Toda a música fala por quem a faz mas no século digital a democratização das ferramentas de criação, gravação, distribuição e comunicação incrementou a individualização do acto de fazer música e torná-la acessível. Não há nada de errado nisso. É uma forma natural e consequente dos meios disponíveis. A cultura de banda nunca desapareceu mas dissolveu-se numa predominância cada vez maior do artista solo.
Um colectivo obriga a cedências e compromissos. Já a individualidade depende sobretudo da vontade própria. A redescoberta política de que quanto mais sós gritamos, menor é o eco colectivo necessário para a transformação corre em paralelo com os sinais de desgaste da cultura do “eu”, a jorrar todos os dias através de estados como a solidão e a ansiedade. Nunca estivemos tão próximos e no entanto nunca nos sentimos tão sós. E ainda que nem sempre a música corporize uma intenção deliberada de gerar antagonismos, contém um significado e prenuncia uma metamorfose da paisagem. No caso do belíssimo álbum de estreia de Bia Maria, trata-se de um câmbio entre a autodeterminação individual e a vivência em comunidade. Comunicar com o outro não é apenas desejo ou necessidade, é uma saída de emergência para reorganizar o colectivo e defender direitos e liberdades. Enquanto as cançōes respirarem como em Qualquer um Pode Cantar, a democracia está defendida com espada de prata.
Casa feliz
Casa é onde o coração está. Ourém, no distrito de Santarém, onde nasceu, vive e dá aulas de música a crianças. “Uma cidade que não é assim tão grande", com muitas freguesias e aldeias”, introduz. “Desde pequenina que tive esse sentido de comunidade. O sair de casa e pedir limōes à vizinha, o descer a rua e encontrar pessoas no café. Há tradiçōes que se mantêm na aldeia e depois isso vive-se na cidade. Toda a gente se conhece e se encontra nos mesmos sítios”.
No concerto de apresentação no Musicbox, Bia Maria elogiou Jasmim, o co-piloto do single Campo/Cidade, do ano passado, por se ter deslocado a Ourém para lavrar nas (duas) cançōes quando, invariavelmente, era Beatriz a vir a Lisboa se queria dividir esforços. Descentralizar. Uma bandeira política tantas vezes prometida pelo poder central, quando é nas cidades, vilas e aldeias espalhadas pelo território que o verbo sai do pêlo. “Fundámos uma associação, a Albardelha, e temos vindo a trabalhar essa transformação a nível cultural. É extraordinária a quantidade de pessoas que tem passado por Ourém. Eramos poucos sócios no início, de repente temos equipas em diferentes projectos. As pessoas estão envolvidas. A cultura mexe, a economia mexe, vêm pessoas de todo o país. Sinto que nos tornámos um ponto no circuito dos músicos. Há um elo de ligação, há algo de transformador entre todos, que estimula a ficar aqui e fazer diferente. Partimos do individual e encontramos vontades comuns. Deixo de ser só eu e somos todos juntos a trabalhar”.
Os vasos comunicam entre si. A educação, a cultura, a política e a geografia. Na noite de estreia do álbum em Lisboa, fez questão de lembrar os pares da Albardelha, por onde fez estrada ao longo dos últimos cinco anos. “Só foi possível porque existem essas colectividades e associaçōes pelo país que permitem que os músicos possam tocar. É dada pouca credibilidade e apoio a essas associaçōes quando elas fazem mais do que conseguem. Precisamos de olhar para esses casos e as câmaras porque fazem a diferença no país. É preciso haver oferta cultural em todas as regiōes. Não precisamos de ser sete cães a um osso, existe espaço para todos tocarmos”, nota.
Há um pouco delas em Qualquer um Pode Cantar. Na partilha de ideais, no acreditar do poder transformador da música e da necessidade de o democratizar pelo território. “Acho que as coisas que digo já ninguém as ouve”, lamentava ao público do Musicbox. A criação refuta a autora. Como diz o dueto com Jasmim, esta música vive entre o trânsito da cidade e o vagar da mó. “A arte não tem de ser elitista. Um artista pode surgir de qualquer lado e é preciso dar-se essa liberdade às pessoas, ao povo. Se eu quiser que seja a minha vida, que tenha esse direito”, defende.
A arte não tem de ser elitista. Um artista pode surgir de qualquer lado e é preciso dar-se essa liberdade às pessoas, ao povo. Se eu quiser que seja a minha vida, que tenha esse direito
A rapariga do canto
A declaração vem a propósito da canção que nomeia o álbum. A simplicidade da estrutura, o diálogo com a música popular portuguesa e a repetição de versos como “só que eu ao sambar a chuva/acabei neste fandango”, “para viver e ser de conta/gente grande aos vinte e tais” e “só que não lhe fiz as rezas/e deixei a voz pecar” fervem a tensão até entrar o refrão amparado pelo Coral Troviscal e pelo Orfeão de Vagos, como um elogio do canto como espaço democrático de alegria e reactividade. “É uma democratização do canto e da arte para toda a gente. Eu canto, outra pessoa canta, juntamo-nos de forma orgânica e isso vai fazer com que as pessoas se unam, percebam que têm coisas em comum, que há questōes com que não concordam e isso pode criar energia interventiva. É maior do que elas, é inevitável”, argumenta. O todo transcende a soma das partes.
