No princípio havia o reconhecimento do território. A admiração pela individualidade e a organização colectiva da informação. Londres como centro europeu do reencontro com o jazz como organismo vivo e interseccional. O fascínio por um carrilhão de músicos com formação técnica indispensável mas ouvidos bem abertos a outros ecossistemas culturais e sociais. O pan-africanismo do afro-beat, as transmissōes piratas da Rinse FM a difundir a electrónica por inventar, e o hip-hop como força imparável de ritmo e democracia.
Além de colectivos como Sons of Kemet, Steam Down, Nérija, Kokoroko e Ezra Collective, irrompiam personagens como Shabaka Hutchings, Moses Boyd, Alpha Mist, Theon Cross, Joe Armon-Jones, Nala Sinephro e a incontornável Nubya Garcia. Todos diferentes, todos unidos por uma cidade e uma vibração. Um ar renovado que trouxe frescura ao jazz e o devolveu a uma liberdade, elasticidade e dever de arrriscar inatos. “Don’t play what’s there, play what’s not there”, defendia Miles Davis. Esta geração restituiu a capacidade de diálogo em nome do inexplorado.
Source é apenas o segundo álbum de Nubya Garcia assinado com o seu nome de cidadã (em 2017, começara por editar Nubya's 5ive) para um currículo tão extenso mas é elucidativo do movimento expansionista da saxofonista. E se até aqui a sua marca sonora sempre partiu de encontros, afectos e reciprocidades - há quatro anos, Source era um céu aberto de jazz, afrobeat, dub e cumbia -, em Odyssey imerge em secçōes de cordas próprias de um volume orquestral que realinha a ludicidade do inaugural Source para uma solenidade operática.
Entrámos em austeridade e o primeiro indício está na tensão crescente de Dawn, reluzida pela gravidade de Esperanza Spalding. Não é apenas um álbum de frenesins ou explosōes - The Seer é a excepção. Odyssey relaxa os metais e afina as cordas. Water’s Path é viabilizada apenas à base de pizzicato e de um violoncelo providenciado pela Chineke! Orchestra.
As cordas moldam o teatro de operaçōes. Em We Walk in Gold, Georgia Anne Muldrow transmite a comoção para o verbo com a dramaturgia que lhe é inata. A liberdade etimológica do jazz é propagada para a afirmação identitária. É um grito de sofrimento e exaltação de independência e livre-arbítrio. Não por acaso, todas as vozes convidadas a discursar em Odyssey são mulheres. Já a Chineke! Orchestra, presente em sete das doze peças, é formada apenas por músicos negros ou de minorias étnicas.
Escolhas explicativas das intençōes desta odisseia espacial por chão tumultoso. Quase uma década depois de “o novo jazz londrino” entrar em modo de voo, como contra-resposta ao fechamento do Brexit, Odyssey transporta-nos para outro nível de grandiosidade. Já não é apenas o jazz como recreio mas como declaração e comoção. Uma magna carta de grande profundidade e elevação. É Nubya Garcia a aceder ao território dos maiores, como Kamasi, Herbie, Miles, Mingus ou Parker na pele de uma mulher instrumentista.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Jamie xx - In Waves
In Waves parte do modelo tradicional de canção mas em vez de se perder nas pistas, o bilhete é de regresso a casa. Numa fase inicial, We're New Here, com Gil Scott-Heron, e In Colour exploravam novos motivos rítmicos e sensaçōes sonoras. Este Jamie XX já não persegue a vanguarda nem o prazer do desconhecido. Talvez seja da estaganação do próprio meio. Está mais próximo da conexão humana de alguém como Fred Again. Como este, repesca o house redondo dos anos 90 e o garage. Grandes refrães para gerar emoçōes e agregar multidōes. Como produtor, tem a habilidade de relacionar com mestria vozes e samples nos eixos rítmicos sem perder o tacto da matéria sensível. Dessa perspectiva, anos luz adiante do seu contemporâneo mas ainda assim In Waves não marca pela diferença como episódios anteriores. A reunião dos xx em Waited All Night é um presente e uma previsão meteorológica.
Marcos Valle - Túnel Acústico
A sensação é de prazer. Balanço, calor e movimento. Música para namorar, nadar e pedalar. Feels So Good, um dos refrescos de Túnel Acústico, com o histórico Leon Ware, fala por como um todo granítico de relaxe e leveza. Aos 81 anos, o seguro de vida não morre de velho. Marcos Valle continua a ser Marcos Valle.
