A caminho do ano de vida, Subespécie ainda é um recém-nascido pronto a descobrir o mundo e ser abraçado pela família. Pode um álbum negro estar cheio de luz e vida? Amaura diz-nos que sim. Do luto familiar pela perda da mãe, nasceu um objecto tridimensional em facetas, arestas e camadas, com polimento e sujidade, classicismo, modernidade e pop.
Sombra e desassombro coexistem na honestidade do guião. Os episódios autobiográficos de Amaura podem ser os do comum mortal. Depois, há uma alma a vir do fundo do mar, com ondas de paixão a lavar as tensões, dúvidas e amarguras. Esta quinta-feira, dia 22, no Musicbox, as luzes estão sobre ela.
O luto é um dos temas centrais do Subespécie. Partilhar a dor é uma forma de a superar?
Amaura - Ajuda muito. As pessoas que compram bilhetes para ir aos concertos podem não saber, mas eu sinto isso. É como ter um segredo muito pesado e contá-lo a um amigo ou amiga. Quando canto sobre a dor, estou a enfrentá-la. Sabe-me bem. É um exorcismo.
Pode comparar-se a uma terapia?
A - Sem dúvida. Toda a concepção deste álbum foi uma terapia. Lembro-me que no primeiro concerto houve certas cançōes que me custaram cantar. Não me custaram gravar mas depois em palco foi mais doloroso. É uma terapia autêntica. Venho mais leve para casa.
Liberta-te dos demónios?
A - Muito! É libertação e partilha. O amor e a dor são universais. Acho que os meus ouvintes compreenderam bem isso e dão-me sempre um carinho. “Está aqui, partilhem comigo”.
Costumam partilhar contigo histórias semelhantes?
A - Partilhar, partilham mas é curioso porque às vezes isso acontece sem as pessoas dizerem. Isto também me acontece com artistas que admiro. Vou ver um concerto e aquilo toca-me num nível tão profundo que quando o artista olha, tenho tendência a baixar o olhar por estar muito envolvida. Estando certa ou errada, isso é uma forma de comunicar. São pessoas que me estão a dizer: “eu também já passei por isso”.
A história do Subespécie pode ser a de quem te ouve.
A - Sem dúvida. Confesso-te que quando comecei a produzir o álbum, não estava a pensar muito nisso, até porque tenho noção, e sou muito atenta, que isto pode não ser o som e a narrativa que se procura. Andamos todos com narrativas um bocadinho viciadas. Parece que falamos sempre sobre o mesmo. A maior honestidade do trabalho é quando é feito a pensar em nós. Fazes porque precisas. Depois, vais percebendo que pode tocar no outro ou simplesmente deixá-lo a pensar. Aí sim, há uma preocupação de não esconder nada.
Dizias numa entrevista que és uma mistura de realidade com utopia. É em períodos sombrios como aqueles que atravessaste que é importante manter a esperança e acreditar no futuro?
A - É extremamente importante. Falando da minha mãe, é uma das características que tenho dela. Não sou pessoa de ver tudo negro, não tenho sempre o copo meio-vazio, sou pragmática mas tenho tendência a pensar que se algo não correu bem é porque havia uma razão. Prefiro ver assim. A terapia também é isso. Ver uma luz. Sinto-me muito atraída por tudo o que é luminoso: pessoas, música…Procurei contrastar o peso das letras com a leveza do som. Instrumentais mais tropicais que conduzissem a ambientes mais luminosos.
O álbum é Subespécie por vir de dentro e ser profundo?
A - Sim, e também devido a um episódio. O álbum não tinha título. Não gosto de começar pelo título porque me deixa presa. Gosto muito daqueles programas da BBC que passam ao fim de semana de manhã, e naquele dia estavam a falar de subespécies. Deram o exemplo concreto da flor que cresce do cimento. Aquilo bateu-me. Pensei: é assim que me sinto. Um bocadinho negra por dentro, a precisar de um respirador, mas continuo a ser doce, a ver beleza e à procura dela. As pessoas são todas subespécies dos seus pares, dos avós, dos amores. Gosto muito da relação entre o negro e a luz e da ideia de que aquele não é o seu ambiente mas conseguiu crescer ali. Sempre me senti um pouco assim.
É uma forma de manter alguma incerteza, no sentido em que o álbum tem um fio condutor mas não é todo igual?
A - Sim, sem dúvida. Tentei até começar pelas cançōes que transmitem leveza, doce e brincalonha. Depois, tem um lado um bocadinho negro mas acabamos bem com o Útero, que é onde tudo começa.
