Fearless Movement tem 86 minutos. É quase a duração de um jogo de futebol, mas não é um recorde na obra de Kamasi Washington. The Epic tinha o dobro do tempo (173 minutos) e Heaven and Earth ainda se esticava mais (183 minutos) no teste aos limites da atenção. Não é capricho ou excesso. Esta música recebe da emancipação física e espiritual do jazz. A liberdade é um compromisso levado muito a sério e cumprido com rigoroso dever de desobrigação. A forma um mal necessário de organizar as camadas de improviso e de fixar o a época particular de cada opus.
Seis anos, neste caso, entre o magnífico Heaven and Earth e este Fearless Movement, permeados por incursōes paralelas como a banda sonora para a série documental da Netflix sobre Michelle Obama Becoming – Music from the Netflix Original Documentary, e os dois álbuns do colectivo estelar Last Dinner Party, formado com Robert Glasper, Terrace Martin e 9th Wonder.
É natural que os encontros gastronómicos tenham influenciado a digestão. Kamasi não é apenas um virtuoso individualista do saxofone. Posiciona-se como um maestro espiritual e Fearless Movement ressoa a um ensemble, colectivo e participativo, conduzido pelos longos solos do líder. Um plural majestático amplificador de personalidades e afluente de um rio maior. A presença desta música é enorme e transcende as fronteiras físicas. A monumentalidade dos álbuns predecessores é transportada para Fearless Movements mas talvez a responsabilidade seja agora mais partilhada entre Washington, músicos e convidados. O papel sumptuoso da cantora residente Patrice Quinn é decisivo para o engrandecimento.
Sem surpresa, a permeabilidade excede os limites do jazz. Em Asha The First, a solenidade cai nas malhas do baixo de Thundercat para se soltar na agilidade verbal dos gémeos Taj e Ras Austin dos Coast Contra. Em Get Lit, George Clinton reacende o funk viscoso dos Parliament e abastece a velocidade furiosa de D Smoke, o sósia de Kendrick Lamar e irmão do cantor Sir (membro da mesma Top Dawg Entertainment à qual K. Dot esteve ligado até ao divórcio). Há aqui muito de To Pimp a Butterfly, o álbum responsável por projectar Kamasi Washington e reaproximar o jazz do rap, depois de Robert Glasper ter assumido essa missão) na aproximação ao modelo estrutural de canção.
O coral mais belo de Fearless Movement vive nas profundezas da ilusão. Os nove minutos de Dream State distanciam-se da grandiosidade orquestral e fluem como um gesto de prazer e alegria, enobrecedor do jazz como disciplina de êxtase e partilha literal. “Foi uma honra poder trabalhar nesta música com um dos meus heróis, o grande André 3000”, confessava Kamasi Washington sobre a sessão originária de Dream State. “Agora, sempre que nos encontramos alguma coisa interessante acontece”, devolvia o flautista. Já se percebeu que André 3000 foi integrado na exigente aristocracia do jazz. É dele o segundo nome de uma odisseia extraordinária.
A grandeza musical e metafísica deu a Kamasi Washington um lugar de peso na luta contínua do jazz, com consequências imediatas em correntes globais emanadas do afro-americanismo. Fearless Movement não rompe com o passado mas abre-se ainda mais ao exterior. O movimento enquanto acto de mudança representa resistência à inércia e desejo de reciprocidade. Ainda assim, continua a ser um gesto apenas ao alcance de um titã.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Jessica Pratt - Here In The Pitch
Jessica Pratt distancia-se do realismo e parte num sonho romântico para a Hollywood de Marilyn Monroe, Rita Hayworth e Buster Keaton. Here In The Pitch, o melhor álbum dos quatro até à data, move-se num tempo sem tempo, de pop renascentista e bossa nova, na mesma estrada em que os She & Him se deslocam de descapotável. Belíssimas cançōes, World on a String devia ser canonizada.
Charlotte Day Wilson - Cyan Blue
Cyan Blue rejeita apriorismos. Charlotte Day Wilson move-se entre os buracos da soul, da folk e da pop livre, sem se fixar em nenhuma destsas casas. A voz serena e quente é o fio condutor do enlance entre expansão sonora e resgate da inocência perdida. Ainda não é um estado definitivo mas já é um território consolidado.
Maria Reis - Suspiro
Maria Reis andou bastante para aqui chegar. Quer em Chove na Sala, Água nos Olhos, quer em Benefício da Dúvida, o coração já vinha colado ao peito. Uma zona franca, sem justificaçōes a dar a ninguém, apenas preenchida pelo desejo próprio de viver nas cançōes como na vida. Suspiro é de longe o melhor dos seus álbuns. Transparente, amadurecido e directo, com uma produção imaculada de Tomé Silva.
Sam Gendel & Sam Wilkes - The Doober
Ainda bem que The Doober se evade da obsessão pela imagem. Envolve-o um manto misterioso que tem como efeito benigno a escuta activa e atenta de Sam & Sam. O saxofone de Gendel é serpenteante e imprevisível. O baixo de Wilkes é ácido e escarpado. Música livre sem outra intenção que não o prazer e diálogo de vontades próprias.
Mdou Moctar - Funeral For Justice
Labaredas do guitarrista nigeriano depois do explosivo Afrique Victime. Funeral For Justice não abranda a contestação e abre fogo sobre o colonialismo francês (Oh France) e sobre o falhanço dos líderes africanos em construir projectos de futuro (Funeral For Justice). Riffs fulminantes ensopados em blues catárticos - a guitarra é uma arma neste protesto anti-colonialista de estouro rock'n'roll.
Ibibio Sound Machine - Pull The Rope
Se Mdou Moctar é uma reacção, os Ibibio Sound Machine são uma aceitação. Mistura de afrobeat, poesia liberdade e pós-punk físico (Liquid Liquid, LCD Soundsystem), Pull The Rope é cor, vida e alegria em tempos sombrios de desesperança. Quanto mais o álbum se descativa, melhor se sai.
Nubiyan Twist - Find Your Flame
O jazz é o rascunho dos Nubiyan Twist mas a linguagem é fluída da pulsão afrocêntrica ao funk vibrante de Nile Rodgers em Lights Out. A mensagem é espiritual mas o ritmo é extasiante. Cabeça, tronco e pescoço.
Jon McKiel - Hex
Exercício primoroso de corte e colagem em tecido de canção pop clássica tingida de experimentalismo. As mutaçōes de Beck, folk, tropicalistas ou eléctricas, encapsuladas num só álbum sincronizado entre o laboratório de possibilidades e o formalismo sem rigidez.
Broadcast - Spell Blanket (Collected Demos 2006-2009)
Esquissos de cançōes e excertos de ideias recolhidas de cassetes e gravadores de Trish Keenan no pós-Tender Buttons. Chegou a especular-se que o companheiro da vocalista, Cargill pudesse concluir concluir estes esboços mas Spell Blanket vê a luz do dia tal como nasceu. Uma colecção justa para com a melancolia e inocência de Trish.
Not Waving & Romance - Infinite Light
O terceiro álbum conjunto de Not Waving e Romance não se desvia da rota dos anteriores: música suspensiva, imaterial e espiritual, criada a partir da ancestralidade secular e das possibilidades tecnológicas de ampliar a memória.