Muitas das programaçōes, actividades e reflexōes sobre o 25 de abril olha para a Revolução como uma memória e não como um activo. Compreende-se que assim seja. A ameaça a conquistas fundamentais como a liberdade e a democracia forçam a retrospecção para se compreender a importância da conquista. Esta reminiscência tem, pelo menos, a virtude de relembrar que abril acontece todos os anos e que a democracia precisa de ser regada, faça chuva ou sol. O que era chão firme e inabalável num passado recente, já esteve mais longe de ser a beira de um precipício.
A liberdade está ameaçada e o risco de a perder é real, se os extremismos continuarem a avançar em bloco (no mundo e não só em Portugal), mas a altura da queda deve despertar-nos para a grandeza da conquista de todos os que perderam a vida ou a empenharam em nome da liberdade. O heroísmo desse feito não teria sido possível sem utopias. Sem esse carvão, a ilusão de transformar a realidade e derrotar o fascismo teria perdido força humana. Revoluçōes como o 25 de abril partiram da resistência às adversidades. Lidar com as contrariedades e enfrentar os problemas, em vez de os camuflar, é fulcral para se poder avançar.
Por isso, a rememoração é importante para expor o contraste entre liberdade e mordaça mas não chega. Proclama-se “fascismo nunca mais”, mas o que motiva essa idealização do passado fantasmagórico? Para continuar a cumprir abril, é necessário dissecar os motivos do retrocesso civilizacional dos últimos anos, esperança e sonho para o combater. Como escrevia o sociólogo António Brito Guterres numa das suas recomendáveis crónicas no Diário de Notícias, “uma revolução não se fez, faz-se, é um estado permanente”.
Não é por acaso que a senha da Revolução foi uma canção - E Depois do Adeus de Paulo de Carvalho - antes de chegarem de Grândola os versos que a deflagraram. A música desempenhou um papel primordial no 25 de abril, e ao longo destes 50 anos não só narrou um país em transformação como fez parte dessa reformulação e das tensōes naturais da mudança, mas o seu esvaziamento de preocupaçōes sociais e intençōes políticas, palpável em alguns períodos, é um sintoma da acomodação causada pela sua captura pelos poderes e do divórcio com um papel primordial de contra-cultura. Na festa da democracia, importa também distinguir os gestos altruístas da canibalização do 25 de abril enquanto instrumento de marketing. Já se percebeu que o combate vende.
Como defendia JP Simōes em entrevista à Mesa de Mistura, sobre o corpo de trabalho de José Mário Branco escolhido para o seu álbum de interpretaçōes, “a força das cançōes ultrapassa as circunstâncias. Tem posiçōes fortes sobre coisas muito importantes para a nossa vida como paixão, respeito mútuo, paz, pão e habitação. É sempre uma fiel balança das variaçōes políticas, opressōes e injustiças. Por isso, é sempre bem-vinda”. O reencontro com o cancioneiro, quer de José Mário Branco, quer de José Afonso, é benéfico e transcende circunstâncias temporais ou flutuaçōes políticas, mas é importante não olhar para ambos apenas pelo seu papel utilitário ou circunscrito no tempo.
Nos últimos anos, diversas vozes devolveram os conflitos sociopolíticos ao espaço criativo, agregando em bloco o que vinham sendo actos isolados e esporádicos, não só seguindo as transformaçōes sociais como participando na metamorfose. Problema: a música de hoje ocupa muito espaço afectivo e estético mas tem pouco peso ideológico. Perdeu-se esse hábito cultural que não pode ser dissociado dos anos referidos de captura, com naturais e honrosas excepçōes, e que deixaram um rasto de alheamento e desinteresse colectivo.
O drama não está na provocação de emoçōes mas em perceber se um impacto restrito ao campo dos afectos é suficiente. Não é fácil seduzir as pessoas para esta reflexão quando quase tudo nas redes sociais se joga no campo emocional e o conhecimento é canibalizado pelas lógicas imediatistas do algoritmo, mas talvez isso nos ajude a reflectir por que motivo as mensagens transmitidas pela música têm tanto impacto popular mas parecem estar em contraciclo face às escolhas políticas das sociedades ocidentais ou numa bolha de alienaçåo. Há uma grande diferença entre ouvir e escutar. Arte e revolução são irmãs, mas essa potência só é exercida se for preservada. E explicada.
Do que se está a falar neste 25 de abril, simbólico pela comemoração dos 50 anos, e particular pelo contexto delicado, é de uma devolução, nostálgica e contemplativa. Do que precisamos é de uma construção activa e participativa. A memória como tijolo de um muro em construção e não só como um bloco monolítico. Invocar José Afonso, José Mário Branco e Sérgio Godinho não é apenas reconhecer a importância histórica e a influência estética. São modelos de ética, pensamento e acção, inspiradores por terem possibilitado uma multiplicidade de hipóteses artísticas e não por fecharem qualquer tipo de círculo. Esse é o 25 de abril capaz de vincular o futuro: amplo, livre, progressista e luminoso.
Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores