Na primeira versão do título, reparada a tempo, escrevi Vampire Weeknd em vez de Vampire Weekend. Nos últimos anos, gastei alguma tinta com The Weeknd mas desde o final da digressão europeia de Father of The Bride, a 26 de novembro de 2019, que os Vampire Weekend não me passavam pelas mãos. A razão: os álbuns dos Vampire Weekend são muito espaçados. Dois anos entre o homónimo de estreia (2008) e Contra (2010), três para Modern Vampires of The City (2013), seis para Father of The Bride (2019) e agora cinco para Only God Was Above Us.
Longos intervalos trazem perfeição em vez de pressa. 16 anos depois se revelarem coqueluche do indie novaiorquino, cresceram mas não renunciaram à graciosidade. Já são adultos na sala mas ainda pōe os dedos na ficha para se expor a choques elétricos. Only God Was Above Us tem o melhor de dois mundos. É um festival de mutação pop, de barroquismos punk, formam de hip-hop da escola dos 90 ou raga indiano, maturado de uma perspectiva académica. Talvez por isso, cançōes como o punk literato de Ice Cream Piano, o barroquismo da estupenda Classical, a pop de câmara de Capricorn ou Capricorn saibam a reencontro.
É uma trajectória salpicada pela auto-citação, mas não um anacronismo. “Each generation makes its own apology”, deixa Ezra Koenig em forma de bordão na surfista do espaço Gen-X Cops. Sentir-se-à ultrapassado? Ou será uma redenção? A frase é ambígua, a canção deliciosa. Como em toda o espaço da sua obra, é um disco de sincronia entre recomeço e saber acumulado, traduzidos numa coexistência entre espontaneidade adolescente e racionalidade filosófica. Cânone e experimentalismo sem receio do formalismo ou incómodo em rompê-lo.
A colecção de fragmentos não esvazia a organização dos Vampire Weekend. Continua a ser uma banda ímpar e corajosa na arte do restauro. Only God Was Above Us tem tanto de regresso às primeiras madrugadas como de projecção de um horizonte luminoso. Como sempre, como dantes, a canção de geometria clássica é a matriz mas o álbum não se priva da fantasia nem se esconde da catástrofe.
O passado é um país presente. Os fantasmas de uma Nova Iorque defunta são a família escolhida por Ezra Koenig para revisitar a memória. A história de um sobrevivente do desastre aéreo do voo Aloha Airlines 243, entre Hilo e Honolulu, no Havai, é uma representação da necessidade de evoluir da autópsia para o renascimento. Os oito minutos da litúrgica Hope são a síntese perfeita de Only God Was Above Us enquanto acto de fé e dos Vampire Weekend enquanto organismo vivo. Um sinal reluzente da urgência de reformular o real e prenunciar um novo ciclo.
"I hope you let it go
I hope you let it go
Our enemy’s invincible
I hope you let it go”
Os Vampire Weekend não têm álbuns fracassados ou irrelevantes. Todos merecem louvores e reportam uma época particular de vínculo entre a íntima fracção de uma banda e o infinito colectivo. De Vampire Weekend a Only God Was Above Us há uma curva vivaz do tempo. Talvez seja um dos seus discos mais importantes na redefinição dessa moldura. No voo de longo curso maior do que alguns dos seus mestres (os Talking Heads só estiveram activos 13 anos) persistem no entusiasmo da descolagem. Era mais seguro ficar em terra mas em Only God Was Above Us deixam-se levar pela ascensão. Notável.
Columbia/Sony Music
Recomendaçōes não-algorítmicas
Pharrell Williams - Black Yacht Rock, Vol. 1: City of Limitless Access
Pharrell Williams nunca precisou de disfarçar. Sempre pareceu mais novo e nunca perdeu o contacto com a modernidade. Black Yacht Rock, Vol. 1: City of Limitless Access é a primeira vez que o ouvimos a soar um homem de 50 anos (51, para ser preciso), com os motivos rítmicos há 25 anos a transformar pop mas, e essa é a novidade, com melodias ressonantes do classicismo americano de figuras como Michael McDonald, Christopher Cross ou Brian Wilson.
Sinkane - We Belong
Sinkane devolve exuberância perdida em álbuns anteriores com um banquete multi-género de funk hedonista, afro-beat pulsante e punk dançável. Como se Stevie Wonder tivesse passaporte sudanês e Nova Iorque fosse a capital da Nigéria algures em 1982.
Benjamim - Berlengas
Berlengas não é um disco de cançōes como os anteriores de Benjamim. É uma viagem pelo campo das hipóteses por quem vive dentro do som e dorme a sonhar com sintetizadores. Inspirado pelo retro-futuro dos Kraftwerk, Benjamim atira: O Futuro foi Cancelado. Soa a gesto de rejeição do passado e desconfiança no amanhã, mas também a sátira surrealista. As Berlengas representam fantasia e escapismo para um outro cosmos.
Grace Cummings - Ramona
Grace Cummings viajou de Melbourne e à espera tinha a grandiloquência da produção e arranjos de Jonathan Wilson. As grandes cançōes Ramona vêm embrulhadas numa voz poderosa e numa cenografia majestosa. Podia ser um encontro entre Angel Olsen e Nina Simone.
