O retrato do biénio 23/24 é confrangedor para a jovem guarda. Quando a colheita de recém-chegados nos dá excentricidades Primark como Last Dinner Party ou Chapell Roan, isso diz muito da seca de novidade e sobre a pré-fabricação do nov. Não é um acaso. A trituração das redes sociais e a tirania das plataformas de streaming esmagam o risco e neutralizam o tempo necessário à tentativa e erro. Ensaiar novos rumos implica experimentar e falhar. Sem margem de erro, tudo se resume a uma mimética de hipóteses pré-estabelecidas e receitas confortáveis. Repetição. Se não forem os mais novos, destituídos de vícios e vaidades, a contrariar as regras, quem será? O trânsito não está a abrir novas vias porque a circulação está condicionada pelo algoritmo. A indústria rentabiliza o tecnocapitalismo que ajudou a refundar enquanto sistema vigente, mas, ao contrário de outros modos de protesto, eficazes q.b. - embora quase todos eles assentes na táctica do grito e não no debate ou troca de ideias - na música popular os efeitos da contestação aos modelos de streaming não resultam num movimento sólido de recusa e reforma. Porquê?
Talvez porque essa côdea de atenção alimente barrigas de aluguer e a lavagem cerebral tenha sido tão eficaz que o modelo se tenha pacificado e, como qualquer ditadura, não levante oposição nem alternativas. Ahhhhhhh! Ainda há quem defenda que criação e distribuição são dois processos apartados. Como se isso fosse possível. Os modelos de comunicação paralisam a pesquisa criativa e fazem da música um acto inconsequente num fluxo constante de acontecimentos sem tempo para o silêncio nem espaço para a respiração? Pessimismo? Realismo, mas a porta de embarque ainda não se fechou.
Se perguntarem a este desconhecido que novos contactos guardou na agenda nos últimos meses, ele responde: o r&b quimérico e frágil de Mk.Gee, a fúria punk do rap poliglota dos Kneecap, e ainda assim nenhum destes é um renovador como James Blake, Frank Ocean, Tyler The Creator ou Kaytranada, e os O., ou seja o saxofonista Joseph Henwood e a baterista Tash Keary, produzidos e impulsionados por Dan Carey da mesma Speedy Wunderground de onde despontaram Fontaines D.C e Squid. Pós-modernos do novo-velho-rock que, sejamos francos, tem muito mais de devolução ao pecado original e restituição dos valores sociopolíticos - o tal rock de combate reivindicado pelos Clash - do que de transformador.
Tal como há vinte anos, Franz Ferdinand, Kaiser Chiefs, Bloc Party e Art Brut acenavam com uma segunda vaga do revivalismo propiciado no início do século, os O. recolhem os estilhaços do rock explosivo de Idles e abrasivo de Fontaines D.C., mas também de um movimento jazzístico londrino que se fartou dos livros e saiu para a rua. É em Londres que a acção de Weirdos acontece, no choque eléctrico entre o rock e o jazz já ensaiado por exploradores contemporâneos de terras sem lei.
A liberdade de movimentos desobstruiu as estradas secundárias por onde Black Country New Road, Black Midi, Jockstrap ou Squid ensaiaram modelos híbridos de explosão e independência de género. A potência destes combos está na autonomia de expansão e não na limitação de fronteiras. Graças a esta vaga de bandas para as quais o rock é um meio transmissor de corrente, e não um fim em si, a arte eléctrica foi devolvida à casa de partida. Ser livre é a única promessa em habitat jazz, rock ou digital.
Os O. dispensam palavras. 176 homenageia a imprevisibilidade da carreira entre Penge e a estação de Tottenham, e Green Shirt foi inspirada na camisa de flanela verde favorita da baterista, que depois de tantas vezes perdida, foi devorada por um cão. E tudo isto podia não passar do exercício livre de duas pessoas a tocar juntas, como quem namora no parque, mas a insurgência de Joe e Tash está também em saberem rir-se de si mesmos.
De uma dupla de bateria e saxofone, fazem parecer uma banda completa sem fronteiras, limites ou barreiras, como nos melhores dias dos White Stripes. Weirdos dispōe de energia inesgotável e livre trânsito entre a lubrificação do rock, a autonomia do jazz e a pesquisa da electrónica. Em 176, os O. dançam com o fantasma de Shabaka Hutchings sobre as cinzas dos Comet is Coming. Os recursos permitem-lhes tocar drum’n’bass como uma banda de hardcore em TV Dinners e Micro, e saborear o veneno da serpente em Whammy. A prática vem do jazz mas os ouvidos foram educados por uma dieta variada e explosiva de sabores.
