Após anos de frustração no ringue dos concursos de canto e a interpretar repertório ocidental, Sheherazaad entrou em blackout. Entregou-se ao silêncio como forma de luto, depois de ter descoberto a história do colonialismo inglês.
O corpo passou a ser a ferramenta de expressão, optando pelo teatro experimental e pelas danças de Bollywood. Ao mudar-se para Nova Iorque para frequentar a universidade, deparou-se com uma comunidade artística sul-asiática mais radical. Começou a seguir artistas como os Swet Shop Boys, a interessar-se pela história da contracultura eletrónica asiática do Reino Unido e acabou por se cruzar com Arooj Aftab. A paquistanesa, autora dos notáveis Vulture Prince e Love in Exile, este partilhado com Vijay Iyer e Shahzad Ismaily, motivou-a a “recalibrar a voz”.
Já na California, reabilitou o aparelho vocal e estudou árabe, hindi e urdu. Em 2020, o projecto Khwaabistan reflectiu esse processo gradual de transformação. Arooj Aftab entusiasmou-se e ofereceu-se para produzir o próximo voo de Sheherazaad. Qasr é o fruto de quatro anos de trabalho à distância, intrometidos por uma pandemia.
Mini-álbum de cinco actos de liberdade, usa a linguagem como veículo transmissor da mudança. Não é preciso traduzir os idiomas para descodificar o discurso. O divórcio do inglês enquanto “linguagem emotiva”, a racialização das mensagens políticas, o avanço da xenofobia e o crescimento do preconceito, como arremesso do medo, pesam na consciência e afirmam a urgência de descolonizar mentes.
O nomadismo de Sheherazaad devolve-a a uma ancestralidade que enaltece as fundaçōes para expor diversidade e imagina, com assombro e fantasia, uma geografia sem quartéis nem barricadas. Qasr é um manifesto identitário de dimensão metafísica, que usa a tensão interna como reactor emocional às narrativas instituídas e resposta ao conflito de personalidade de uma ásio-americana, educada em São Francisco, a ouvir Bollywood e Olivia Newton-John, e a assistir a programas como American Idol.
Qasr tem uma aura cinematográfica de ligação com o tempo e o espaço que se relaciona com alguma da melhor produção recente como Vidas Passadas ou Dias Perfeitos. Contemplação, observação e auto-reconhecimento para compreender o outro. O manto silencioso de Qasr (“fortaleza”) é uma auto-defesa da insanidade colectiva, imprescindível ao reencontro de Sheherazaad com uma herança cultural abafada pela soberania política e económica ocidental.
É um álbum de atenção ao detalhe, misterioso e fumarento, de busca por uma autenticidade desintoxicada de hábitos de consumo. Íntimo, frágil e perturbador como na magnífica Mashoor (“famoso”). A peça central de Qasr questiona o culto da celebridade e a fama como causa. Sheherazaad percorre o caminho inverso da diáspora e desafiam para uma folk quase religiosa, dialogante com o flamenco. É uma canção fabulosa e arrebatadora, com poder de desafiar para o álbum e investigar uma personagem em fluxo constante entre presente, nostalgia (como em Koshish), e reivindicação de um novo futuro.
O pizzicato de Dhund Lo Mujhe (“à minha procura”) é o filtro circense do olhar cáustico sobre a forma como a insatisfação é canalizada para celas individuais, a partir da experiência de uma imigrante. Este lugar é físico mas sobretudo humano. E é antes de mais e depois de tudo, uma busca pela emancipação pessoal e comunitária. Qasr fala por conflitos migratórios não resolvidos num passado recente e hoje ameaçados por políticas de medo. Um gesto nobre pela liberdade de expressão e corajoso pela necessidade de ser. A fortaleza pessoal de Sheherazaad tem portas abertas mas o enredo misterioso não se resolve assim em 23 minutos e aguarda pelos próximos episódios.
Edição Erased Tapes
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