Quando os Måneskin venceram a Eurovisão em 2021, houve quem avistasse nos italianos a tábua de salvação do rock. Matem-no já, se assim for, mas a discussão não é essa, até porque bandas como Idles, Fontaines D.C., Dry Cleaning, Black Midi ou Black Country New Road devolveram a causa perdida ao rock’n’roll. Sobre as semelhanças estéticas entre os Måneskin e o sindicato dos operários ingleses, são como o Canal da Mancha e a mancha no canal. O desejo de mudar o mundo até pode assemelhar-se mas o tempo e o modo são radicalmente distintos. Quem já esteve nos electrizantes concertos dos Idles, e não foram poucos nos últimos anos em Portugal, já deve ter observado um público masculinizado, grisalho e cervejeiro. Não há nada de errado nisso, mas o pantone cor-de-rosa de Joe Talbot não é apelativo à geração Z. A comparação com Diogo Faro cai pela base capilar.
No Super Bock Super Rock, os Måneskin salvaram o primeiro dia. Cerca de vinte mil pessoas é uma boa marca, bastante acima do desastre anunciado para um festival sem meios para lutar pelas marés. A plateia de um concertos dos italianos é bastante nova e culturalmente diversificada. Enquanto o público dos Idles podia ter sido cuspido por uma máquina do tempo comandada pelos Rage Against The Machine, se o dos Måneskin tivesse o dom da ubiquidade podia estar à mesma hora em Billie Eilish, Phoebe Bridgers ou Troye Sivan. Charli XCX? Provavelmente sim. É muito feminino, LGBTQIA+ e pós-género. Pode até relacionar-se com clássicos do rock como Nirvana, AC/DC, Led Zeppelin, Queen ou Linkin Park mas serão as guitarras a razão do vínculo emocional? Duvidoso.
Nada acontece por acaso. Em 2017, ficaram conhecidos pelo segundo lugar no The X Factor italiano. O visual andrógino do vocalista Damiano David, misto de Freddie Mercury com David Bowie e Brian Molko, fala mais alto do que a heterossexualidade conhecida. A identidade de género é uma bandeira dos Måneskin. Victoria de Angelis (baixista) é bissexual assumida enquanto Ethan Torchio (baterista) se assume “sexualmente livre” sem abrir mais o jogo. Podiam tratar-se de posicionamentos individuais, sem qualquer relevância para a apreciação artística dos Måneskin, mas são gestos políticos assumidos, confirmados pelos beijos homossexuais entre a baixista Victoria e as actrizes dos vídeos de Chosen, Le Parole Lontane e Mammamia, e pelo beijo pastilhado entre Ethan e Damiano no vídeo de I Wanna Be Your Slave.
Não tenhamos dúvidas que estes carinhos são um íman poderoso para a mesma geração que não está nem aí para o arraso da Pitchfork. Não quer saber nem se interessa pela crítica musical. Provavelmente, nem compreende o seu papel ou tampouco se preocupa em desconstruir o que está para além do manifesto visual. Interessa-lhe sentir, gritar e chorar, e filmar tudo senão não aconteceu. Terão os Måneskin conhecimentos para explicar às suas hostes que a pretensa rebeldia individual manifestada nos vídeos descende de uma história colectiva de sofrimento e emancipação? E que essa memória não deve ser abastardada sob pena de suprimir a catarse e reduzi-la ao mesmo individualismo que nos deixa todos contra todos na selva capitalista? Hum…
Em 2023, o segundo dia de NOS Alive tinha Idles, Lizzo e Lil Nas X, permeados pelos Arctic Monkeys em horário nobre. Pode até ter havido convergência de agendas mas este alinhamento “de causas” não foi inocente. Escusado será dizer que o concerto dos Idles foi secado pelo sol das 19h00 e esvaziado pela estreia de “Lizzoboa”, meses antes de ser acusada de comportamentos privados de hostilização da sua equipa, contraditórios com tudo aquilo que defendeu e a ajudou a projectar como a imagem desformatada dos ideais de beleza. Havia e ainda há festivais, ou dias e noites em função do género musical, mas os programadores dos festivais perceberam que os lugares de pertença se modificaram e, se querem comunicar com as geraçōes nascentes é melhor compreender os seus anseios. Códigos como pop, rock ou indie não fazem parte desse léxico.
Nos anos 80, havia rivalidades entre grupos do Barreiro e de Almada pela afeição aos Cure, Joy Division ou Echo & The Bunnymen. Discutia-se o indiscutível. Quem eram os melhores e porquê. Debatiam-se as letras, interpretavam-se as fotos e imitavam-se os visuais. A dificuldade e o mistério tornavam as coisas especiais e alimentavam a fantasia. As tribos demarcavam o território de pertença e diferença. Fazer parte de um determinado grupo, como os vanguardas, os góticos, os punks ou os rockabillys era uma afirmação perante o mundo. Não muito diferente do que se passa agora, com referências grupais próprias da época. As causas estão para os anos 20 como as tribos estavam para os anos 80. É uma constatação mas se a relação com a música parte da sua representação e não da sua origem artística, há um risco de perversão.
Agora é 2024 e já se percebeu que Chappell Roan está prestes a ser lançada como o próximo grande estouro pop da indústria. Nascida Kayleigh Rose Amstutz, é uma subespécie de Kate Bush, inspirada por Pablo Vittar. As semelhanças entre o single mais popular Good Luck Babe e Running Up That Hill falam por si. Uma canção como Hot To Go podia ser um lado E ou F de Florence + The Machine com os sintetizadores de Hot’N’Cold de Katy Perry. Longe de ser um rodapé, seria preconceituoso afirmar que o motivo da sua afirmação é a condição queer mas que atrai muita gente, atrai. E a indústria já percebeu que se trata de um filão apetecível, sobretudo quando a excentricidade visual é uma modelo fotográfica sem corpo e o risco é o de fazer festinhas a um tigre sem garras.