Weirdos é musculado, vibrante e ruídoso. Capta a energia do palco em estúdio, sem truques de hiperprodução. Música de auspícios cósmicos, transcendente e insana, que exclama coragem e grita na cara para perdermos o medo de saltar.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Nuno Beats - Sai do Coração e Deejay Veiga - Tudo é no Guetto (Príncipe)
Injecção regular de sangue quente da Príncipe em dois braços de um mesmo corpo. Em objectos anteriores como Chá Preto de Nigga Fox e 95 Mindjeres de Nídia, o dever do risco foi activado na busca por novos prazeres: o refinar da linguagem, o polimento da sujidade, a desaceleração e a quebra do ritmo. Propriedades que descaem de Sai do Coração, EP simples e fluído, sem artifícios. Se a história da Príncipe vem do livramento, a conquista da longevidade trouxe o direito a pausar. Se houvesse uma morada para Nuno Beats, seria a Praça do Chill. Querem experimentar um sabor novo? É pedir N’Dengue da carta.
Sai do Coração liberta o DJ das paredes e permite-se ser livre em horários de sol. Mais canónico para os padrōes da Príncipe, Tudo É no Guetto regressa à casa de partida. Deejay Veiga tem sangue de primeira geração da editora e peças irresistíveis como Boiler Room, com teclados house brilhantes dos anos 90, falam pela história de uma editora que, no seu tempo e lugar, não é menos importante do que a Ama Romanta ou a Fundação Atlântica. Talvez até mais pelo estoicismo
Sufjan Stevens - Seven Swans (reedição)
"Como Elliot Smith depois de dez anos de catequese", descrevia a Spin sobre Seven Swans em 2004. Sufjan Stevens penetra em terreno sagrado com fé, devoção e mão própria. Os diálogos com Deus não são apenas tementes, questionam a religião e as suas perplexidades, mas Stevens tem o poder de desarmar uma guerra e reduzi-la a uma concordata. Pode não ser visto como uma Bíblia na sua obra mas é um grandíssimo testamento.
D'Eon - Leviathan
Há muito que Chris D'Eon vem perscrutando a música religiosa à sua maneira. Leviathan é uma belíssima peça de barroco digital. Um halo sincronizador da plasticidade de texturas com a gravidade espiritual, repleto de mistérios nas cavidades.
Kronos Quartet & Friends Meet Sun Ra - Outer Spaceways Incorporated
A fundação Red Hot convida o Kronos Quartet a examinar e reformar o radicalismo de Sun Ra num tempo em que algumas preces ganham renovado sentido. Não necessariamente pelas melhores razōes, mas a carência de mestres e visionários para além da espuma é de sempre e não só de agora. Os amigos de David Harrington são escolhidos pelo ouvido. Georgia Anne Muldrow, Jlin, Moor Mother, DJ Haram ou 700 Bliss descendem directamente do afrocentrismo espacial e espiritual de Sun Ra, mas é Blood Running High, de RP Boo e Armand Hammer, a lancha futurista de Outer Spaceways Incorporated. A melhor vénia é o gosto pelo risco.
King Krule - SHHHHHHH!
O EP SHHHHHHH! só tinha estado disponível m edição física limitada. Também por isso, era um coleccionável mas não só. Está aqui o King Krule de que mais gostamos: ansioso, ensanguentado e sarcástico. Achtung! e Slurp falam por si. A Soup come-se no fim.
Unwound - A Single History 1991 - 1997 (reedição)
Dez anos de Unwound distribuídos por singles tão diversos como a trepidação da primeira maqueta, versōes dos Minutemen e colagens como The Light at the End of the Tunnel is a Train. Testavam-se alternativas ao rock alternativo, e quando se olha para o edifício pós-hardcore, catártico e exclamado, os Unwound estão na base porque sempre souberam porque gritavam.
Th Blisks - Elixa
A matéria de Elixa é irreal. Será retrofantasia ou válvula de escape? As paralaxes Lynchianas de Amelia Besseny casam bem com a baixa velocidade de Cooper Bowman. A atmosfera é misteriosa e lúgubre mas o mistério seduz. Os blocos instrumentais chamam pelo downtempo dos anos 90 mas o ritual está mais perto do pós-punk e das poçōes mágicas do dub. Primeira estranha-se e depois continua a estranhar-se mas é esse o poder de atracção dos Th Blisks.
Tim Koh & Sun An - Salt And Sugar Look The Same
18 pequenas peça de colagem de micro-sons do multi-instrumentista Tim Koh e do desenhador de som Sun An. O tom é infantil quase como uma VHS da adolescência. Em época de fim de aulas, weeeeeeeee!