poucas mulheres e outras identidades de género no nosso catálogo, bem com pessoas BIPOC, e estamos a fazer um esforço para encontrar essa representatividade, dentro da onda musical que nos interessa difundir e promover. Também queremos tentar esticar a equipa e trazer sangue novo para nós podermos renovar um pouco e aproximarmo-nos de novos públicos. Em parte é já isso que temos tentado fazer com a curadoria das nossas extended mix, mas queremos alargar isso a equipa e as edições. Também há sempre a ambição de começar a esticar os nossos braços para a Europa, mas sem nunca criar grande expectativas, uma vez que o mais provável é que isso não aconteça…E há sempre a mítica segunda edição do nosso livro de receitas. É algo que queremos muito fazer mas a vida insiste em intrometer-se no meio.