MF Doom partiu faz agora quatro outonos, a 20 de outubro de 2000, embora a sua morte só tenha sido confessada no último dia desse ano. Se nunca soubemos tudo sobre ele em vida, não será agora que a máscara irá cair mas talvez isso ajude a explicar por que, depois de morto, nunca se tenha realmente evaporado. A partida de Daniel Dumile só evidenciou e impulsionou a curiosidade pelo vilão inspirado pelos super-heróis que virou a capa do avesso.
O amigo chegado, rapper e produtor Count Bass D chancelou MM..FOOD de “zénite criativo”. Provavelmente, está certo. O sexto álbum de um fecundo 2004 para Doom, engrenado e emparelhado com Madlib no fabuloso Madvillainy, afirmou-se como capital de um construtor de impérios. Toda a narrativa é confeccionada à base de metáforas delirantes com comida. Enquanto os episódios anteriores desencriptavam personagens ou manipulavam a linguagem, em MM..FOOD há um enredo dividido em três partes (Appetizers, Special Recipes, Entrees).
Rappar sobre comida podia parecer fútil ou inconsequente mas os ingredientes traziam segundas intençōes. A comida tinha uma leitura social mais profunda de representação da utilidade e do desperdício. Se o pendor incontrariável da caneta de Doom para a equipa dos descartados era proteína para agitar alma, o humor usado no papel de narrador da decadência é desarmante. Ao optar por um registo sereno, a roçar um tom relaxado de stand up, sabota os habituais impulsos de raiva e angústia da luta de classes própria da cultura.
Logo nos primeiros versos de Beef Rapp, Doom compara os atritos entre rappers a uma dieta carnívora - impossível não relacionar com as rivalidades entre Costa Este e Oeste, ou no duelo sangrento entre Tupac e Biggie. Há doces, como a demente Hoe Cakes ou a final Kookies, canecos tirados à pressão como One Beer, rap competitivo (Vomitspit), parodiante (I get no kick from champagne…) e severo com a vitimização de alguns rappers (Rapp Snitch Knishes). Curiosidades: a primeira edição de MM..FOOD vinha acompanhada por um prato e o álbum motivou um livro de receitas inspiradas no curso gastronómico de Doom. No detalhe está a diferença.
Dumile não se limita mastigar e regurgitar. É o cozinheiro do próprio banquete ao assumir a produção com destreza e brilhantismo. Quem melhor do que ele para escolher os produtos destinados ao prato? Vinte anos depois de se ter imposto como um clássico motivador para o rap subterrâneo vacinado para as cadeias de comida rápida, MM Food não sabe a fruta de época. Tem um gosto actual e disseminado pela cozinha de alguns dos chefs mais respeitados, de Tyler The Creator a Earl Sweatshirt ou Flying Lotus.
Se o prato principal já empanturrava, a reedição soma extras como a remistura de Madlib para One Beer, as leituras de Ant (dos Atmosphere) e Jake One para Hoe Cakes, e sete pequenos excertos de entrevista, dias antes de MM..FOOD sair do forno. E não sobrou nada no prato.
Recomendaçōes não-algorítmicas
TV On The Radio - Desperate Youth, Blood Thirsty Babes (20th Anniversary Edition)
Antes de Return To Cookie Mountain, os TV On The Radio já aconteciam e eram caso singular. A tez rock nervosa camuflava um âmago soul emocional. No arco temporal, reagiam à tensão pós-11 de setembro e apesar de serem a típica banda novaiorquina, não soavam como nenhuma outra. Em Desperate Youth, Blood Thirsty Babes, sobrepunham-se as camadas: a voz amargurada de Tunde Adebimpe, a produção vanguardista de Dave Sitek, a marcialidade da secção rítmica, caixas de ritmos precárias e um saxofone sinuoso como um rio. Adebimpe e Sitek fundiam o detalhe do som na plasticidade do texto. As palavras não eram indiferentes. O álbum arrancava a falar sobre o papel atribuído aos negros em The Wrong Way. As preocupações raciais estreitaram relações entre os TV On The Radio e outras culturas de rua, como o hip-hop. Desperate Youth, Blood Thirsty Babes ainda não é tudo o que viriam a ser mas é a proveta da aclamação de Return To Cookie Mountain e Dear Science. A objectividade do EP New Health Rock desse ano, incluído nesta reedição, serve de prólogo dos episódios posteriores.
Contour - Take Off From Mercy
Um novembro congestionado só agora permitiu apreciar o belíssimo Take Off From Mercy de Contour. A escola feita enquanto produtor de instrumentais de hip-hop é parte do processo mas o sinal verde cai para avançar por outros caminhos. Quanto mais Khari Lucas se desvenda através de cançōes, escritas com o suporte da guitarra, mais os limites de género se diluem. Contour usa a civilidade para sondar estados emocionais como a tensão, a hipnose e o excesso (“Sell me drugs, sell me drugs, I need them badly/Pleading the crowd, wearing a smile/Some minstrel madness", demanda em if he changed my name). Take Off From Mercy vive nessa ambiguidade entre contenção e rompante. Quando se enleva, pōe-se à altura do James Blake mais brilhante.