Thurston Moore - Flow Critical Lucidity
A técnica e ressonância é inseparável de Thurston Moore. Ciclos torrenciais de guitarra e piano olham para Flow Critical Lucidity como uma escultura mutante. Laetitia Sadier (Stereolab), Deb Googe (baixista dos My Bloody Valentine) e a autora da capa Jamie Nares pincelam o álbum mas esta música tem assinatura do guitarrista. Estamina do punk canalizada para galerias de artes.
Spresso - Pretty Penny Slur
Figura omnipresente numa certa Londres subterrânea, Mica Levi junta-se a Alpha Maid para um Spresso. O primeiro álbum do duo é breve e fulgurante. 16 excertos de pós-punk clínico e abrasivo, de admiração não-reverente pelos Joy Division. Por vezes, os trechos podem parecer incompletos e gerar frustração, mas são apenas o espelho sónico do estado emocional de Levi e Maid.
Tim Reaper - In Full Effect
Primeiro álbum de jungle da Hyperdub em vinte anos rejuvenesce o eixo jungle/hardcore das rádios piratas circa 93/95. Frenético, magistral, cirúrgico e até com uma pitada de sentido de humor legível nos títulos. Seria um clássico na época, em 2024 eleva o nível médio da reverência, apesar de nunca se dissociar da memória de um tempo pródigo.
Diogo - Eu Adoro Os Meus Amigos!
Eu Adoro Os Meus Amigos! remete-nos para uma confraternização com jantar e garrafas, mas também para os falsos amigos. Redes sociais? Também, mas não só. De qualquer forma, há um elo humano a ligar Diogo à Discos Extendes e a padrões rítmicos já familiares à editora como as culturas bass, acid e de breaks. Os sinais emocionais são de tensão e hipnose mas os requintes subliminares de humor (Caga!, Dar ao Slide) dessacralizam o exclusivo da racionalidade. As remisturas de Bleid e Velvet Skin trazem mais cadeiras para a mesa.
Roots Manuva - Brand New Second Hand (reedição)
Disco central do hip-hop inglês de final dos anos 90, plantou a semente para os anos seguintes e não só de Roots Manuva. Entre Tricky, a influência de uma certa cultura bass e de dubplates a estalar os ouvidos através de rádios piratas, e o grime (The Streets, Dizzee Rascal, Kano, Wiley), há o som de Brand New Second Hand e um discurso caucionário. Manuva documentava a injustiça e desigualdade com naturalidade e poesia. Crónicas do real extraídas da rua com técnicas jamaicanas de patois. Manuva haveria de vencer o Mercury com o sucessor Run Come Save MeR - mais perfeito e polido - mas foi Brand New Second Hand que o pôs no mapa como alguém à parte a reclamar por atenção para os seus. O álbum certo no momento indicado.
Perfume Genius - Too Bright - 10th Anniversary Edition
Clássico imediato da fragilidade, continua a impressionar pela maneira como todas as peças encaixaram. O confronto de Mike Hadreas com os seus demónios, a produção majestática de Adrian Utley (Portishead) e a imagem glam de rainha, referencial do martírio mas também da volúpia queer. Magistral, Too Bright é tão teatral como autêntico. Cançōes douradas como Queen, Fool, Grid ou Longpig caçam fantasmas para se arrebatarem pelo belo e transcenderem a sexualidade de Perfume Genius para se universalizarem. Uma das grandes derivas dos últimos dez anos com estragos visíveis no irromper de uma identidade pop de género (de Christine & The Queens a Filipe Sambado) é uma boa forma de medir a vulgaridade de Chappell Roan. Não mais Perfume Genius voltou a este brilhantismo.
Nusrat Fateh Ali Khan & Party - Chain of Light
Tudo começa pela voz empolgante de Nusrat Fateh Ali Khan. Paquistanês, foi descoberto para o Ocidente por Peter Gabriel ainda na década de 80. Embaixador da cultura sufi, foi omnipresença nas muitas convocatória da chamada world music, baptizada pela Real World (de Gabriel) que agora traz à luz do dia uma colecção de gravaçōes inéditas de 1990. Um momento crítica na rota de Nusrat Fateh Ali Khan de astro local a ídolo procurado por Mick Jagger, Jeff Buckley e Eddie Vedder com quem chegou a gravar. Empolgado pelo entusiasmo, a sessão capta-o no auge das suas capacidades de namoro com o estúdio e irradiação do misticismo. Embora a descodificação do urdu e do punjabi se faça através do calor humano e da potência vocal, há um crescendo em Chain of Light para Ali Khan que o transcende.