Trabalhaste com três produtores com o objectivo de chegar a três dimensōes musicais diferentes?
A - Sim, foi mesmo isso. Pensei em dividir os três e cada um ter a sua história. Acho que as características de cada um encaixaram muito bem. Foi um trabalho difícil conciliar três produtores mas tive muita sorte. É completamente diferente quando as pessoas sabem ao que vêm e têm carinho. Já percebi que não consigo trabalhar de outra forma. Estou com 33 anos e não preciso de pensar muito sobre isto. Tive músicos incríveis que sempre ouvi a entrar no álbum e sinto-me muito grata.
Qual foi o papel específico do Tayob, do DJ Player e do Iuri Rui Branco?
A - Não quero falar por eles, mas o Iuri trouxe o lado mais tropical. A frescura que me leva para um período em que era mais nova e a minha mãe via muito o Sol Música. Foi o produtor perfeito para isso. O Tayob é alguém com quem me dou muito bem e se tornou um amigo. Sinto-me muito à vontade com ele para fazer experiências como a Mystique, em que ele tinha a ideia de fazer jogos e interacçōes. Barulhos que levassem para o universo BD. O DJ Player tem um toque de r&b electrónico e uma profundidade que me dizem muito. Explora as sombras de uma forma que gosto muito. Um foi mais tropical, o outro mais experimental e o outro mais sombrio.
O que é que nasce primeiro na tua cabeça? A voz, a palavra, o instrumental?
A - Não tenho um método definido. O que percebi neste álbum é que gosto muito de co-produzir. Sempre tive música na cabeça e se a conseguir expressar com um “pa-pa-pa-pa-pa” e não conseguir tocar, que seja. Os meus processos são assim. Às vezes vem a letra, noutras a melodia. Noutras, a necessidade de falar de um assunto. No caso da Mystique, é uma rapariga que mora na rua de baixo e que eu via passar. Ela lembrava-me a (personagem) Mystique. Estou sempre na rua a apanhar histórias, e gosto assim. Às vezes, vou ler e descubro uma palavra nova. Tenho de ir logo saber o que é.
Tu vieste ocupar terreno virgem na soul moderna em Portugal mas no Subespécie há mais do que isso. Reconheces em ti uma veia pop?
A - Reconheço, eu adoro pop. Dou bué de vezes este exemplo: estou sempre a ouvir este último álbum da Dua Lipa. Adoro os baixos, adoro tudo. Até gostava de a ir ver, apesar de ser em festival. Gosto de congas, gosto de pop, gosto de música essencialmente. Não sou uma coisa só. O EmContraste já era isso. Não tenho preconceito nenhum com a pop, e se pensarmos bem, o r&b tem muito de pop.
No Subespécie sente-se muito o calor humano. Quiseste gravar com pessoas antes de serem músicos?
A - Fico muito contente que interpretes assim. É um tempo importante para mim, uma mensagem importante para mim, e as pessoas que entraram foram escolhidas com o intuito de deixar uma marca bonita, seja no trompete ou no baixo. Participaram por carinho. Têm contas para pagar, famílias para alimentar e não me pediram nada. Ninguém me falou em valores e quando falei sobre valores, ninguém quis falar sobre isso. São gestos que guardo com muito carinho. Não houve interesse comercial e, modéstia à parte, sinto que as pessoas gostam de trabalhar comigo. Pode não suceder mais nenhuma vez.
Há uma canção no álbum chamada 90s. Tens referências clássicas desde o Stevie Wonder, à Erykah Badu e ao D’Angelo, que também já são históricos. O Slow J diz que é um ser antigo e o Valas uma alma velha. Também és assim?
A - Sempre! Tenho aqui em casa uma moldura com aquelas fotos tiradas na escola que depois se pagavam. A minha alcunha era avó. Aquilo irritava-me profundamente. Eu sempre fui uma alma velha. Já sofria por amor sem amar, quando era criança. É estranho porque tenho sempre muita esperança no futuro. Ser assim já me causou vários transtornos. Só estou bem com isso desde os 30. Sempre me senti pouco inserida.
Eu sou uma mulher negra no mundo da música. Às vezes, incomoda-me um pouco a narrativa do ser só isso, e não se falar sobre o álbum e dissecar as cançōes, mas se não se falar também nada muda.
Aceitaste isso?