Cavalier & Child Actor - Cine
Cavalier e o produtor Child Actor encontram-se no momento certo através da Backwoodz Studioz de Billy Woods. A explicação para Cine está na imagética ambígua e misteriosa de um álbum manejado como autobiografia em movimento. Cavalier protagoniza e escreve, Child Actor realiza. E se a câmara segue os movimentos ágeis do guião, o verbo reage em simbiose com os cenários proporcionados. As cenas são passadas debaixo de um fogo vivido, como se quer no rap de consumo lírico. Quando se diz que no rap o que é dito voltou a importar, aqui está uma das razōes.
Heltah Skeltah - Nocturnal (reedição)
Belíssimo álbum para preencher espaços em branco da escola dos 90, além das manchetes e dos recordes. Para um álbum de estreia, Nocturnal tem uma química imparável entre Sean "Ruck" Price e Jahmal "Rock" Bush. No ano anterior, tinham-se estreado em Dah Shinin' dos Smif-N-Wessun, com quem partilhavam uma das assoalhadas na turma Boot Camp Click. A palavra é o campo de batalha onde se disparam balas de prata. Poesia surrealista desencarcerada de túneis sem cortes de trânsito. Nocturnal é uma metáfora da privacidade obscura da noite, iluminada por instrumentais da melhor safra de Da Beatminerz, E-Swift e J Period. Ai caramba!
Rowan Oliver - Quickbeam
Rowan Oliver foi baterista dos Goldfrapp e músico de sessão de Plaid, Add N To (X), Paul Oakenfold e...Marilyn Manson porque a vida custa a ganhar. E tal como no seu percurso como instrumentista, Quickbeam tem muitas faces sem perder as feiçōes. Não só colidem pacificamente as dimensōes electroacústicas, como estas são excedidas de diferentes ângulos e perspectivas. Na liberdade dotada pelo jazz, na gravidade do dramatismo cinematográfico e no funk acalorado pelos metais. A química de Quickbeam entre fisicalidade e concentração descende da fluência entre os muitos mundos da identidade musical de Oliver. Alguém que se mune das baquetas por um ideal maior de sublimação.
Johnny Coley - Mister Sweet Whisper
Iggy Pop numa biblioteca a recitar sobre os blues rafeiros de Tom Waits. Podia ser o cartão de visita de Johnny Coley para os destreinados. Como Kerouac, escreve poesia com as solas gastas. A beleza americana de Mister Sweet Whisper contém sonhos, euforia, desconfiança e alucinação. Aos setenta anos, o álbum de estreia é verbalmente encenado como uma autobiografia entre a memória e o esquecimento. E o que é a América senão isso?
James Blackshaw - Unraveling In Your Hands
Após um longo hiato, em que se retirou por não conseguir pagar as contas com a música, e se dedicou à restauração, James Blackshaw voltou a deitar as mãos de artesão à guitarra (e aos teclados ambiente). Como se de uma conversa se tratasse, sem vozes, porque as cordas de nylon falam. Unraveling In Your Hands é centralizado na peça homónima de 27 minutos - longa e contemplativa, mas a agilidade de Blackshawk não se deixa escorregar num ponto de vista asséptico. Aceita o horizonte e modifica-o como um desenho. O primeiro álbum do guitarrista em dez anos é como nada tivesse acontecido entretanto.
Serafina Steer - Drinking from The Pools Of Night
Vivemos numa época que adora matar as coisas bonitas. A raridade de objectos como Drinking from The Pools Of Night torna-os mais preciosos e estimáveis. Serafina Steer faz parte dos Bas Jan e pertence à banda de Jarvis Cocker. Neste mini-álbum, devolve-se à primordialidade da harpa. Por vezes, o som processado torna-a irreconhecível. O processo de Steer é não-canónico e exploratório. Nesta aventura, tem quem a defenda. O nome de Leo Abrahams é conhecido de ligaçōes a Brian Eno e Jon Hopkins, entre outros. As cinco peças instrumentais são como mini-curtas de itineração cósmica sobre a lua e os meteoros.
Gosub - Low Volume Lovers
Reedição de 2005 sem marcas palpáveis do tempo. Low Volume Lovers e Lost In Our Ways podiam ter sido recuperadas de um disco rigído perdido de James Stinson. Funk ácido contamindo por baixos GTA, mas também alguma comovência omnipresente ao longo das quatro faixas.
Super Disco Pirata - De Tepito Para El Mundo 1965-1980
Piratas antes das pirataria numa antologia presciente de práticas controversas como a ilegalidade e a deturpação. Ainda nos anos 80, um grupo de melómanos e coleccionadores juntou-se para produzir à revelia colectâneas de êxitos latinos em vinil. A premissa: toda e qualquer canção teria de acordar um morto para a festa. As prensagens destas ediçōes "pirata" eram pequenas - cerca de 500 exemplares, de baixo custo e preço para poderem chegar a quem as queria comprar e viver. Para se ter uma ideia, os discos eram vendidos nos mesmos mercados onde circulava droga, oriundos de proveniência desconhecida. O ilícito ajudou a cimentar uma cultura de música tropical de rua, herdeira dos sonideros (soundsystems) na Cidade do México e arredores. Os nomes não puderam ser revelados pela recolha da Analog Africa, à excepção do antigo DJ e designer Jaime Ruelas. Sem surpresa, o espólio é delirante e irresistível, cheio de cumbias para colar o corpo ao outro, metais escaldantes e alusōes à cultura pop como Cumbia de Los Bee Gees.