Em 2016, Beyoncé foi convidada a participar na 50ª gala anual dos prémios de música country dos EUA. Meses antes, Daddy Lessons reportava a relação turbulenta com o pai na novela de traição, perdão e reconciliação de Lemonade. Híbrido de balada country clássica com pop laboratorial moderna, venceu o prémio de Colaboração do Ano (com as The Chicks) nesses prémios e foi apresentada ao vivo na cerimónia com o trio country feminino em palco. As audiências bateram recordes. O aplauso foi generalizado, excepto dos puritanos. Beyoncé não pertencia àquele filme de cowboys, reclamaram. A Country Music Association sucumbiu perante a pressão mediática e apagou todas as publicaçōes que envolvessem o seu nome.
Embora não tenha explicitado de que episódio se tratava, Beyoncé citou no Instagram uma experiência ocorrida há alguns anos em que se sentiu “indesejada” para justificar Cowboy Carter. O romance com o country é-lhe inato. Nascida e criada em Houston, cidade de ranchos e rodeos, no estado conservador do Texas, Beyoncé não cresceu apenas a ouvir Aretha Franklin, Tina Turner, Janet Jackson e Diana Ross. O country chegava-lhe através do avô paterno. Entre 2001 e 2007, deu quatro concertos no Rodeo anual de Houston. Anos mais tarde, Daddy Lessons foi apenas a confissão de um amor eterno. Da legitimidade de uma afro-americana educada pelo r&b cavalgar o country sem precisar de se justificar. Da hipótese de o transformar culturalmente, interrogando e reformulando a sua história. E de o impacto apimentar o debate. Que seria da pop sem o tempero da controvérsia? Depois de Lemonade, Renaissance e do seu Black Album, além de singles como Run the World (Girls), Beyoncé é jubilada na arte de provocar discussão. E, como sabemos do século digital, arte sem comunicação é um chili sem acompanhamento. Nunca o processo criativo foi tão dependente da forma como é entregue publicamente.
Da legitimidade de uma afro-americana educada pelo r&b cavalgar o country sem precisar de se justificar. Da hipótese de o transformar culturalmente, interrogando e reformulando a sua história. E de o impacto apimentar o debate. Que seria da pop sem o tempero da controvérsia?
Nos EUA, o country é um dos emblemas nacionais. Em 2023, Morgan Wallen liderou por 16 semanas - 12 das quais consecutivas - o top americano de álbuns com One Thing at a Time e o single Last Night atingiu números semelhantes aos de Despacito nos EUA, apenas atrás de…Old Town Road de Lil Nas X. Em 2022, Luke Combs conquistou o primeiro lugar do top americano com Growin' Up. No ano passado, gravou o dueto Life Goes On com Ed Sheeran e já este ano a revisão do clássico Fast Car não só é a mais ouvida do ano Spotify com 65 milhōes de reproduçōes como fez de Tracy Chapman a nova Kate Bush do Conta-me Como Foi da pop. Convidado esta semana por Bruce Springsteen para ser convidado do concerto em Brooklyn, Zach Bryan já vendeu 30 milhōes de cópias dos quatro álbuns - o último dos quais, homónimo, chegou ao lugar mais alto da tabela da Billboard, curiosamente no mesmo dia em que foi preso por desacatos.
Wallen, Combs e Brian são apenas três dos jovens turcos de uma longo desfiladeiro de cavaleiras e cavaleiros como Shania Twain, Garth Brooks, Tim McGraw, Carrie Underwood, Keith Urban, Toby Keith, Kenny Chesney e, claro, Johnny Cash, Willie Nelson, Loretta Lynn, Dolly Parton e Hank Williams. Para compreender a dimensão sociocultural desta música, nem é preciso entrar no country H&M de Taylor Swift, no country Intimissimi de Kacey Musgraves ou no country Almedina dos Wilco. Assim como Obama amplificou o Yes We Can! através do hip-hop, o Make America Great Again tem no country conservador um grande aliado dos republicanos, através de manifestaçōes públicas de apoio, cançōes autorizadas em campanhas ou actos relacionados como o insulto racista de Wallen.
Beyoncé tem a plena consciência de que no centro deste triângulo música-cultura-política está a América. O país de todos os contrastes e contradiçōes. Os EUA que elegeram Obama, por quem os Carter deram a cara, para Presidente-profeta é o mesmo que prefere Joe Biden a Bernie Sanders e se prepara para resgatar o alaranjado Trump. Os Estados Desunidos da América do country-trap de Lil Nas X. Depois de ser aclamado pelos índios, teve de pedir a Billy Ray Cyrus (pai de Miley) para remisturar Old Town Road e poder atravessar os torniquetes do country nas rádio. A partir daí, o single universalizou-se do TikTok ao FM da América profunda.