Leonor Baldaque - A Few Dates of Love
Bela surpresa a de A Few Dates of Love. Na capa, vislumbramos o fantasma de Lana Del Rey mas A Few Dates of Love encapsula outras vozes como a de Laura Marling e paixōes como a literatura e o cinema (Leonor Baldaque trabalhou como actriz de Manuel D’Oliveira). Um disco de romantismo folk assinado por alguém a nascer de novo dentro das cançōes.
Drahla - angeltape
O pós-punk angular dos Drahla não traz novidades mas o vigor e a pujança da banda de Leeds destacam-na do pelotão de revivalistas. angeltape não reproduz uma estética e uma época, transmite uma vivência desconfortável e a reactiva. Um álbum como este teria potencial de clássico em 1979. Lembram os Martha & The Muffins - é um elogio.
Evaya - Abaixo das Raízes deste Jardim
No período de grande fulgor da música portuguesa, o único risco é não haver espaço para todos os que o reivindicam. Um álbum tão avançado como Abaixo das Raízes deste Jardim é uma planta em risco de não crescer pela falta de um clima apropriado e, no entanto, tem tudo o que precisa: identidade pop transgressiva, domínio da maquinaria, alma humana, causas bem defendidas e uma identidade maior que a soma de virtudes. “É que hoje acontece uma grande festa dentro de mim”. Evaya merece.
Fema - Homnia
A simbiótica entre homem, máquina e natureza atravessa Homnia, cartão de visita de Fema. Mini-álbum de reflexão existencialista, é um manifesto pela “necessidade de mudança e do ímpeto de luta por um mundo mais empático, livre e comum” interligado entre tradição folclórica e modernidade digital.
Julius Gabriel - Tales From The Subterranean
Em 2024, a pandemia ainda faz efeito. Sem ela, Tales From the Subterranean não teria existido. “O silêncio fez Julius ouvir o som, mas depois precisou de perceber como o poderia amplificar, criar e gravá-lo sem perder as características eletroacústicas da ideia”, explica o texto de apresentação. A energia é animal, o saxofone eufórico. Uma luz que entra do fundo do poço.
Shabason, Krgovich, Sage - Shabason, Krgovich, Sage
Joseph Shabason, Matthew Sage e Nicholas Krgovich formam um triângulo dourado. Três personalidades em perfeita harmonia a desenhar camadas de som para as histórias vocalizadas pelo primeiro soltarem pesos com ironia e muita bibliografia pop como na vénia a Coolio em Patti.
Jane Weaver - Love In Constant Spectacle
A psicadelia faz par com a canção indie romântica e o romance é sólido. Em Love In Constant Spectacle, Jane Weaver é piloto e contadora de histórias. O álbum mais pessoal da sua expedição continua a acumular milhas espaciais.
Alina Bzhezhinska and Tony Kofi - Altera Vita
A perícia do saxofone tenor do conceituado Tony Kofi com a magia da harpa de Alina Bzhezhinska, seguidos por uma percussão no tempo e modo certos. Em Altera Vita, cada segundo de som é criterioso, sensível e bem tratado.
Memorials - Centre Pompidou EP
No início deste ano, o Centro George Pompidou, em Paris, convidou os Memorial a musicar uma obra à sua escolha. A escolha de Verity Susman (Electrelane, Vera November) e Matthew Simms (Wire, Better Corners, It Hugs Back, UUUU) para sobre a instalação Precious Liquids de Louise Bourgeois. A deambulação transporta-nos directamente para as paredes do museu.
OM Unit - Fragments EP
A mestria de OM Unit é inesgotável. Fragments explora a cultura de diferentes formas com saber, inventividade e a marca profunda da subcultura de Bristol deixada em Jim Coles.
DJ Krush & Toshinori Kondo - Ki Oku
Reedição do álbum de “trip-jazz” de 1996 do produtor DJ Krush com o trompetista Toshinori Kondo. O império pacífico inato à cultura nipónica não esconde passagens de agitação instrumental com um parêntesis chamado Sun Is Shining - esse mesmo, o boletim meteorológico de Bob Marley.
Petingas - Arroz Malandro
Receita deliciosa para a sociedade de João “Ka§par” Pires e Fabrizio “Terra Chã” Reinolds, resultante de anos de cumplicidades aos comandos da mesa de mistura, a trocar discos, referências, inspiraçōes e transpiraçōes. Está cá tudo, do deep house à Suave Lambada, com o sentido de humor de quem faz isto para curtir.
DJ Lynce - Live@Bola de Cristal
A 24 de abril do ano passado, DJ Lynce participava no evento Bola de Liberdade. Live@Bola de Cristal é o registo desse caldeirão de ácidos e breaks, editado com o selo da Príncipe.
Eccentric Soul: Consolidated Productions Vol. 1
Trinta anos de história da Consolidated Productions, um dos selos de música negra - maioritariamente soul - mais sólidos e duradouros. Eccentric Soul: Consolidated Productions Vol. 1 revisita a a história musical da companhia liderada por Mel Alexander, através de clássicos como Knock On Wood.
Resonance - Valediction
Valediction não é uma banda-sonora mas a intuição cinematográfica de Javier Pérez Rodríguez leva-a até ao caminho das estrelas. Uma fantasia láctea ressonante de Vangelis, Jean Michel-Jarre e Brian Eno.