Alan Sparhawk - White Roses My God
A história é contada por Alan Sparhawk e ajuda a explicar como encontrou uma voz para além do luto: “Os miúdos tinham a caixa de ritmos e o microfone montados no estúdio. Por vezes, recebiam os amigos em casa e gravavam-se a si mesmos. Trouxe-lhes um sintetizador e um afinador de voz para terem mais opções para inventar, mas em pouco tempo a minha curiosidade venceu e dei por mim a testar secretamente possibilidades com ferramentas desconhecidas, a improvisar, a mexer nos botões até que algo resultasse e se formasse uma canção.”
A perda de Mimi Parker, sua companheira de vida e nos Low, após uma longa e desgastante batalha contra um cancro nos ovários, é o parto de White Roses My God, mas enquanto os dilacerantes derradeiros álbuns da banda - Double Negative, de 2018, e sobretudo Hey What, de 2021 - enfrentavam a desintegração e a perda, Sparhawk lida com os primeiros dias do resto da sua vida como uma criança a aprender a andar de bicicleta.
Apesar de trechos como Heaven herdarem desse vazio insubstituível, o fim é um recomeço. As experiências com vozes robotizadas pertencem a esse recreio em que Sparhawk se viu na pele dos filhos a tentar sem medo do ridículo para reaprender e reintroduzir-se, antes de mais a si mesmo. Porque, se nos Low a solidão era vivida a três e no final a dois (Hey What fora o primeiro álbum gravado apenas por Sparhawk e Mimi Parker), em White Roses My God resta apenas o guardião do farol e o seu laboratório sensorial.
Can you feel something here?, pergunta de forma repetida em Feel Something, enquanto a voz flutua entre diferentes tonalidades. A questão proverbial faz ricochete nas paredes, como um “isto faz sentido?”. Se faz, mas como tactear no escuro e não ainda como cerimónia fúnebre. As comparaçōes com as operaçōes para sintetizadores de Neil Young nos anos 80 fazem sentido mas é o próprio Sparhawk quem aponta prazeres mais recentes de Childish Gambino aos 100 Gecs. O oxigénio de Alan Sparhawk está na infantilidade. Há vida para além do luto e da morte natural dos Low.
Ezra Collective - Dance No One's Watching
Todos os planetas de Dance No One's Watching gravitam em torno do corpo. O pulsar afro-latino de The Herald, o afrobeat de Ajala, a salsa de Shaking Body, o hip hop de Street Is Calling e o sopro heróico dos metais de Hear Me Cry desaguam no corpo sem precisar de grandes justificaçōes. Música física de emancipação espiritual para dançar a céu aberto sem hierarquia sociais. As cançōes do Ezra Collective são movidas por energia física e nascem da reciprocidade entre palco e público para depois serem fixadas em estúdio, mas o processo de gravação também tem os seus requintes.
O tronco afro-beat de God Gave Me Feet ganha brilho imaterial na voz de Yazmin Lacey. A jóia da Castafiore é No One’s Watching Me, monumento soul exponenciado por Olivia Dean para o grande livro inglês da soul de Shirley Bassey a Dusty Springfield e Amy Winehouse. The Traveller faz dos sintetizadores de Fade, de Kanye West, um delicioso interstício para suturar as pausas naturais de um concerto.
A determinada altura, ouve-se uma voz dizer “you can’t be angry when you dance”. Dançar expōe-nos ao ridículo e quando nos rimos de nós mesmos, perdemos o auto-controlo e, por consequência, o medo do outro. As consequências desta roda livre de êxtase são políticas mas o impulso não é panfletário ou de causas. Pelo contrário, é o ritmo a ser usado como força irresistível de aproximação, mais eficaz que muitos discursos.
Um ano depois de terem vencido o Mercury Prize com Free Now, Dance No One's Watching é o melhor e mais completo álbum dos Ezra Collective. Incansável, pleno e oleado. Haverá prémio maior do que a superação?
Recomendaçōes não-algorítmicas
Rahim Redcar - HOPECORE
Héloïse Adélaïde Letissier não esconde a crise profunda de identidade. Ao anunciar-se como Rahim Redcar, queixou-se de continuar a ser tratada como Christine & The Queens e de como isso a afectou. Redcar já tinha sido a assinatura do desinspirado les adorables étoiles, seguido há 15 meses do titânico PARANOÏA, ANGELS, TRUE LOVE - um dos mais audazes pedaços de pop dos últimos tempos, embora pouco reconhecido como tal -, devolvido a Christine. Tantas metamorfoses não ajudam a seguir-lhe os passos sem a perder de vista mas há um fio condutor. Christine, ou Rahim Redcar, declara guerra aos fantasmas com muniçōes artísticas. O que é HOPECORE além de uma forte rajada de esperança na aceitação individual e transformação colectiva? Um bar aberto de voguing, que mergulha na cultura de clube, musical e social, da comunidade LGBT+, com uma ópera de vinte minutos a romper com as lógicas formais. Música física de motivos políticos.
Mustafa - Dunya
Tudo começa pela imensidão frágil de Mustafa. Uma voz magnética, próxima de Deus e da absolvição, servida por roupagens simples. O vagar lento tem o mesmo combustível de Bon Iver e segue-lhe a reflexão espiritual. A estreia de Mustafa em álbum é uma colecção de crónicas da intimidade, como um diário-canção de experiências traumáticas e reparaçōes, mediadas pelas cançōes. Para não deixar dúvidas de que esta dor não é encenada, vem do peito. Mustafa prometia e Dunya é um pequeno-grande furacão.
Broadcast - Distant Call - Collected Demos 2000-2006
Última apanha de maquetas dos Broadcast, com dois inéditos encontrados por James Cargill após a morte de Trish Keenan em 2011. É da vocalista que vem a herança afortunada destas maquetas reduzidas ao osso. Cançōes de embalar para escutar à luz da cabeceira, tão próximas do canal auditivo, que ressoam como um fantasma amigo a pairar. E agora sim, apagou-se a luz dos Broadcast.
Tiago Sousa - A Thousand Strings
O segundo álbum de Tiago Sousa em 2024, depois do notável terceiro volume da série Organic Music Tapes, é uma cascata de melodia e ciclos repetitivos, na mais fina linhagem de compositores como Terry Riley, que interage com a presença e o abandono como estados humanos de reciprocidade. A Thousand Strings é composto por duas peças hipnóticas e crepusculares exaltantes das propriedades criativas do pianista.
Inóspita - E nós, Inóspita?
O trocadilho fonético engana. Não há nada de inóspito aqui. Bem pelo contrário, são águas de setembro a transmitir serenidade e limpidez. A sensação de bem-estar não se confunde com vulgaridades terapêuticas. A prática da guitarra, enquanto gerador de emoções e não de virtuosismo, transmite brilho e luz. Muita luz. É um disco de bom rigor, só possível em solidão. E não por acaso, há uma versão de Só, de Jorge Palma, no final da história. Podem fechar o verão.
Kubik - Circus Mundi Decadens
Um rastilho de dubstep polvilhado com scratch seguido de uma valsa. Fanfarras circenses, hip-hop instrumental, a autonomia do jazz e a jovialidade do rock. Música com olhos de Tim Burton, ou o caos segundo Victor Afonso. Como no cinema, o mais importante não é o final da história - a decadência humana enquanto guia do fim da espécie - mas antes a forma como ela é contada. Peça fértil em colagens, de Circus Mundi Decadens nunca sabemos o que esperar por diante. Se é para ir, que seja em farra.