O choque cultural dentro do country e do primo cinematográfico do Faroeste não é novo. Em 1963, dois pastores (Heath Ledger e Jake Gyllenhaal) apaixonaram-se e ocultaram a relação das mulheres. O Segredo de Brokeback Mountain era o romance homossexual em campo proibido de Ang Lee que chocou e apaixonou a América e o mundo. Limpou os prémios desse ano (três Óscares em oito nomeaçōes, Globos de Ouro, Leão de Ouro em Veneza) mas também foi proibido, ou teve cenas cortadas, em países do Médio Oriente. Cowboy Carter é, tal como os álbuns de anteriores de Beyoncé, uma obra conceptualizada de arte total e controlo absoluto da narrativa, como realçou no filme da digressão de Renaissance. No caso, uma emissão FM com cançōes e locuçōes deliciosas de Dolly Parton e Willie Nelson.
Será Beyoncé a mudar o country ou o country a mudá-la a ela? Ter crescido em Houston autenticou-a a atravessar a região e avançar. A noção do território por onde agora irrompe é o conhecimento das suas incoerências históricas e das hipóteses de expansão cultural. Não tenhamos dúvidas: é um álbum de ruptura e de desafio dos cânones que usa o country para explodir um míssil cultural e agitar os EUA do Capitólio a Dallas. Enquanto Beyoncé (“álbum-negro”) e Lemonade eram gestos de exaltação de um novo xadrez pop dominado pela cultura negra, e Renaissance partiam de uma reinvenção pessoal para formular questōes colectivas, em Cowboy Carter a relação entre cultura negra e white america, inteligentemente interrogada a partir de uma perplexidade pessoal, é pelo menos tão importante quanto o exercício de renascença particular. E tal como nos antecessores, o valor é o de um marco cultural que extravasa largamente a subjectividade das leituras. Como no cinema, a história é mais importante que o final.
A representação do country em Cowboy Carter é a do país e não só a de um género. O trap sofisticado de Spaghetti, com um sample do clássico de baile funk Aquecimento das Danadas de DJ O Mandrake, tem os genes da família Lemonade. A pop Tik Tok de Tyrant podia estar no álbum pop regimentar de que Beyoncé se distanciou desde o desinspirado 4. O country é tratado não apenas como limite estético mas como representação de uma América profunda, hesitante entre as fundaçōes culturais de um país plantado por migrantes e do regresso a uma idealização de pureza incongruente com a sua história.
Na pesquisa para a colecção de moda Ivy Park Rodeo, Beyoncé encontrou um número: 50% dos cowboys eram negros - uma memória silenciada. Os cinco anos de pesquisa contaram com a brilhante Rihannon Giddens como “orientadora”. Segunda esta, Cowboy Carter parte da reivindicação de um legado histórico e não do desejo de explorar zonas cinzentas entre o country e outras linguagens, mas as duas perspectivas são inevitavelmente uma só. É, sobretudo, um álbum com a marca de Beyoncé que tem no country uma zona de partida embora nem sempre um destino de chegada.
Os versos da magnífica American Requiem são auto-explicativos: “nothin' really ends
/For things to stay the same they have to change again/Hello, my old friend/You change your name but not the ways you play pretend/American Requiem/Them big ideas (Yeah), are buried here (Yeah)/Amen/It's a lot of talkin' goin' on/While I sing my song/Can you hear me?/I said, "Do you hear me?". Cowboy Carter vem carregado de simbolismos. A leitura inesperada de Blackbiird, do White Album dos Beatles, é mestre-escola na arte do revisionismo. A canção foi escrita por Paul McCartney com o Movimento pelos Direitos Civis dos negros em mente. Nas asas do desejo, o pássaro é a metáfora de um voo pela liberdade. Enquanto matriarca e patriarca, Dolly Parton e Willie Nelson validam a intenção de Beyoncé. Jolene, sugerida pela primeira em 2021, é simbólica da vénia aos mestres, da representação das fundaçōes e do respeito histórico pelas mesmas. Ya Ya é a jukebox do álbum com o sample de These Boots Are Made For Walkin e a citação de Good Vibrations dos Beach Boys. Bodyguard sua Fleetwood Mac das axilas. No lindíssimo bordado de Daughter, interpela a ópera do Séc. XVIII Caro Mio Ben.