No final da canção, uma intermissão de Tiago Pereira (d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria), recolhida de uma gravação do canal, surpreende. É uma espécie de manual da ausência de regras. Só a liberdade importa. “Para mim ninguém canta mal. Toda a gente tem o direito de cantar para si próprio”, apregoa o realizador sonoro no discurso. “A voz é um instrumento que todos carregamos. Cantar está a uma distância pequena de todos. Não temos de ter medo de desafinar. Vejo as crianças e elas não querem saber se estão desafinadas. Não pensam no julgamento. Cantam porque é uma forma de se expressarem”, subscreve Bia Maria.
Eu canto, outra pessoa canta, juntamo-nos de forma orgânica e isso vai fazer com que as pessoas se unam, percebam que têm coisas em comum, que há questōes com que não concordam e isso pode criar energia interventiva. É maior do que elas, é inevitável
Se querem conhecê-la sem ouvir o álbum como uma peça integral, a canção Qualquer um Pode Cantar expōe propriedades e apetites. Sobretudo um empenho vocal, notado nas camadas polifónicas, com raízes conhecidas e identificadas. Beatriz começou por cantar para as paredes, em casa com a avó, e na escola. Ouviu “muita música tradicional e popular”. Na adolescência, as preferências voaram. “Chegou a vontade de ouvir outras coisas e cantar outras coisas”, recua. Depois da espontaneidade, decidiu subir a exigência. Formou-se. Veio para Lisboa estudar no Conservatório. Teve aulas de canto lírico e aprendeu a potenciar a voz, quando necessário, sem piruetas de circo. Quando lhe pergunto se o acto de fazer música a ajuda a compreender o mundo, defende-se. “Acima de tudo”, diz, “tento viver melhor o mundo. Ele é um caos. Sinto que ao crescer vai ficando mais complexo e difícil. A música, pelo menos, alivia-me e tenta encaixar-me nele. Às vezes, dá-me algumas respostas”, reconhece.
A voz lavada pelo mar sobressai com naturalidade entre canções com cheiro a alfazema, mas outros cantos se erguem como uma memória activa. Por exemplo, as correntes de Fausto a puxar desde 1982, ano do clássico vitalício Por Este Rio Acima. Bia Maria aceita a referência e até a situa no seu tempo. “Consigo rever-me nisso. Ali entre 2021 e 2022 estive completamente mergulhada no Por Este Rio Acima. Em 2021, houve seis meses em que só ouvia Fausto, Fausto, Fausto. Foi difïcil sair. Acabou por influenciar sobretudo a produção, o vestir as cançōes”. Ainda assim, não se trata de uma segunda-mão ou diferido, mas apenas e tão só de uma oxigenação. “Cantamos a nova tradição/sem saudades do passado/só resta admiração”, profetizava Campo/Cidade.
Política de defesa
Entre Beatriz Cardoso Pereira e Bia Maria, não há segredos. As duas são uma só. “Quando comecei a escrever, achava que as coisas se separavam”, admite. “À medida que fui maturando, percebi que a Beatriz e a Bia são as mesmas. Eu sou ambas. Não há essa diferença”. Em casa, “sempre houve discussōes políticas com os meus pais” apesar de “à minha volta não ter referências interventivas”, recapitula. “Como não sentia muita autoridade, adoptava uma postura passiva em relação a isso. Com o amadurecimento, o chegar da vida adulta e o perceber que a nossa voz é importante, é importante posicionarmo-nos. Não necessariamente de forma partidária mas existem direitos que são nossos. Emergiu um lado meu de acreditar em utopias”, explica sobre o compromisso político ressonante nas entrelinhas de Qualquer um Pode Cantar.
“Há um lado meu de acreditar em utopias. Se hoje tenho direitos é porque há mulheres que acreditaram em utopias. Se não tivessem acredito e não tivessem agido, não estaria a editar um álbum. Talvez seja o meu lado mais interventivo e pensar na política como uma causa do dia-a-dia, relacionado com a saúde, os transportes, a educação, a descrentralização e a cultura, que é sempre tão desvalorizada mas está em todo o lado e tem um papel transformador. A arte faz parte de todos os processos de revolução”, realça.
Identidade e género
E eis que chega a Marcha da Paridade, poderosa e derramante, como um punhal no progresso. “Nós mulheres ainda não somos livres”, afirmou à plateia do Musicbox antes de se entregar como náufraga em alto mar à mais politizada de todas as cançōes da sua embarcação. “É um grito de revolta, um cansaço gigante”, reconhece. “Fico feliz por saber que mexa com as pessoas. Gosto de criar esse desconforto. Recebi mensagens de amigos a dizer: 'sim, a música é muito bonita mas outra vez este tema?! Já estamos um bocado cansados". Pois, e nós? Significa que algo de facto não está bem”, reivindica.
