É um supergrupo, na forma, mas na intenção é uma banda de espírito punk, objectora do conforto e despreocupada do estatuto. Porque, de outra forma, os Cara de Espelho não se apresentariam com dedicatórias ao político com maioria absoluta de audiências no espaço mediático como Dr. Coisinho, nem com versos tão deliciosamente ácidos como “quando eu morrer/quero subir ao paraíso fiscal” ou cançōes nauseabundas como Varejeiras.
Música de intervenção é toda. Música de protesto, combativa através da poesia e da reinvenção de uma música não-genuinamente portuguesa, feita de retalhos da memória e rock, na sua veia mais crua, é outro carnaval. Os Cara de Espelho sentiram-se obrigados a vir para a rua gritar, e a urgência desinstalou-os do passado (re)conhecido apesar de no álbum de estreia se identificarem naturais ecos d’A Naifa em Mitó, dos Deolinda na escrita de Pedro da Silva Martins e nos arranjos do irmao Luís, dos Gaiteiros de Lisboa na habilidade instrumental para extrair sons desconhecidos da terra de Carlos Guerreiro, de Nuno Prata a solo e nos Ornatos Violeta, e da propulsão rítmica de Sérgio Nascimento (baterista dos Deolinda na estrada, entre outros afazeres como as bandas de Sérgio Godinho, David Fonseca e Lena D’Água, além dos Peste & Sida e Despe & Siga nos primeiros quilómetros de estrada).
Cara de Espelho vem coligar-se e acrescentar propostas a um coro crescente de música politizada em Portugal. Os concertos de apresentação estão marcados para 24 de fevereiro no Theatro Circo, em Braga, 2 de março no Cine-Teatro Louletano, 5 de março no Teatro Maria Matos, em Lisboa (bilhetes quase a esgotar), e 16 de março na Casa da Música, no Porto. Uma ainda breve história com antecedentes profundos, contada pelo autor das cançōes e mestre do desfado Pedro da Silva Martins.
Juntaram-se por razōes musicais. E também por afinidades políticas?
Pedro da Silva Martins - Não, não estava em cima da mesa. Só começou a haver essa carga quando a Mitó aparece porque as cançōes já tinham um cunho. Com a história do Carlos Guerreiro (GAC, José Afonso, Sérgio Godinho), o campo de acção estava balizado. Ele é da música tradicional. Foi uma resposta natural. É uma área que com Deolinda sobrevoei e aqui aterro definitivamente. Chegámos à festa e ambientámo-nos. Fomos à procura uns dos outros. Este tipo de canção, além da urgência em falar sobre certos assuntos, era confortável para nós.
Como é que foi o processo de construção das cançōes?
PSM - Isto nasceu no confinamento. Estávamos em casa e a única forma era gravar e enviar as maquetas. Comecei a fazer maquetes muitas completas. No período pós-Deolinda, finalmente comecei a fazer maquetes em computador. Com o disco da Lena D’Água já foi assim. Quanto mais esclarecida está a maqueta, mais ajuda a letra. Passava-as ao Carlos Guerreiro e dizia-lhe para ele tirar tudo o que quisesse. E ele propunha uma maqueta sobre a minha. Só ficava a letra e a melodia. Entretanto, entrava em cena o Luís [Martins] e depois o Nuno Prata. Parece uma coisa muito burocrática mas foi um processo natural. É um disco que tem bastante trabalho por trás que nunca vai ser ouvido. O final é uma escultura comum. O Nélson Carvalho [produtor] também nos ajudou bastante a encontrar um som que nunca tivemos.
Sentes que há um bocadinho de todos os vossos passados nessa sonoridade?
PSM - Sim, por exemplo o baixo incrivel do Fadistão leva para a zona dos Ornatos. É natural, apesar de termos vontade de deixar as mochilas das outras bandas à porta, e isso pesou em algumas decisōes para não corrermos o risco de cairmos em lugares comuns. A proposta também era essa, desviar-nos desse instinto, e a procura foi por um lugar comum diferente de todos os anteriores. Naturalmente, que há ecos do nosso passado.
O nome Cara de Espelho pode ser uma selfie da realidade?
PSM - Sim, faz sentido. A selfie também pode ser um espelho para ver se estamos bem. Acabamos por estar representados como indivíduos - eu como autor, e o resto do pessoal como músicos - como também está a sociedade. Isso pesou. O reflexo e os múltiplos sinónimos da palavra - de reflexão. O nome surge da canção Cara que É Tua. No início, achámos o nome estranho mas passado algum tempo concluímos que não era fácil nem óbvio, mas nós também não somos fáceis nem óbvios.
O espelho tem essa ambiguidade. Reflecte-nos mas também o nosso redor. A reflexão pode partir daí. Há uma relação entre o nosso papel enquanto indivíduos e o colectivo, no sentido de lutarmos contra a passividade e a alienação?
PSM - Sim, relaciona-se com o álbum. O ir contra correntes, até estéticas e de carreira. Nós estamos todos numa idade em que o mais confortável era começarmos projectos em nome próprio. Não tirando valor a nada, era o mais lógico. Aqui, pessoal na casa dos quarenta e muitos junta-se para fazer uma banda. Isso é ir contra a corrente. E é contra o ciclo que nós sentimos. De repente, criámos uma sociedade dentro de uma lógica de trabalho. Uma relação activa em conjunto. Isso é um pressuposto da Cara de Espelho. E é também uma resposta a esse necessidade de intervir. De estarmos artisticamente activos com coisas para dizer e sentir necessidade de as dizer agora.
