Em época alta de eventos aglutinadores de multidōes, com uma crise a assomar, a realização de um festival colaborativo entre as salas não-sazonais, responsáveis por alimentar ao longo das quatro estaçōes do ano o circuito médio (em dimensão) de música ao vivo de concertos, espectáculos multidisciplinares e DJ sets, é um acontecimento merecedor de uma atenção que a torrente de acontecimentos não lhe permite dar, e de um aplauso antes sequer de as portas se abrirem. Além de outras virtudes, a empreitada está diversificada por sete cidades e a entrada é gratuita.
Vivemos numa época que adora matar a beleza, mas o Curva - assim se chama o festival que nem precisava desse nome para se legitimar - merece uma ovação. Em Portugal, país de poucas oportunidades, egos assoberbados, défice de cidades médias, pouca massa crítica e hábitos culturais raquíticos, o pacto entre os lisboetas Lux, B.Leza, Damas e Musicbox, os portuenses Maus Hábitos e Socorro, o conimbricense Salão Brazil, o leiriense Texas, a eborense SHE, o viseense Carmo 81, o funchalense Barreirinha Bar Café, e o Lounge, vivo em espírito, é inédito na partilha de bens e histórico no compromisso colectivo.
Que isto suceda num ambiente universal de isolamento é ainda mais extraordinário por subverter as lógicas vigentes de interesse particular e pouco diálogo entre pares e semelhantes. Não se trata de negar as naturais e saudáveis diferenças de pensamento e prática entre cada um, mas sim de as relativizar e ultrapassar em nome de valores comuns. Um circuito saudável não é apenas uma ideia benigna para bordar em colecçōes académicas de palavras. É, por audaz que ressoe, um acto de defesa da liberdade de ser, existir e ter acesso, quando tudo em volta parece desmoronar.
A curadoria é o coração desta vontade partilhada e nela encontramos nomes ligados a diversas correntes emergentes. O campo político tem-se inclinado para a defesa fragmentada de causas, isolando em vez de unir. A Curva dá o exemplo e age por inclusão de partes. Artistas trans, queer, negros, afrodescentes, emigrados do Brasil, e uma predominância de mulheres garantem representatividade, heterogeneidade de discursos e multiplicidade de expressōes, suplantando a preocupação anacrónica com géneros musicais. Até o grindcore gráfico dos Holocausto Canibal tem um canto neste circuito.
A questão geográfica é importante. Portugal tem um problema estrutural de macrocefalia. O litoral esmaga o interior e a grande fatia da programação cultural ainda está concentrada em Lisboa e no Porto. Os números do relatório de 2023 são elucidativos até os arredores são filhos deserdados do centro. Por vício e soberba, os poderes centrais pensam deter o controlo político, económico e emocional das periferias e interior, julgando saber tudo sobre territórios onde nunca respiraram o ar e dos quais só conhecem as portagens. As ligaçōes terrestres a Viseu, Évora e Leiria, e a ponte aérea com a Madeira dão um exemplo de coesão territorial mas também permitem ter a consciência de que salas propensas a servir de laboratório de ideias e identidades, e a abrir portas a quem corre por fora, são poucas.
É legítimo trabalhar com nomes sonantes e públicos potencialmente conquistados. Teatros e auditório de maior dimensão, e sobretudo as programaçōes gratuitas ou subsidiadas de verão, fazem-no. Em ano de eleiçōes autárquicas, a oferta paga pelos contribuintes, utilizadora de dinheiro público para caçar votos, multiplica-se como apanha de frutos vermelhos mas a intenção propagandista é o reconhecimento do efeito instantâneo da psicologia de massas. Não é cultura, é puro eleitoralismo.
Apostar em personalidades divergentes, artistas com números modestos, modelos artísticos provocadores dos costumes e propostas antagónicas das normas nunca foi uma maneira rápida de enriquecer mas está mais difícil num quadro de afunilamento do gosto, em que as regras da atracção se jogam no tabuleiro da comunicação e em que o público se habituou a esperar para receber a informação, em vez de a procurar (tal como no modelo passivo de alienação da televisão). Os orçamentos influenciam drasticamente quem consegue comunicar com o público e quem não tem possibilidades para o fazer. A programação da Curva assume uma escolha política de contraste com uma indústria da música cada vez mais dependente da fibra óptica.
O Curva também tem apoios e só dessa maneira se permite a entrada livre. Foi viabilizado pelo LiveMX, uma iniciativa da rede de música ao vivo Live DMA, com o apoio da União Europeia. O facto de não ser apoiado por nenhuma marca, e de fazer escolhas de risco, apesar de nenhuma das salas ser pública, quer dizer muito sobre a importância do gesto para o sector e sobre o exemplo de oposição à mediocridade. Que o público saiba ver a extroversão do desvio e deslizar nesta curva.