A - Aceitei, e aconteceu uma coisa maravilhosa. Os meus semelhantes aproximaram-se. Percebi que não estava sozinha e há outras pessoas assim, que são essa alminha velha. Acho chato termos que ser sempre super-jovens-e-cool. As terapias ajudam muito nisso. Eu não sou uma velhinha, gosto de ser divertida, mas tenho alma de velha.
O Subespécie caminha para o ano de vida e agora há este concerto no Musicbox. É um álbum que ainda tem estrada para andar e vida pela frente?
A - Acho que sim, e preciso de acreditar nisso. Teve poucos concertos, o que não ajudou a espalhar a mensagem. Há vários concertos por fazer e como tem acontecido na minha vida, por exemplo no EmContraste, nunca nada é imediato. Vai aquecendo. É a cena da alma velha. Eu não consigo fazer um álbum em quatro meses. Os meus levam sempre um ano e meio/dois para absorver o que quero e como quero. Sinto, e quero acreditar que o Subespécie ainda tem 2024 para desabrochar. Já o domino de outra forma, já há mais ensaios e outras coisas para dar.
A maturação das cançōes é um processo dinâmico de revelação? A relação com as cançōes vai mudando?
A - Vai, vai mudando e acontece uma coisa que eu desconhecia. Cada vez que tocas e o público canta ou reage, muda qualquer coisa em ti. É como comprares um presente para uma pessoa: compras, mas não vais super-confiante na reacção. E depois a pessoa adora. Há cançōes que no início têm uma interpretação genérica e depois vão ganhando, na forma como dizes as palavras ou cantas.
É um processo de troca.
A - É muito. Às vezes, também apanho uns públicos mais trancados. “Bem, estou aqui numa entrevista de trabalho”. Isso também me torna mais analítica e contida, mas estou num processo de libertação. Quantas vezes não tinha a cara mais fechada por estar tão absorvida a ouvir?
Como boa ouvinte de música que és, o que é que tem palpitado?
A - Estou fascinada com um álbum de 2020 de uma cantora chamada Rae Khalil, produzida pelo Anderson.Paak. E no outro dia, o meu guitarrista também me mostrou a Bel Cobain, de quem gostei muito. Ultimamente, ando mais virada para cantoras femininas do que vozes masculinas. Sabe-me melhor.
Como te sentes como mulher negra no meio da música?
A - Como é que hei-de dizer? A expressão “mal necessário”. É assim que me sinto, e espero não estar a ser mal interpretada. Já me aconteceu, às vezes a transcrição das declarações altera a interpretação. Eu sou uma mulher negra no mundo da música. Às vezes, incomoda-me um pouco a narrativa do ser só isso, e não se falar sobre o álbum e dissecar as cançōes, mas se não se falar também nada muda. Sinto que essa narrativa por vezes é explorada, assim como por vezes é generosa nas intençōes. Deixa-me triste que o meu país avance tanto em algumas questōes e noutras não. É paradoxal. Tenho visto os debates (para as eleiçōes) e parecem uma batalha de rap. É esquisito. Sinto que temos passar por isto para podermos chegar ao nível seguinte: não ser assunto, mas para isso ainda é preciso gerar muito assunto. Sou de quase todas as bandeiras, mas a minha bandeira é a da aceitação.
Como é que uma artista de média dimensão faz vida da música?
A - Viveres disto hoje em dia é estar preparada para dos cinco jantares de amigos ir só a dois. Artistas da minha dimensão têm de ter grande amor, inteligência financeira aguçada, fazer trabalhos quando aparecem, e expandir um pouco, seja com publicidades ou outro tipo de projectos relacionados com música. Tens que gostar mesmo senão a frustração vai sobrepor-se. Às vezes, há artistas de quem gostas imenso e de repente fazem uma mudança muito estranha, quando às vezes é só uma necessidade de aumentar os rendimentos. Acho que isso a mim me traria uma profunda depressão. Posso vir a mudar de opinião, e tenho vindo a pensar muito nisso, mas prefiro fazer uma gestão com o cinto mais apertado, e não fazer tantas coisas como gostaria, porque acredito que um dia a minha música me possa levar lá. E dessa forma, continuo a ser feliz. O Sam (The Kid) diz uma coisa que me bateu muito que é “eu sei que sou feliz porque tudo o que faço faria de borla”. Não querendo ser angelical e dizer que não quero ou gostava de ganhar mais. Todos queremos, mas viver da música não é bem viver, é sobreviver. Para viver, já é preciso ser mais mainstream e fazer certas concessōes. Não seria feliz dessa forma.