É tentador olhar por cima do ombro e assinalar a chegada de duas compilaçōes importantes da e para a história da música moderna portuguesa. A Decade of Experimental Music in Portugal (82-93) pela madrilena Glossy Mistakes, e Rock Rendez Vous: Música Moderna Portuguesa 1985-1986, na prática uma reedição, pela bem conhecida destes circuitos Dark Entries Records, de São Francisco. Ambas comunicam para um meio restrito, especializado e atento mas sobretudo a segunda tem o estatuto necessário para criar algum frisson entre melómanos, olheiros de mercados ambulantes e arqueólogos da música popular. São, pelo menos, luzes de presença sobre uma memória descritiva do Portugal pós-25 de abril, musical e não só.
Sobrevalorizar estes gestos, só porque vêm de fora, para com a frente de resgate iniciada pela Phonograma, editora criada por Henrique Amaro (Antena 3), Hugo Ferreira (Omnichord) e Jorge Álvares (da fábrica de vinil Grama Pressing, na Maia), com o papel de editar em vinil discos apenas disponíveis em formatos digitais ou físico em CD, é cair no complexo de inferioridade que tem confinado horizontes já por si limitados pela falta de influência geoestratégica e pelo atavismo político no tema da exportação cultural. O processo da Phonograma não se esgota na fabricação e reedição. Há o cuidado de contextualizar cada uma das obras através de textos e conversas nas lojas FNAC com intervenientes no processo criativo e jornalistas.
A primeira leva de sete está cá fora - Mudam-se os Tempos, Mudam-se As Vontades de José Mário Branco, o single Remar, Remar dos Xutos & Pontapés, Free Pop dos Pop Dell’Arte, Pé Na Tchon, Karapinha Na Céu de General D & Os Karapinhas, Domingo no Mundo de Sérgio Godinho, o homónimo de estreia de Capicua e a retrospectiva Música para uma Nova Tradição do Megafone, organizada a partir dos quatro volumes da entidade oficinal de João Aguardela. O texto que acompanha esta última edição é um resumo do artigo publicado no início deste ano no Retropolitano, quando o disco estava a ser preparado. Uma feliz coincidência ou o tardio mas justo reconhecimento do visionarismo de Aguardela. Mais se seguirão.
São indícios de um entusiasmo comum a figuras com conhecimento e influência para agitar águas paradas, mas o interesse histórico da música portuguesa não se esgota na edição discográfica. Felizmente, tem havido outras coordenadas, como a exposição Rua da Beneficência, 175, coordenada por Henrique Amaro, Luís Carlos Amaro e Pedro Félix, com fotografias, parte delas inéditas, de Rui Vasco, Peter Machado, Álvaro Rosendo, Céu Guarda, Pedro Lopes, Rui Faísca e Fred Somsen, sobre o Rock Rendez-Vous. A mostra foi inspirada no livro Rock Rendez Vous – Uma História em Imagens, do designer gráfico Luís Carlos Amaro, e animou uma série de conversas com alguns destes intervenientes.
Na edição livreira, a aposta na música portuguesa é notória. Os melhores exemplos vêm não apenas do exercício de investigação e reconstituição dos factos, como da sua leitura crítica, permitindo observar a história de ângulos alternativos aos habituais que nos permitem, dessa forma, olhar para o tempo com outros olhos. A pesquisa exaustiva de Luís Freitas Branco em A Revolução antes da Revolução revela pormenores deliciosos sobre o período em que a música portuguesa serviu de alvorada para o clima cultural, social e político necessário para o “dia zero” enfim chegar, como a opinião de alguns notáveis do pré-25 de abril sobre a música de José Mário Branco, ou o pavor do regime em ouvir mulheres a cantar rock. Se a electricidade já era demoníaca, ouvi-la no feminino era o demónio na Terra.
A frequência de trabalhos académicos sobre a história da música popular recente ou remota, ou sobre aspectos específicos como a indústria ou a imprensa, demonstra interesse e vontade em descobrir e saber. Ainda que minoritários, são esses curiosos quem acena a mudança com pequenos gestos de curiosidade. Que, neste caso, passa por perder a vergonha da história e resolver o problema do défice de auto-estima, mas não restem dúvidas que se trata de um movimento contrário à trituração diária - somos velas a arder no meio no mar - e à falta de reflexão necessária para compreender o porquê além do quê. Não é geracional, é universal. Só assim é possível filtrar a excelência da mediania e separar o que fica do que passa.
A colecção da Phonograma e as colectâneas A Decade of Experimental Music in Portugal (82-93) e Rock Rendez Vous: Música Moderna Portuguesa 1985-1986 apontam num só caminho: a história enquanto bem essencial da leitura do presente e peça da construção de um futuro. A memória enquanto peça de museu, estanque e passiva, corre sérios riscos de pertencer à categoria indesejável mas prevalecente do saudosismo. O artigo do Retropolitano sobre os Censurados chegou a mais de cem mil pessoas, mas a maioria dos comentários continua a balançar entre o “já não se fazem bandas como esta” e o “nunca mais se fez música assim”.
De facto, ambas estão certas porque toda e qualquer banda é única e toda a música pertence a uma época mas quando a memória se desprende do tempo, passa a ser vivida para além de um pretérito perfeito idealizado pela memória selectiva. Continua muito por fazer na memória da música portuguesa, como reediçōes, livros, documentários, conversas ou podcasts, mas pelo menos isto já está a ser feito. E anima.