Quanto maior é o saber acumulado, maior a consciência da ignorância. O conhecimento parte do apetite de conhecer. Mabe Fratti parte desse saudável pressuposto de que uanto menos sabemos, mais livres somos e nos preparamos para testar limites e nos expandirmos.
Se em álbuns anteriores como o notável Se Ve Desde Aquí, Arthur Russel era uma cábula de liberdade - uma contradição seguir assim os passos de alguém que no disco e na música contemporânea sempre se deixou levar pelo livre arbítrio -, em Sentir que no sabes a única toponímia é a desordem. O violoncelo recusa a rigidez da pauta e desprende-se das cordas sobre um manto denso, feito de texturas electrónicas, detalhes pop, ruídos desconhecidos e uma voz contida a humanizar um processo que se abastece de materiais digitais para evidenciar uma condição humana transcendente do imaterial.
A música de Mabe Fratti é uma equação de múltiplas incógnitas. Não se teoriza, sente-se. Salta do peito sem fogo de artifício nem filtros de racionalidade. É desordenada, anárquica, e profundamente emocional, apesar do treino clássico. Talvez seja essa a melhor explicação para a sua beleza coral de mar cristalino.
Nos episódios anteriores da discografia, reinava a abstracção. Em Sentir Que No Sabes, os encontros com a sujidade do rock e a harmonia da pop não são fortuitos mas não lhe assaltam a opacidade nem o desejo de aventura no vazio. Quando as peças sonoras invadem o território do convencional, como no pós-jazz de Kraviz ou na liturgia de Enfrente, a guatemalteca radicada na Cidade do México faz questão de nos reavivar através de elementos inesperados ou até ilógicos que o centro da gravidade do processo está na dúvida e não na resposta.
No frágil e microscópico mundo de Mabe Fratti, há um halo de nobreza e sensibilidade que não se pode rotular ou encapsular. É um universo que para se dilatar, retira os excessos para se agarrar como um náufrago a uma corda aos princípios inegociáveis de expressão: liberdade e desprendimento de fronteiras. Há uma música pós-género a desarrumar as prateleiras da informação e a deixar-nos o testemunho de algo que recebe do passado para inventar novos futuros sem rasurar a memória. Sentir Que No Sabes defende as utopias como uma necessidade para enfrentarmos a barbárie.
Mabe Fratti apresenta Sentir Que No Sabes a 31 de outubro no B.Leza e a 1 de novembro no festival Mucho Flow em Guimarães
Recomendaçōes não-algorítmicas
Johnny Cash - Songwriter
A grande maioria dos álbuns póstumos nunca saiu do escuro porque os autores não acreditaram o suficiente nesse material. No caso de Songwriter, a perplexidade está em compreender como pôde Johnny Cash silenciar um punhado de clássicos. Em 1993, pouco antes de Rick Rubin lhe oxigenar o último fôlego, estas maquetas foram deixadas na gaveta. Os motivos são desconhecidos, até para o filho John Carter Cash que as descobriu. Songwriter é uma colecção de cançōes para emoldurar como Hello Out There, Spotlight, Drive On e I Love You Tonite. Com a ajuda de Dan Auerbach, Vince Gill e Marty Stuart, as American Recordings fazem um amigo. E coisa mais preciosa no mundo não há.
Hiatus Kayote - Love Heart Cheat Code
O hiatus de seis anos entre Choose Your Weapon (2015) e Mood Valiant (2021) foi encurtado para metade em Love Heart Cheat Code (2024) para bem das necessidade de escutar música livre sem medo do abismo e da loucura. Onze cançōes exuberantes e radiosas de uma banda levada pelas emoçōes a circular entre a liberdade do jazz, a fantasia do funk e a possibilidade do psicadelismo. Dão-nos sempre alegrias os Hiatus Kayote.