Politicamente, isso pode ser lido como uma resposta ao individualismo porque uma banda implica diálogo e concessão.
PSM - Sim, definitivamente. É esse o nosso ponto de partida. Estamos a reinventar-nos em conjunto.
Apesar de ser uma banda na casa “dos quarenta e muitos”, como referias, e de o Carlos Guerreiro já ter 69 anos, tem um espírito punk.
PSM - Sim, porque arranjámos um espaço de libertação. O Nuno tem isso, a Mitó tem muito isso e eu ouvi muita coisa punk. Passei pelo grunge a imaginar ter uma banda que nunca tive. Também surge pela necessidade de não cairmos em lugares-comuns.
O Parva Que Sou dos Deolinda foi uma bandeira para a geração dos recibos verdes. Se comparares esse período com o actual, a canção de protesto dos Cara de Espelho está menos isolada em 2024 do que estavam os Deolinda em 2011?
PSM - Talvez. Essa bandeira estava mais presente noutras áreas como o hip-hop. Aquilo que aconteceu também foi inesperado. Uma banda de top de tabela nacional fazer aquela canção teve um impacto que uma banda de outra dimensão não teria. A ferida estava aberta mas ninguém punha lá o dedo. Acabou por servir de bandeira política de movimentos. Fugiu-nos completamente das mãos. Já não podíamos fazer nada. A nós, compete-nos fazer cançōes conscientes. Se tiverem que dizer os nomes, dizem. Se tiverem que tocar nas feridas, tocam.
O Dr. Coisinho não precisa de ser nomeado. Está implícito.
PSM - Sim. Não tem nome, mas acaba por ter. Quem começou a chamá-lo por esse nome penso que foi o Bruno Nogueira. Já falei com ele sobre isso. Era uma canção que estava cheia de “coisinhas”. E surgiu aquela personagem (André Ventura). Era um assunto que pairava e paira cada vez mais. Quando a fiz, nunca imaginei estarmos agora com eleiçōes antecipadas, o Trump perto de voltar à Casa Branca…
Nas letras, sente-se muito a polarização. Os campos opostos. Há um chão comum que se perdeu?
PSM - Sim, porque a resposta à radicalização é radicalização. É o fogo contra o fogo. Não quero ser profeta da desgraça mas não vejo melhorias. Às vezes, a música é fixe para assentar a poeira. E clarificar. Não é que sinta isso como missão, mas gosto de música assim. Há pouco tempo, alguém dizia que o Zeca Afonso era mais pertinente que a Billie Eilish. Identifico-me muito com isso.
O Genuinamente interroga sobre o que é ser “genuinamente português”. Remete-me imediatamente para a ideia dos “portugueses de bem”. Por outro lado, culturalmente, na música, no cinema e na gastronomia - tem havido uma redescoberta das tradiçōes e memórias que contrariam o fado do “é português, não gosto”. Algo que, por exemplo, os Deolinda já faziam. Como observas estas correntes opostas?
PSM - Sim, procuro sempre uma identidade. Tanto o fado como a música tradicional são muito ricos. Como autor, são minas por escavar. Isto por um lado. A canção critica o estarmos sempre a puxar a brasa à nossa sardinha. O “somos genuínos” e “somos incríveis”. O “genuíno” às vezes serve para fazer uma triagem e dizer “o resto não presta”. Pode ser um instrumento de clivagem. O “genuíno português” não existe. Existe sim uma apropriação e a capacidade de fazer a diferença. A Amália Rodrigues apropriou-se de muitas coisas e tornou-as “portuguesas”.
As letras são muitas vezes desconfortáveis e agrestes mas contêm sempre poesia. O punk, por exemplo, tende a ser directo e objectivo. Nos Cara de Espelho, não há panfletarismo.
PSM - Sim, quando é tudo posto a nu perde-se a piada. Quando me espetam uma letra muito directa, não acho graça. Aqui há uns anos, comprei uns discos do GAC. Admiro imenso e aquilo foi útil mas é impossível de ouvir (ri-se). Cativa-me mais o caminho. Como é que te posso sugerir isso sem ser directo? Também tem a ver com a minha forma de escrever.
O texto de apresentação fala de uma ideia de “liberdade que não se deixa aprisionar pelo fatalismo”. Apesar de todos os problemas, a esperança é fundamental para nos libertarmos.
PSM - Sim, é um disco de liberdade. É uma libertação, até do fatalismo. Sempre fui anti-fatalista. A minha abordagem ao fado, por exemplo, sempre foi brincar ou desconstruir como no caso do Desfado (de Ana Moura). Estamos num momento em que temos que lutar pela liberdade. O 25 de abril faz 50 anos e, não tendo sido intencional, é o nosso contributo.
É uma banda para continuar?
PSM - É. Gravámos 12 cançōes e houve duas ou três que ficaram de fora. Precisávamos de mais para o concerto. Começámos a trabalhar em cançōes novas há uns tempos e agora estamos a ensaiá-las. A malta já está com vontade de gravar. No meu trabalho de escritor de cançōes, sinto falta disto para mandar uns berros e chatear o pessoal (ri-se). É um escape.