Post Malone e Miley Cyrus são convidados VIP do barbecue, mas a galeria de notáveis tem outros nomes nos créditos, dos fundadores Nile Rodgers, Stevie Wonder e Linda Martell (a primeira negra bem-sucedida do country) aos contemporâneos Jon Batiste e Raye, e a nova vaga de artistas country negros: Tanner Adell, Brittney Spencer, Tiera Kennedy, Reyna Roberts, Shaboozey e Willie Jones. E se o baixo de Desert Eagle tivesse as impressōes digitais de Thundercat? Ninguém se espantaria.
Cowboy Carter consegue ser divertido, insurgente, preocupado, altruísta e artisticamente singular. Beyoncé calça as botas de vaqueira, o violino entra e whoooo whooooo, o baile vai começar em Texas Hold 'Em. A balada Just for Fun comove até um coração de pedra e Sweet Honey Buckin é o touro mecânico de Cowboy Carter, um objecto fundamental para a cultura pós-género e um acontecimento galvanizador de 2024 para as próximas temporadas. Há um antes de Cowboy e um depois de Carter.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Kelly Moran - Moves In The Field
Precisão técnica e contenção emocional. O treino clássico pode ser uma libertação mas também uma prisão. Em Moves In The Field, a pianista que já acompanhou FKA Twigs e Oneohtrix Point Never tem o melhor dos dois mundos. Magnífico.
Mazarin - Pendular
Finalmente, a estreia em formato longo dos Mazarin. Um álbum animador para a necessidade de o jazz português descer do pedestal e perder as noçōes de classe. Pendular está bem encaminhado na busca por uma identidade e para isso socorre-se dos contos e fábulas de Gil Dionísio, SOLUNA, Rodrigo Brandão e Sara Badalo, além do acordeão de João Frade.
Roc Marciano - Marciology
Novo capítulo da filosofia de bolso de Roc Marciano. O MC volta a meter-se em trabalhos com Alchemist, comparsa do antecessor The Elephant Man's Bones. O garante para que rimas escritas com óculos de ver tenham o melhor tratamento, isto é, tenham as lentes claramente sujas.
Liv.e - Past Futur.e
Em 2018, Liv.e libertou a experiência sónica ::hoopdreams:: sem aviso de recepção. Em jeito de sequela, Past Futur.e chega seis anos depois. Como se os Suicide tivessem sido atirados para um aquário e Liv.e se tivesse transformado em criatura marinha.
Real Bad Man & Lukah - Temple Needs Water. Village Needs Peace
A sociedade entre o produtor Real Bad Man e o rapper Lukah tira boas notas nas disciplinas de filosofia, inglês e educação musical. A âncora de Temple Needs Water. Village Needs Peace é a palavra mas chegariam as participaçōes de Billy Woods, Adrian Utley (Portishead) e Shabaka Hutchings para arregalar os ouvidos. Há vinhetas de grande quilate aqui.
Shabazz Palaces - Exotic Birds of Prey
EP de companhia a Robed In Rareness, do ano passado, e a sensação de que Ishmael Butler nunca voou a tanta altitude no espaço. Sim, é uma espécie exótica esta que bate as asas da liberdade em Marte.
Arusha Jain - Delight
Inspirada por uma forma particular de Raga, o Bageshri, um exercício magnífico de contemplação do belo e interpretação hipersensível que é tão somente um gesto de esperança.
Ben Lukas Boysen - Falling Into Place (Banda Sonora)
A música certa na data indicada. A banda sonora de Falling Into Place chegou no Dia Mundial do Piano, assinada por Ben Lukas Boysen e Jon Hopkins, e os contributos da pianista Lisa Morgenstern e da violencelista Anne Müller.
URN - Self Sabotage
Aventura sem limites do guitarrista eslovaco Jakub Volovár, apresentado como URN. Da paranóia à paz interior sem fronteiras entre o jazz, o kraut, a música electroacústica e ambiental.
Kopy - Heart Fresh
Música de clube - house, techno e outras formas geométricas - esmagada na pista. Às vezes, é preciso deixar o 4x4 de 4.
Majesty Crush - Butterflies Don’t Go Away
Como puderam os Majesty Crush ficar esquecidos? Butterflies Don’t Go Away sintetiza a vida breve de uma banda que queria matar presidentes e não se escondia atrás das múltiplas camadas de guitarras. O teste definitivo do algodão é a resistência ao tempo destas cançōes, motivadas por uma escrita apurada e um gosto ruídoso. Não devem ao melhor que se fez no eixo shoegaze/pop sonhadora.
Hanno Leichtmann - Outerlands
Figura discreta, Hanno Leichtmann tem orgão Villa Aurora, desenvolvido em 1929, o protagonista de Outerlands. Um orgão de igreja modelar de deambulaçōes a partir do vasto espectro de música ambiental.