Dirty Three - Love Changes Everything
A cumplicidade de Warren Ellis e Nick Cave trouxe um fio de atenção aos Dirty Three mas o vulcão sereno do grupo já estava acordado. Foi essa lava que Cave procurou ao nomear Ellis para ser o seu braço direito, lugar no passado ocupado por Mick Harvey e Blixa Bargeld. Love Changes Everything é o primeiro álbum do trio em doze anos e pode ser entendido como o trovão precedente da tempestade diluviana de Cave na última década. Os estados emocionais e matérias-primas como Push The Sky Away, Carnage ou Ghosteen vêm em estado bruto e nem disfarçam algum sarcasmo, mas a grande conquista de Love Changes Everything está na desobrigação: um violino em fuga da partitura e uma secção rítmica tumultuosa traduzem uma catarse de harmonia entre ruído e silêncio, explosão e contenção.
Wilco - Hot Sun Cool Shroud
Como os jogadores universais de andebol, os Wilco assumem vários papéis. Um dois em um no caso do EP Hot Sun Cool Shroud. 17 minutos de cançōes barulhentas, desassossegadas e cheias de vida que quebram a monotonia de álbuns como os anteriores Cruel Country e Cousin, a tempo de celebrar nova edição do Solid Sound Festival, uma curadoria da banda no Museu de Arte Contemporânea de Massachusetts.
Aaron Frazer - Into The Blue
Into The Blue serve na perfeição como a metáfora de um mergulho no mar. Corpo despido de roupa e preocupaçōes, a perder o peso enquanto se afunda em estado líquido. A caminho da praia, o cardápio de soul, AOR e falsetos de Aaron Frazer está para o Bluetooth como o retrovisor para o volante. É indispensável olhar para trás para controlar a condução. A notável Time Will Tell é o GPS da viagem.
The Mountain Goats - The Coroner's Gambit (reedição)
Há muito descatalogado, The Coroner's Gambit (2000) foi gravado por John Darnielle apenas com voz, guitarra e um gravador de quatro pistas. A gravação subverte a precariedade para a transformar em virtude. Em vez de limitaçōes técnicas, ouvimos a proximidade dos contos e a sujidade das cordas, como se partilhássemos o quarto com estas cançōes. Uma boa parte evoca Rozz Williams, pioneira do rock gótico americano, e amiga de Darnielle, que se suicidara dois anos antes ao enforcar-se.
Eiko Ishibashi - Evil Does Not Exist
Se Drive My Car era primoroso, devia-se também à fabulosa banda sonora. Eiko Ishibashi volta a acasalar a música com o cinema de Ryusuke Hamaguchi em Evil Does Not Exist (O Mal Não Existe Aqui). Sem ter visto o filme para poder interpretar a relação, a banda sonora existe por si mesma com serenidade, tensão e a mão de Jim O'Rourke a adensar o ruído.
Cornelius - Ethereal Essence
O etéreo de Cornelius é maleável. Serve bandas sonoras imaginárias, canções, e atmosferas emocionais como uma vénia a Ryuichi Sakamoto em Thatness And Thereness mas a multifuncionalidade tem marca de água da pop japonesa. Como um círculo que se fecha, talvez seja essa a Ethereal Essence.
Duval Timothy - 2 Sim (reedição)
O Sim é uma referência aos cartōes de telemóvel. 2 Sim é o resultado de dois meses de recolhas de conversas com amigos e família na Serra Leoa, coladas sobre o piano magnético de Duval Timothy. Algazarra em silêncio. Brilhante hoje como há seis anos.
Loren Connors & Alan Licht - The Blue Hour
Conhecido como guitarrista, Loren Connors entrega-se ao piano com a mesma liberdade posta nas seis cordas a quatro mãos com o guitarrista Alan Licht.
Oseias - cem vozes
As produçōes de Oseias são, antes de mais, para felicidade interna bruta. Soam quase sempre a atalhos e não a estradas principais ou avenidas. Cem vozes fala por si. Não precisa de gargantas para falar.