Música com impressão digital a bradar por rua e acção como voz colectiva. As cançōes entrelaçam-se, completam-se, persuadem-se. Em Roupa Velha, o armário é metáfora de preconceitos. Já a arrepiante O Corpo fala sobre insónias e assombros. Na segunda parte, os fantasmas são embalados pelo ritmo do trabalho no campo e na terra das palmas e do bombo. Ambas descendem de uma tradição de resistência, insubmissão e falibilidade, fulcral no cancioneiro pré-Abril de José Mário Branco (Mariazinha), José Afonso (Vejam Bem) e Sérgio Godinho (Farto de Voar) pré-Abril. palpáveis em Mariazinha
Bia Maria reconhece-se na queda livre. “Tenho de trabalhar muito para poder pagar o disco. Fui sempre encontrando obstáculos. Estudar em Lisboa foi um obstáculo. Quando voltei não consegui encontrar trabalho a dar aulas. Tive que trabalhar com a minha tia numa fábrica de cerâmica. Vivi esse lado precário. Também vi os meus pais trabalhar durante muitos anos. Isso deixa-me inquieta”. Se for para cair, que seja com a espinha direita.
Álbuns da Semana
Mazela - Desgostos em Canções de Colo
Em maio, a vitória no Termómetro serviu como cartão de visita de Mazela, o alter-ego castigado de Maria Roque. Gota a gota, as cançōes foram pingando com a promessa de projectar uma voz, uma franqueza e uma luz quando a dor passa. Quando apresentou a notável Entre Amor e Ódio, a duas vozes com A Garota Não, percebeu-se que o convite era também uma vénia. A limpidez de Desgostos em Canções de Colo não esconde o incentivo mas não é emissão em diferido. Esta mão cheia tem voz própria e tristezas que o coração não compra com códigos de desconto. E até um manto envolvente de silêncio, próprio da distância e indisponível na grande cidade. Ainda é uma introdução mas já traz cicatrizes difíceis de apagar.
David Bruno - Paradise Village
Temporada Paradise Village na série empreiteira de David Bruno. Glamourizando por aí, Vilar de Paraíso, a meia-freguesia de Gaia em processo de separação amigável de Mafamude, é o domicílio. David Bruno e as personagens encontram-se num bar e sai r&b de varão em 10/10, com Presto, hip-hop da veia de Guru e J Dilla na deliciosa Redlaine, e uma Superxxxtilo muito electro anos 80, muito Egyptian Lover, mais do que Prince. Os instrumentais são soberbos, as conversas de alguidar. E Gaia da Costa Oeste conhecem?
Primal Scream - Come Ahead
Como os actores, os Primal Scream já interpreteram diferentes papéis. De banda indie C86, à seminal coexistêntia entre acid-house e electricidade em Screamadelica, rock'n'roll sulista em Give Out But Don't Give Up, kraut-dub em Vanishing Point, maximalismo big beat em XTRMNTR, electroclash pop em Evil Heat e um pouco de tudo o que foram sendo daí para a frente, os cenários estéticos variaram muito mas sempre seguiram uma linha actual do tempo, pelo menos até aos álbuns citados, enquanto preservavam a insurreição. Come Ahead ainda tem algo a acrescentar. Embora a aculturação negra da soul observe Screamadelica pelo retrovisor, os contornos são diferentes. Humanos, carnais e sumptuosos, sem o peso da maquinaria. Como se os Primal Scream se teletransportassem para a época de ouro da Motown e da Stax, e inventassem o próprio Super Fly. Linhas de baixo curvilíneas, guitarras sci-fi, cordas solenes, coros gospel e o maestro Bobby Gillespie na condução da orquestra a narrar a paixão, a perda, o capitalismo e o colonialismo com o poder de síntese de quem testemunha a chegada do fim. O motor perde combustível durante a viagem mas podem aceitar a boleia destes velhos conhecidos. Come together, come ahead!
Claire Rousay - The Bloody Lady
The Bloody Lady pode apanhar de surpresa quem tenha apanhado a trajectória de Claire Rousay a falar com o coração através do Autotune no fascinante Sentiment mas é um regresso ao eterismo de episódios anteriores. A referência é o filme de animação do eslovaco Viktor Kubal, escrito em 1980 mas a atmosfera vive para além da imagética original. E de uma banda sonora, The Bloody Lady evolui para um guião próprio através de recolhas no terreno, sintetizadores, pianos preparados e violinos transformados em nome de um espacialismo liquído e textural.
Sussan Deyhim & Richard Horowitz - The Invisible Road: Original Recordings, 1985–1990
Pode a cultura moderna conter a sua própria ancestralidade? Ao ressuscitar os sons perdidos do "quarto mundo", cunhado por Jon Hassell, este espólio da união de forças criativas da bailarina e artista multimédia Sussan Deyhim com o multi-instrumentista Richard Horowitz, cultivado na cena novaiorquina, recupera uma dialéctica híbrida de experiências com o jazz livre, a electrónica e a etnicidade do norte de África, vivenciada nas escalas de Horowitz entre Paris e Marrocos. As camadas de manipulação vocal prenunciam a tensão entre humano e artifício. Os mantras visuais e espirituais são familiares a My Life In The Bush of Ghosts de Eno e Byrne. A vanguarda pop através de uma VHS.